Contas à Vista

Tributação fica entre 'preço da civilização' e 'poder de destruir'

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Melo Guimarães Pinheiro & Scaff – Advogados; é professor da Universidade de São Paulo e doutor em Direito pela mesma Universidade.

8 de outubro de 2013, 8h00

Spacca
É possível existir Estado sem tributação? Não falo do tributo no sentido técnico formal (impostos, taxas etc). Trato de uma forma qualquer de retirar recursos da sociedade para fazer frente às necessidades públicas. Dá para existir Estado sem esta “corrente de transmissão” de recursos privados para uso público?

Como você, caro leitor, vê o Estado brasileiro? Falo da União, estados e municípios, a quem incumbe prestar os serviços públicos de energia elétrica, de educação e de transporte coletivo urbano — dentre vários outros.

Quando a Constituição brasileira atual foi escrita, ficou decidido que manteríamos o sistema federativo e o poder de tributar deveria ser dividido por fontes de receita e também pelo produto da arrecadação. Ou seja, foi estabelecido sobre quais fatos econômicos cada ente federado poderia cobrar e quais os serviços públicos que deveria prestar.

É bem verdade que essa amarração constitucional não foi completa, deixando muita coisa a ser determinada pela legislação ordinária, a cargo do Congresso Nacional. Por exemplo: não foi estabelecido quanto os entes federados poderiam cobrar, pois isso ficou, como regra, a cargo da lei. Nem foi explicitada exatamente a qualidade dos serviços públicos a ser prestados, o que efetivamente, muitas vezes, deixa a desejar.

O fato é que foram estabelecidas as obrigações (serviços públicos) a serem cumpridas e foram dados os meios (dinheiro/fonte de recursos) para que o Estado brasileiro as cumpra.

Pergunto novamente: será que o Estado brasileiro as vem cumprindo efetivamente?

Daí me vem à mente a conhecida frase de Oliver Wendell Holmes (1841-1935), juiz da Suprema Corte norte-americana: "Impostos são o preço que nós pagamos por uma sociedade civilizada" — com a qual concordo.

Mas me pergunto — e também a você, leitor — será que a carga tributária que vem sendo paga no Brasil atual está nos levando para uma sociedade mais civilizada?

A resposta não é simples, pois existe um conjunto complexo a ser analisado. Todavia, assoma a impressão que pagamos muito por serviços de má qualidade. De um lado parece-me que estamos construindo uma sociedade em que muitos pagam muito e poucos pagam pouco. Hoje temos uma carga fiscal média de 35% de tudo que é produzido no Brasil (conhecido no jargão como PIB). Porém, como toda média, contém certa falsidade, pois distorce a realidade. Se colocarmos uma pessoa com a cabeça na geladeira e os pés no forno, na média sua temperatura estará boa, mas na realidade estará morta. É o que acontece com este conceito de carga tributária. CDs e smartphones têm carga tributária menor que saneamento, feijão e medicamentos. Veja quem consome aqueles produtos e quem consome a estes e constate quem paga mais tributo. Isso sem falar nas extorsivas incidências sobre os salários em comparação com as incidências sobre as pessoas jurídicas tributadas pelo lucro presumido. Muitos pagam muito e poucos pagam pouco. Certamente isso não é isonômico.

Por outro lado, o gasto público escorre por todos os lados. Observemos apenas pelo lado corporativo, onde há uma espécie de vazamento. Notícias recentes dão conta de que membros do Ministério Público Federal, composto por mais de mil servidores, passará a ter direito a classe executiva nos voos que farão ao exterior, em nome da dignidade da pessoa humana. Se você não acredita, leia por si mesmo, neste link. É praticamente certo isso se reproduzir pelo Ministério Público dos Estados. Para quem quiser ler mais sobre as mazelas desse órgão remeto o leitor a um autor mais abalizado, Eugênio Aragão, que é membro do Ministério Público Federal e escreveu um artigo bastante circunstanciado a respeito. Transcrevo um trecho apenas para estimular a leitura: “A contínua disputa entre instituições relevantes do Estado por espaço de atuação com impacto midiático e a ânsia de alguns membros do Ministério Público e de defensores públicos de mostrar musculação capaz de interferir na governança – com evidente busca de prestígio que os valoriza para as reivindicações de classe – tem o potencial de enfraquecer sobremodo a capacidade de ação da administração pública na execução de políticas necessárias para o desenvolvimento do país”. Para o artigo completo e uma entrevista com o autor siga o link.

Poderia tratar de outros agentes públicos e privados — por exemplo, o atributo da transparência parece não ter chegado ao Poder Judiciário de muitos Estados, pois aquela norma que obriga a divulgar a remuneração de seus membros não é seguida — em muitos disponibiliza-se apenas a remuneração-base, mas as “diferenças” circulam por uma folha em separado que não é divulgada.

Observe-se que não cabe aqui o conhecido chavão, “respeitadas as honrosas exceções”. Não. É o contrário. A esmagadora maioria dos servidores públicos não se enquadra na descrição acima — é gente que trabalha todo dia, dia a dia, para ganhar sua remuneração mensal. Isso vale também para o setor privado, repleto de gente que moureja de sol a sol para ganhar o pão de cada dia. É a pequena exceção que consegue obter do Tesouro Público benefícios em cascata para si próprios. A esmagadora maioria segue seu ritmo normal de trabalho, aproveitando as beiradas dos benefícios hauridos pela minoria.

Dá a impressão que estamos em uma verdadeira República Corporativa, coordenada a partir de uma cúpula, a despeito desta expressão conter uma verdadeira contradição terminológica.

E tudo isso sem entrar na deprimente questão da corrupção — nem vou voltar a falar da corrupção de costumes, mais ampla; falemos apenas da corrupção financeira, do dinheiro do toma lá, dá cá. Frase folclórica bem demonstra o tamanho do problema: “muitas vezes é melhor pagar a propina sem fazer a obra ou a compra, a qual só se justificaria pelo pagamento da propina”.

É muita arrecadação para muito gasto, com cada vez maior pressão sobre os cofres públicos. Basta ver o malabarismo de políticos pela criação de mais fontes de receitas públicas e vinculação destas a suas bases eleitorais. A necessidade de aumentar a tributação decorre da ampliação dos gastos públicos, mas estes nem sempre são dirigidos para a maioria da população.

Tristemente constato que outra voz, quase 100 anos anterior a Oliver Holmes, vem se impondo na análise tributária no Brasil em face de todos esses desequilíbrios. Falo de John Marshall (1755-1835), também Juiz da Suprema Corte dos EUA, que no caso McCulloch v. Maryland, de 1819, declarou: “O poder de tributar envolve o poder de destruir.”

Fica a impressão que “a tributação como o preço da civilização” está superfaturada no Brasil atual, pois, da forma como vem sendo feito, estamos mais próximos do “potencial destrutivo do poder de tributar”. Marshall está vencendo Holmes. Triste.

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