Direito jurisprudencial

Novo CPC consagra concepção dinâmica do contraditório

Autor

  • Dierle Nunes

    é advogado doutor em Direito Processual professor adjunto na PUC Minas e na UFMG e sócio do escritório Camara Rodrigues Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia). Membro da Comissão de Juristas que assessorou na elaboração do Novo Código de Processo Civil na Câmara dos Deputados.

8 de outubro de 2013, 15h31

Estamos em momento muito singular do ordenamento jurídico pátrio, no qual percebemos uma mudança muito consistente dos níveis de litigiosidade em aspectos qualitativos e quantitativos.

Esta mudança, conjuntamente com a transição para um modelo jurídico principiológico, as altas taxas de congestionamento, os novos perfis de litigiosidade repetitiva, vem cada vez mais gerando um peculiar modelo de Direito Jurisprudencial no qual os precedentes são usados para geração de padrões decisórios (mediante a técnica de causa piloto) e aplicação em casos idênticos.[1]

Os teóricos, como pontua Calvinho, passam a se dividir entre aqueles que propõem um novo paradigma teórico de melhoria qualitativa, embasado em sólidas bases constitucionais, e aqueles que defendem a mantença das velhas premissas, em face do aumento quantitativo.[2]

Esta transição ganha especial importância em momento no qual se encontra, em etapa avançada de tramitação, no Congresso Nacional, um CPC projetado, norma que poderá viabilizar uma “nova gramática interpretativa” do estado adulterado de criação e aplicação do direito jurisprudencial no Brasil.

E nesse aspecto, a compreensão dos impactos do processo constitucionalizado, posto nas normas fundamentais do CPC projetado e em seu corpo, podem fornecer pressupostos interpretativos essenciais no sistema dogmático que se descortina.

Obviamente que, se esta legislação projetada for interpretada como mais uma reforma, desprovida de novas premissas e fundamentos interpretativos (comparticipativos), esta seria mais do mesmo, ou poderia gerar até mesmo efeitos deletérios; fato impensável em face das balizas constitucionais institutivas do projeto.

Dentro deste aspecto, há exatos dez anos defendo a necessidade de adoção do contraditório como garantia de influência e não surpresa na formação das decisões.[3]

Essa concepção já arraigada em outros países, em face da percepção anterior da importância dos direitos fundamentais processuais no dimensionamento e aplicação do direito processual, somente começou a ganhar maior destaque e efetividade no discurso processual pátrio efetivamente de poucos anos para cá.

Como já se informou em outra oportunidade “o contraditório constitui um verdadeira garantia de não surpresa que impõe ao juiz o dever de provocar o debate acerca de todas as questões, inclusive as de conhecimento oficioso, impedindo que em ‘solitária onipotência’ aplique normas ou embase a decisão sobre fatos completamente estranhos à dialética defensiva de uma ou de ambas as partes. Ocorre que a decisão de surpresa deve ser declarada nula, por desatender ao princípio do contraditório. Toda vez que o magistrado não exercitasse ativamente o dever de advertir as partes quanto ao específico objeto relevante para o contraditório, o provimento seria invalidado, sendo que a relevância ocorre se o ponto de fato ou de direito constituiu necessária premissa ou fundamento para a decisão (ratio decidendi). Assim, o contraditório não incide sobre a existência de poderes de decisão do juiz, mas, sim, sobre a modalidade de seu exercício, de modo a fazer do juiz um garante da sua observância e impondo a nulidade de provimentos toda vez que não exista a efetiva possibilidade de seu exercício. [….] Para a demonstração cabal do atual perfil comparticipativo que o princípio possui em sua releitura democrática, faz-se necessária a análise pormenorizada do já aludido fenômeno intitulado “decisão de surpresa” […] que atribui a nulidade de decisões fundadas sobre a resolução de questões de fato e de direito não submetidas à discussão com as partes e não indicadas preventivamente pelo juiz.” [4]

Mostrava-se a necessidade de se aprofundar no estudo e implementação dos direitos fundamentais processuais em nosso país, notadamente, do contraditório. Seja pela notória tendência de reforço e diversificação dos papéis da Jurisdição após a Constituição de 1988, seja pela necessidade de se adotar uma nova dimensão no processo constitucional.

