Embargos Culturais

A trajetória de Tenório Cavalcanti, o “homem da capa preta”

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

6 de outubro de 2013, 8h01

Em 4 de março de 1965 o advogado Odir de Araújo protocolou Habeas Corpus em favor de Natalício Tenório Cavalcanti de Albuquerque[1]. O paciente estava preso desde 6 de julho de 1964, no Rio de Janeiro, por conta de decreto de prisão preventiva, em ação penal na qual era acusado de homicídio. O juízo originário entendeu pela impronúncia, por insuficiência de indícios, o que, no entender de Odir de Araújo, justificava a imediata soltura de seu cliente.

Tenório Cavalcanti foi um político que muito marcou o ideário popular da época em que viveu[2]. Conhecido como o “homem da capa preta”, em referência a capa que usava, e que escondia a metralhadora que usualmente carregava — a Lurdinha[3], Tenório nasceu no Alagoas, em área do município de Palmeira dos Índios, em 27 de setembro de 1906[4]. Perdeu o pai aos 12 anos. Foi para o Rio de Janeiro muito jovem, e lá no início sobreviveu de pequenos empregos. Alguma ligação com os Mangabeira da Bahia[5] o teria ajudado; administrou fazendas na região de Nova Iguaçu, onde foi eleito vereador em 1936, ano que antecede o golpe do Estado Novo de Getúlio Vargas.

Ainda que populista, próximo a grande apoio de grupos mais humildes, Tenório fez oposição a Vargas. Em 1945 filiou-se à União Democrática Nacional-UDN, o que o fez (por bom tempo) aliado de Carlos Lacerda, o maior inimigo de Vargas. Tenório conduziu um jornal, A Luta Democrática[6], também de forte apelo popular. Esforçado, formou-se em direito pela antiga Faculdade Nacional de Direito do Rio de Janeiro. Advogou em alguns casos polêmicos, a exemplo da defesa de Jorge Bandeira, no rumoroso caso da Rua Sacopã. Neste logradouro, no Rio de Janeiro, encontrou-se um corpo dentro de um automóvel, de onde a ligação do crime com a rua. O crime da Rua Sacopã agitou a imprensa e a opinião pública da época.

A presença de Tenório na UDN era de algum modo exótica. Sua performance como deputado mais o identificava com o ideal do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Tenório rompeu mais tarde com Lacerda, passando a militar num partido pequeno, o Partido Social Trabalhista (PST). Lacerda se queixava de Tenório, de quem estranhava “seu jornalzinho, a capa e a macumba[7]”. Sabia que o eleitor humilde se empolgava mais com Tenório do que com os outros políticos da UDN, a exemplo de Afonso Arinos ou de Milton Campos[8].

Em 1961 Tenório apoiou a posse de João Goulart, ao longo da encrenca que resultou da renúncia de Jânio Quadros. À época, aproximou-se de Leonel Brizola. Fora Tenório quem avisou que Goulart não deveria ir ao Automóvel Clube, em cerimônia que provocou os oficiais das Forças Armadas[9].

Tenório foi cassado em 1964. Quinze anos depois, em 1979, apoiou o último presidente da era militar, João Baptista de Oliveira Figueiredo. Três anos depois, em 1982, apoiou Moreira Franco — já não tinha mais nenhum vínculo com o brizolismo. Foi justamente após ter seu mandato de deputado federal cassado que Tenório fora denunciado em dois processos na comarca de Duque de Caxias. Da decisão de impronúncia recorrera o Ministério Público, recurso que fora recebido com efeito suspensivo. Alguma penumbra de perseguição política pode ser invocada, com o benefício do retrospecto histórico, dado que os crimes teriam sido cometidos em 1949 e 1952, isto é, uma década e meia antes da ordem de prisão.

O ministro Luiz Gallotti relatou o processo no Supremo Tribunal Federal. Indeferiu o pedido, embora tenha recomendado que o Tribunal de Justiça da Guanabara julgasse o caso, com urgência. Gallotti foi acompanhado por Evandro Lins, Hermes Lima, Victor Nunes, Cândido Motta e Hahnemann Guimarães. Os ministros Gonçalves de Oliveira e Vilas Boas concederam a ordem, forte na compreensão de que a prisão preventiva deveria ser decretada quando indícios houvesse, não vagos, mas certos, de que o crime fora imputado ao acusado.

O célebre “homem da capa preta” posteriormente escapou das condenações. Ainda que desenvolvendo intensa obra de aproximação popular, patrocinando vários programas de caridade e de inserção social, amargou o ocaso político. Já não era mais seu tempo. Faleceu em 5 de maio de 1987. Tenório Cavalcanti é personagem marcante de uma época ingênua, comparada com os dias de hoje.


[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Petição de Habeas Corpus nº 42.058- Rio de Janeiro.
[2] Tenório empolgava, com lendas, histórias e a tal da capa preta. Conferir passagem de BENEVIDES, Maria Victoria, A UDN e o Udenismo- ambiguidades do liberalismo brasileiro (1945-1965), Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 105.
[3] A biografia de Tenório Cavalcanti foi explorada em O Homem da Capa Preta, filme de Sérgio Rezende, estrelado por José Wilker.
[4] Os dados biográficos aqui citados foram colhidos em verbete redigido por Israel Beloch, no Dicionário Histórico=Biográfico Brasileiro pós-1930, Rio de Janeiro: Editora FGV; CPDOC, 2001, pp. 1292-1294.
[5] No caso específico, Otávio Mangabeira, que foi governador da Bahia e ministro das relações exteriores de Getúlio Vargas. Otávio era irmão de João Mangabeira, constitucionalista e importante político de meados do século XX. Otávio é avô de Roberto Mangabeira Unger, filósofo e ativista político que leciona na Harvard Law School.
[6] O jornal A Luta Democrática alcançava um público pouco intelectualizado, na impressão do brasilianista Foster Dulles. Conferir DULLES, John W. F., Carlos Lacerda, Brazilian Crusader-II- The Years 1960-1977, Austin: University of Texas Press, 1996, p.202.
[7] Cf. LACERDA, Carlos, Depoimento, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987, p. 252.
[8] Cf. BOJUNGA, Claudio, JK- O Artista do Impossível, S.L.: Objetiva, s.d., p. 540.
[9] Cf. FERREIRA, Jorge, João Goulart- uma Biografia, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 456.

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    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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