Diário de Classe

Do cubismo de Kelsen ao Direito curvo de Calvo González

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5 de outubro de 2013, 8h00

Calvo González é um jurista da mais alta erudição. Ele conhece quase tudo: Direito, política, economia, filosofia, sociologia, artes, música e, sobretudo, literatura. Quando não conhece, já leu algo a respeito. É impressionante sua capacidade de compartilhar seu conhecimento com sabedoria e humildade.

Reconhecido internacionalmente como um dos principais expoentes do estudo do Direito e Literatura, autor de dezenas de livros e centenas de ensaios e artigos científicos, professor catedrático de teoria e filosofia do direito da Universidad de Málaga, juiz do Tribunal Superior de Andalucía, Calvo González é, antes de tudo, um grande amigo.

Em seu conhecido blog, iurisdictio-lex malacitana, posta análises e observações, divulga os últimos lançamentos, comenta livros, indica cursos e eventos, enfim, registra suas descobertas e sua visão do mundo. O mesmo se aplica ao Facebook, onde nos conta suas andanças e compartilha as mais diversas experiências, além de acompanhar passo-a-passo aqueles que integram sua rede.

Nos encontramos em diversas oportunidades: primeiro, em Braga, ao norte de Portugal, numa banca de doutorado; depois, no Brasil, em Florianópolis — juntamente com Luís Carlos Cancellier de Olivo, Alexandre Morais da Rosa e Lenio Streck —; e, em seguida, no sul da Itália, em Benevento, onde o provoquei a respeito de uma metáfora que fizera certa vez: el Derecho curvo. Naquela ocasião, convidei-o para desenvolvê-la melhor em Passo Fundo, na conferência de abertura do I Colóquio Internacional de Direito e Literatura, que seria realizado na IMED, ainda em 2012.

O desafio foi aceito. E devidamente cumprido. Mais uma vez, Calvo surpreendeu a todos os presentes. O resultado não poderia ter sido melhor. A prova disso foi termos iniciado, imediatamente, a tradução das duas conferências por ele proferidas no Brasil, que resultaram na edição de um belo livro — intitulado Direito Curvo (Ed. Livraria do Advogado) —, com o qual se inaugura a Coleção “Diante da Lei”, por mim dirigida. O posfácio é assinado por Lenio Streck.

No primeiro ensaio, que dá nome ao volume, logo em sua epígrafe, o leitor se depara com uma citação de Nietzsche, que relaciona a verdade à curva. Logo em seguida, a premissa adotada vem de um conto de Machado de Assis, intitulado Sereníssima República, que retrata a política brasileira. O fragmento refere-se às geometrias retilínea, curvilínea e reto-curvilínea, que caracterizam os partidos políticos na República das Aranhas. E, a partir dele, Calvo conclui que as teorias jurídicas sobre os direitos são tão frágeis quanto teias de aranhas.

Na verdade, após o dilema posto pelo princípio do tertium non datur, representado através das distintas poesias de Le Corbusier e de Oscar Niemeyer — cujo único denominador comum é a ideia da geometria aplicada à arquitetura moderna —, Calvo apresenta seu objetivo central: explicar no que consiste o denominado direito curvo.

Para isto, o consagrado jurista espanhol desenvolve sua tese em quatro etapas, que são percorridas na agradável companhia de filósofos, escritores, pintores, artistas e juristas:

a) as aspirações geométricas dos juristas, impulsionadas pelo racionalismo cartesiano e pelo império da lógica dedutivista;
b) a relação entre a teoria pura do direito, de Hans Kelsen, e a ordem figurativa do cubismo;
c) as ondulações sofridas pelo direito a partir das concepções flexível, dúctil, frágil e solúvel, que surgem nas últimas décadas;
d) e, finalmente, o reconhecimento do paradigma do “direito curvo”.

Com efeito, entre retas e curvas, impressiona o modo como Calvo traça seu próprio itinerário, estabelecendo os mais inusitados pontos de contato entre Nietzsche, Machado de Assis, Niemeyer, Le Corbusier, Hobbes, Wolff, Descartes, Spinoza, Leibniz, Ortega y Gasset, Kelsen, Merkl, Schmitt, Picasso, Braque, Carbonnier, Zagrebelsky, Arnaud, Belley, Kandinsky, Mondrian, Reale e Borges.

Em suma: a construção deste novo paradigma jurídico — o Direito curvo — pressupõe um olhar que certamente transcende os limites do universo jurídico. E este, como se sabe, continua a ser o maior desafio dos juristas.

No segundo ensaio, intitulado Por uma teoria narrativista do direito, Calvo apresenta os pressupostos do modelo teórico que vem construindo desde o início a década de 1990, em diversas obras.

Seu ponto de partida é, precisamente, o poema The Man with the Blue Guitar (1957) — inspirado na obra El viejo guitarrista ciego (1903), de Picasso —, de autoria de Wallace Stevens, um renomado escritor modernista norte-americano, com formação jurídica, que exerceu a advocacia no início do século XX.

Muito embora não faça referência expressa a Gadamer, a teoria narrativista do Direito se estrutura sobre uma premissa hermenêutica: “não existem as coisas exatas como elas são”. Trata-se, com efeito, de uma teoria de viés antiobjetivista, antinaturalista, antiessencialista e, portanto, antimetodológico.

Como se sabe, desde os avanços trazidos pelo narrative turn às mais diversas disciplinas das ciências humanas e sociais — entre elas o Direito, onde surge a denominada narrative jurisprudence —, a aplicação da noção de “narrativa” à teoria jurídica assume duas linhas diversas, especialmente nas décadas de 80 e 90, ambas relacionadas à produção dos discursos jurídicos na construção da realidade processual.

Ocorre que, para Calvo, as aplicações narrativas operadas pelos juristas não devem ser confundidas com sua teoria narrativista do Direito. Isto porque, para ele, a coerência narrativa deve ser entendida como um mecanismo de construção dos sentidos, que poderá atuar exclusivamente na condição de critério de verossimilhança.

Assim, levando em conta que a “verdade dos fatos” é sempre o produto interpretativo da faticidade resultante de uma atividade discursiva de estrutura narrativa inventiva, destinada a justificar a melhor resposta, a teoria formulada por Calvo consiste no estudo das estruturas que, a partir do material fático e normativo, constroem as narrações.

Seu caráter crítico fica bastante nítido na medida em que a teoria não desconsidera o fato de que, muitas vezes, a atribuição de sentido implica uma série de elementos que conformam o horizonte de expectativas do intérprete. Neste contexto, um enunciado fático acaba por se tornar discursivamente coerente também a partir do influxo de subsistemas de sentido, como são a memória (individual) e o imaginário (social).

Assim, a teoria narrativista do direito da qual nos fala Calvo ajuda a compreender que nossos sistemas jurídicos são instalações ficcionais e, por vezes, hiperficcionais. O direito, conclui, é uma forma linguística ficcional de um mundo puramente textual. Ele habita nos discursos narrativos e, portanto, não está imune aos efeitos da ficcionalidade.

No final deste mês, Calvo González estará em Brasília (28/10), na companhia de Arnaldo Godoy, onde promoverá o lançamento do livro; e, depois, em Passo Fundo (30/10 a 1º/11), no II Colóquio Internacional de Direito e Literatura da IMED. Trata-se, certamente, de mais uma oportunidade para a comunidade jurídica brasileira dialogar com um dos juristas europeus mais importantes da atualidade. Warat recomendaria.

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