Direito Comparado

Força-tarefa nos EUA propõe reforma do ensino jurídico

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

9 de outubro de 2013, 16h46

Inicio esta coluna com um pedido de desculpas pela extensíssima citação que a inaugura, o que contraria as melhores normas de edição jornalística e mesmo as atuais regras de boa redação científica, infensa à reprodução de longos excertos no corpo do texto. O autor da passagem transcrita, sua autoridade intelectual e a beleza de seu estilo, por si sós autorizariam que se abrisse uma exceção e eximiria o colunista das justas censuras dos leitores. Ademais, o tema que ele abordou é atualíssimo e de grande interesse: a crise do ensino jurídico. Sua visão é abrangente e compreensiva dos três atores dessa crise: a universidade, os professores e os alunos. Sem que se tenha esquecido da eterna ausente desses debates: a sociedade.

Vamos ao texto, que merece ser lido na íntegra:

“A incapacidade da classe dirigente para criar, assimilar, executar e adaptar as técnicas necessárias ao controle do meio físico e do meio social, já permitiu que se iniciasse entre nós, sobretudo nos centros urbanos e nas regiões mais adiantadas, onde a pressão dos problemas irresolvidos se faz sentir com maior intensidade, o processo de secessão da classe dirigida, a qual se está separando rapidamente da antiga classe dirigente e apresentando a inevitável reação demagógica, que acompanha o colapso da liderança. (…) É certo que na perda de poder criador da sociedade, a Universidade tem a confessar grandes culpas. Se há problemas novos sem solução técnica adequada; se há problemas antigos, anteriormente resolvidos, cujas soluções se tornaram obsoletas sem serem oportunamente substituídas; se apareceram novas técnicas, que o nosso meio não aprendeu e assimilou; em grande parte isso se deve ao alheamento e à burocratização estéril das nossas escolas, que passaram a ser meros centros de transmissão de conhecimentos tradicionais, desertando o debate dos problemas vivos, o exame das questões permanentes ou momentâneas de que depende a expansão, e mesmo a existência da comunidade. (…) Temos vivido dentro e fora das escolas outros debates sobre esse tema, que se saldam por amargas recriminações. Queixam-se os professores do desinteresse dos estudantes, ouvintes apressados de aulas, que se limitam a compulsar nas últimas semanas do período letivo as apostilas mal compiladas, para uma prova escrita de valor puramente burocrático, muitas vezes fraudada em sua execução. Queixam-se os alunos dos professores, da indiferença de um da impontualidade de outro, das excentricidades de um terceiro, das exigências descabidas de um quarto, e assim por diante. (…)Temos vivido dentro e fora das escolas outros debates sobre esse tema, que se saldam por amargas recriminações. Queixam-se os professores do desinteresse dos estudantes, ouvintes apressados de aulas, que se limitam a compulsar nas últimas semanas do período letivo as apostilas mal compiladas, para uma prova escrita de valor puramente burocrático, muitas vezes fraudada em sua execução. Queixam-se os alunos dos professores, da indiferença de um da impontualidade de outro, das excentricidades de um terceiro, das exigências descabidas de um quarto, e assim por diante”.

Bem, o leitor deve ter-se identificado com diversas conclusões apresentadas pelo autor, que pintou em cores vivas uma aquarela de beleza singular, posto que descritiva de um ambiente no qual se calaram as luzes e gritaram as sombras, com a ousadia dos que não encontram embaraços a prosseguir em sua marcha medíocre rumo ao imerecido pódio dos consensos humanos. Mais que tudo, a análise é atual. Parece que foi escrita há poucas horas, sob inspiração de uma visita discreta a alguns ambientes universitários do Brasil.

Preciso, no entanto, decepcionar o leitor. Se se verazes os elogios ao autor e à qualidade do texto, não é correta a impressão que o texto transmite sobre ser atual e recém-escrita a passagem acima reproduzida.

O autor chama-se Francisco Clementino de San Tiago Dantas (1911-1964), catedrático de Direito Civil da Faculdade Nacional da Universidade do Brasil, ex-primeiro-ministro do Brasil, na curta experiência parlamentarista da República, e um dos mais brilhantes juristas nacionais do século XX. E o texto, cujo excerto foi copiado, tem por título A educação jurídica e a crise brasileira, publicado pela Revista dos Tribunais, em 1955.

A contemporaneidade do diagnóstico de San Tiago Dantas, para além das reflexões que o tema desperta, indica que se deva apreciar essa questão com alguns temperamentos. E talvez rever certas posições que se têm repetido nas últimas décadas. A reprodução de chavões sobre o ensino jurídico e a formação acrítica de alguns consensos sobre o tema devem ser colocados na ordem do dia.

Uma das boas iniciativas a esse propósito foi a criação de uma comissão pelo Ministério da Educação, formada por representantes de diversos setores da universidade, da advocacia, do governo, das entidades de classe e da sociedade civil, com o objetivo de propor mudanças no marco regulatório do ensino jurídico nacional. Esse grupo, do qual eu tenho a honra de fazer parte, ao lado alguns ilustres professores, como Alexandre Veronese e Loussia Felix (ambos da Universidade de Brasília), já se tem reunido há alguns meses e, apesar de todas as dificuldades, tem buscado desenvolver propostas que façam frente às expectativas (generalizadas, diga-se de passagem) por um novo horizonte no ensino de Direito no País, hoje marcado por sinais evidentes de precarização da docência, baixo investimento em pesquisa (o que inclui aquisição de livros e assinatura de periódicos) e o descompasso entre a realidade do mercado e a oferta de vagas.