Essas novas perspectivas no direito pátrio ofertavam um contraponto ao discurso socializador (que remonta o final do século XIX) que ainda mantinha (e mantém) a crença que somente com o reforço do protagonismo e ativismo judicial conseguiríamos contornar os novos grandes desafios descortinados pela ampliação exponencial da garantia de acesso à Justiça, com o decorrente aumento brutal da quantidade de litígios.

Assim, deve-se pensar na interpretação do contraditório como pressuposto de base para o rompimento da abordagem reducionista das novas litigiosidades, pois, como já se teve oportunidade de tematizar em outras oportunidades,[5] o Brasil, e os tradicionais sistemas de civil law, vêm vivenciando um movimento de convergência com o common law que não pode mais ser considerado aparente,[6] devido a colocação de cada vez maior destaque ao uso da jurisprudência como fundamento de prolação de decisões pelo Judiciário pátrio e da própria prática advocatícia que se vale dos julgados como importante ferramenta argumentativa de persuasão.

Há de se perceber que após a efetiva falência do modelo processual reformista imposto, entre nós, após a década de 1990, alguns vêm há alguns anos, em face da explosão exponencial de demandas e dos altos índices de “congestionamento judicial”, defendendo um peculiar uso dos precedentes (vistos como padrões decisórios) para dimensionar a litigiosidade repetitiva.

O pressuposto equivocado é o de que mediante o julgamento de um único caso, sem um contraditório dinâmico como garantia de influência e não surpresa para sua formação,[7] mediante a técnica de causa piloto, o Tribunal Superior (e existe a mesma tendência de ampliação dessa padronização nos juízos de segundo grau no CPC Projetado) formaria um julgado (interpretado por nós como precedente) que deveria ser aplicado a todos os casos “idênticos”.

Pode-se notar a intenção de estender o âmbito de aplicabilidade das decisões judiciais, fazendo com que o Judiciário no menor número de vezes possível tenha que se aprofundar na análise de questões similares,[8] tornando-se mais eficiente quantitativamente através do estabelecimento de padrões a serem seguidos nos casos idênticos subsequentes, sob o argumento de preservação da isonomia, da celeridade, da estabilidade e da previsibilidade do sistema.

Neste particular, o movimento reformista brasileiro convergiria para alguns, de modo peculiar, com o sistema do common law, ao adotar julgados que devem ser seguidos nas decisões futuras — o que configuraria uma peculiar forma de precedente judicial, com diferentes graus de força vinculante.

Falta, assim, aos nossos Tribunais uma formulação mais robusta sobre o papel dos “precedentes”.[9] Se a proposta é que eles sirvam para indicar aos órgãos judiciários qual o entendimento “correto”, deve-se atentar que o uso de um precedente apenas pode se dar fazendo-se comparação entre os casos — entre as hipóteses fáticas —, de forma que se possa aplicar o caso anterior ao novo.

Porém, ao invés de se promover a imposição de uma concepção de acesso à Justiça democrático,[10] continuamos a dedicar maior vigor na busca de alterações legislativas e, agora, num CPC Projetado.

Felizmente, o mesmo (CPC projetado) desde a redação do anteprojeto consagrou a concepção dinâmica do Contraditório no seu artigo 10,[11] com a confessada adoção de um modelo comparticipativo ou cooperativo de processo.

No entanto, muitos ainda não perceberam o impacto que tal concepção gerará em termos de avanço no trato da litigiosidade tradicional (individual e patrimonial) e nas novas litigiosidades (com destaque para a repetitiva).

Isto pois o dispositivo, consagrado na parte geral do Código Projetado, conjuntamente com o dispositivo que impõe uma fundamentação racional legítima (artigo 499[12]), servirão de pressupostos para a interpretação de todas as técnicas processuais; seja no trato da técnica cognitiva de primeiro grau, seja na formação dos precedentes (padrões decisórios), que vêm sendo usados para o trato da litigiosidade repetitiva.

Já se vem criticando o modo superficial e romântico como a técnica de precedentes vem sendo utilizada pelos tribunais pátrios hoje; sejam os superiores na formação, sejam os de segunda grau, os aplicando, de inexplicável modo mecânico.