A coluna, que já avança pela metade, precisa enfrentar o tema a que se propôs no título: a surpreendente crise do ensino jurídico nos Estados Unidos da América.

Sim, não estamos solitários nessa questão. Se isso é um alento, caro leitor, estamos na companhia dos norte-americanos nesse problema central para todos quantos militam na área do Direito.

A crise econômica norte-americana, de todos conhecida, evidenciou a realidade do ensino jurídico no país, que não era das mais agradáveis. Há excelentes faculdades de Direito nos Estados Unidos, muitas delas ocupando posições de ponta em qualquer ranking universitário internacional. Ao seu lado, no entanto, há centenas de instituições de qualidade inferior e que apresentam resultados pouco significativos nesses mesmos indicadores.

Essa diferença torna-se ainda mais relevante quando se percebe que o curso de Direito tem natureza bem diversa dos países da tradição romano-germânica. Nos Estados Unidos, o Direito não é bem um “curso de graduação”, mas uma formação complementar a uma licenciatura anteriormente obtida. De tal maneira, uma pessoa conclui um bachelor of Arts, por exemplo, em Literatura ou História da Arte e, em seguida, faz um curso de Direito, em três anos, para obter o título de Juris Doctor (JD). Se o aluno, após obter seu JD, pretender prosseguir em sua formação, em poderá obter um Master of Laws (LL.M.). Existe também o título de JSD (Juridical Science Doctor), que é conferido por algumas faculdades de Direito, que tenham obtido uma espécie de acreditamento pela American Bar Association (ABA), a mais importante associação de advogados dos Estados Unidos. O doutorado, de modo mais específico, é um título equiparável ao Brasil e que confere o título de PhD (philosophiae doctor). Essa plurivocidade de títulos e a assimetria com o modelo brasileiro gera certa dificuldade na revalidação de diplomas de pós-graduação norte-americanos no Brasil.

Esse é um modelo caro e que exige dos estudantes grandes investimentos, com a assunção de pesados compromissos, os quais, se o recém-formado não conseguir se empregar de imediato, poderá levá-lo à ruína econômica. Os escritórios de advocacia, nesse cenário, terminam por ser um fato decisivo para que os alunos consigam pagar as dívidas decorrentes da faculdade.

Com a queda na empregabilidade e a existência de muitas faculdades que oferecem uma formação de qualidade relativa (para se dizer o menos), esse sistema está hoje sob forte escrutínio social. Para enfrentar esse problema, criou-se a Força-Tarefa para o Futuro da Educação Jurídica nos Estados Unidos (Task Force on the Future of Legal Education), composta por 20 advogados, juízes e professores de Direito. Trata-se de uma iniciativa que se conjuga ao projeto do presidente Barack Obama de reforma do ensino jurídico no país. O governo democrata pretende criar uma ajuda financeira federal para os estudantes, levando em conta diversos fatores como o valor das matrículas, a renda estudantil, a empregabilidade e o volume de endividamento.

O relatório preliminar dessa força-tarefa foi divulgado no dia 20 de setembro de 2013 e suas conclusões são bastante interessantes (clique aqui para ler o relatório):

1. Os cursos jurídicos são financiados por meio de um sistema complexo, que envolve taxas de matrícula, mensalidades e fontes extraordinárias, como subsídios públicos e doações privadas. A formação dos preços dos cursos também é baseada em mecanismos complexos. Além disso há a previsão de descontos e de estímulo ao endividamento para se custear o estudo.

Identificaram-se práticas pouco ortodoxas como a divulgação de valores nominais de mensalidades e, em seguida, ofertam-se descontos substanciais, às vezes sob a forma de bolsas de estudos. Cria-se, ainda, uma distorção com financiamentos mais pesados para alunos de menor qualidade e estímulos aos alunos de melhor qualificação.

2. O credenciamento dos cursos jurídicos pela ABA serve ao país e à qualidade do ensino de Direito. Esses padrões elevados, no entanto, geram aumento de custo para as faculdades e isso não se tem refletido em maior empregabilidade.

3. Os critérios de avaliação dos cursos, quando do credenciamento, devem valorizar mais elementos de inovação

4. Melhoria na preparação dos alunos, levando-se em conta fatores diferenciados de competências e habilidades.

Há, evidentemente, vários outros pontos abordados no relatório. A discussão está apenas começando. A preocupação parece ser centralizada em dois pontos: a) financiamento dos cursos; b) que tipo de profissional está-se formando.

As peculiaridades do sistema americano, sob diversos aspectos, não se aplicam ao modelo brasileiro, que conjuga elementos europeus e norte-americanos. A estrutura das universidades espelha-se na Europa e a concorrência é próxima dos Estados Unidos. Nosso hibridismo tem sido causa de deficiências bem próprias do Brasil.

Autores

  • Brave

    é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!