Ocorre que com a adoção normativa do contraditório dinâmico será impensável pensar que um julgado de um tribunal (superior ou de segundo grau) pelo simples fato de ter passado pela técnica de causa piloto, vá ter o condão de gerar um padrão decisório hábil a obter alto teor persuasivo (ou mesmo efeitos vinculantes) se não tiver promovido uma análise extenuante de todos os argumentos relevantes na discussão do caso.

O respeito ao processo constitucional é, assim, em consonância com o CPC Projetado, essencial na formação e aplicação dos precedentes.

Inclusive, esta é uma grande preocupação que vimos defendendo junto a Comissão do CPC projetado na Câmara dos Deputados (com repercussão no substitutivo acerca da técnica de distinguishing). Nesse aspecto, o projeto busca ofertar algumas premissas importantes.

As discussões esposadas no CPC Projetado demonstram claramente a preocupação com a ausência atual com “técnicas processuais constitucionalizadas” para a formação de nossos “precedentes”.

Isto, pois, com a percepção do contraditório dinâmico se vislumbra que sua aplicação não se resumiria a formação das decisões unipessoais (monocráticas), mas ganharia maior destaque na prolação das decisões colegiadas, com a necessária promoção de uma redefinição do modo de funcionamento dos tribunais.

O “tradicional” modo de julgamento promovido pelos ministros que, de modo unipessoal, com suas assessorias, e sem diálogo e contraditório pleno entre eles e com os advogados, proferem seus votos partindo de premissas próprias e construindo fundamentações completamente díspares, não atende a este novo momento que o Brasil passa a vivenciar.[13]

O contraditório, nesses termos, impõe em cada decisão a necessidade do julgador enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar sua conclusão. Perceba-se que caso as decisões procedam a uma análise seletiva de argumentos, enfrentando somente parte dos argumentos apresentados, com potencialidade de repercussão no resultado, haverá prejuízo na abordagem e formação dos precedentes; inclusive com evidente prejuízo para aplicação futura em potenciais casos idênticos.

Não é incomum a dificuldade atual dos Tribunais de segundo grau em aplicar os padrões formados pelos Tribunais Superiores, por eles não terem promovido uma abordagem mais panorâmica do caso e dos argumentos.

Assim, os acórdãos, na atualidade, deveriam possuir uma linearidade argumentativa.[14]

Extrair-se-ia, inclusive, se um dado argumento foi levado em consideração, pois caso contrário seria possível a superação do entendimento (overruling). Ou mesmo se verificar se o caso atual em julgamento é idêntico ao padrão ou se é diverso, comportando julgamento autônomo mediante a distinção (distinguishing).

No entanto, ao se acompanhar o modo como os Tribunais brasileiros (incluso o STF) trabalham e proferem seus acórdãos percebemos que se compreende parcamente as bases de construção e aplicação destes padrões decisórios (precedentes), criando um quadro nebuloso de utilização da jurisprudência. Flutuações constantes de entendimento, criação subjetiva e individual de novas “perspectivas”, quebra da integridade do direito, são apenas alguns dos “vícios”.

Repetimos: aos Tribunais deve ser atribuído um novo modo de trabalho e uma nova visão de seus papéis e forma de julgamento. Se o sistema jurídico entrou em transição (e convergência), o trabalho dos tribunais também dever ser modificado.

Ademais, não se pode olvidar um dos principais equívocos na análise da tendência de utilização dos precedentes no Brasil, qual seja, a credulidade exegeta (antes os Códigos, agora os julgados modelares) que o padrão formado (em RE, v.g.) representa o fechamento da discussão jurídica, quando se sabe que, no sistema do case law, o precedente é um principium argumentativo. A partir dele, de modo discursivo e profundo, verificar-se-á, inclusive com análise dos fatos, se o precedente deverá ou não ser repetido (aplicado).

Aqui, o “precedente” dos Tribunais Superiores é visto quase como um esgotamento argumentativo que deveria ser aplicado de modo mecânico para as causas repetitivas. E estes importantes Tribunais produzem comumente rupturas com seus próprios entendimentos; ferindo de morte um dos princípios do modelo precedencialista: a estabilidade.

No sistema processual constitucional democrático brasileiro, agora encampado pela legislação projetada, tornar-se-á nula a decisão que surpreender as partes acerca de argumentos que não tiverem sido problematizados, mesmo que potencialmente, ao longo do iter.

A chamada decisão de surpresa, na qual o órgão julgador traz argumentos inovadores nas ratione decidendi, seria banida.

Ademais, a adoção do contraditório como influência na formação e aplicação dos precedentes, especialmente mediante o uso da técnica de causa piloto, torna essencial percebermos que em caso de dissonância nos votos proferidos no acordão, dificilmente encontraremos uma única “ratio decidendi” apta a ser utilizada num caso futuro.[15]

O princípio impõe uma linearidade do debate para que uma decisão com eficácia pan processual seja hábil a ser usada com argumentos colhidos por amostragem.

Assim se percebe que o CPC projetado não busca abandonar a singularidade (análise individualizada dos casos) em prol da similaridade, pois a percepção adequada do contraditório e da fundamentação racional projetados (artigos 10 e 499) impõem a conclusão de que devemos seguir esses pressupostos interpretativos (essenciais) na formação dos precedentes exatamente para viabilizar que todos os argumentos potencialmente relevantes sejam levados a sério e cheguemos a única interpretação viável da lei, que induzirá uma melhoria qualitativa do sistema. Exatamente para evitar que o discurso em prol da similaridade inviabilize a aplicação legítima (correta) do Direito.

O único caminho hermenêutico viável é aquele que interpreta o CPC Projetado à luz do processo constitucional e de seus pressupostos comparticipativos.

 


[1] Conferir as excelentes críticas da presente obra ao atual sistema de aplicação de precedentes no Brasil: STRECK, Lenio; ABBOUD, Georges. O que é isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes? 2 ed. Porto Alegre: 2014.

[2] CAlVINHO, Gustavo. La procedimentalización posmoderna. Obra Juridica Enciclopedica. Porrua: Mexico. p. 135.

[3] NUNES, Dierle. O recurso como possibilidade jurídica discursiva do contraditório e ampla defesa. Puc-Minas, 2003; NUNES, Dierle. O princípio do contraditório, Rev. Síntese de Dir. Civ. e Proc. Civil. v. 5. n. 29. p. 73-85, Mai-Jun/2004; NUNES, Dierle, THEODORO JR, Humberto. Princípio do contraditório. RePro 168. Nunes, Dierle. Processo jurisdicional democrático: uma análise critica das reformas processuais. Curitiba: Juruá, 2008.

[4] Nunes, Dierle. Processo jurisdicional democrático. cit.

[5] Theodoro Júnior, Humberto; Nunes, Dierle; Bahia, Alexandre. Breves considerações da politização do judiciário e do panorama de aplicação no direito brasileiro. RePro 189. NUNES, Dierle. Processualismo constitucional democrático e o dimensionamento de técnicas para a litigiosidade repetitiva. RePro 199, p. 38.

[6] HONDIUS, Ewoud. Precedent an the law. Bruxelles, Bruylant, 2007.

[7] Cf. THEODORO JR. Humberto, NUNES, Dierle. Princípio do contraditório. RePro 168. Cit.

[8] Cf. Críticas: STRECK, Lenio; ABBOUD, Georges. cit.

[9] NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Formação e aplicação do direito jurisprudencial: alguns dilemas. Revista do TST. v. 79, abr.-jun./ 2013. p. 118-144.

[10] NUNES, Dierle; TEIXEIRA, Ludmila. Acesso à justiça democrático. Brasília: Gazeta Jurídica. 2013.

[11] “Art. 10. Em qualquer grau de jurisdição, o órgão jurisdicional não pode decidir com base em fundamento a respeito do qual não se tenha oportunizado manifestação das partes, ainda que se trate de matéria apreciável de ofício.”

[12] “Art. 499. […] § 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. § 2º No caso de colisão entre normas, o órgão jurisdicional deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada. § 3º A decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé.”

[13] NUNES, Dierle. Processualismo constitucional democrático e o dimensionamento de técnicas para a litigiosidade repetitiva. cit.

[14]NUNES, Dierle. Acórdãos deveriam ter linearidade argumentativa. http://www.conjur.com.br/2012-ago-06/dierle-nunes-padronizar-decisoes-empobrecer-discurso-juridico. NUNES, Dierle. Padronizar decisões pode empobrecer o discurso jurídico. http://www.conjur.com.br/2012-ago-06/dierle-nunes-padronizar-decisoes-empobrecer-discurso-juridico

[15] WHITTAKER, Simon. Precedent in English Law. cit. p. 56.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!