Atuação de pensadores

Princípios ganham importância no ordenamento jurídico

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4 de outubro de 2013, 8h05

Até pouco tempo, os princípios não eram considerados normas jurídicas, e a maior razão para isso era o receio de insegurança jurídica.

Exemplo nítido do papel secundário atribuído aos princípios na ordem jurídica é o disposto no art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (de 1942):

“Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.”

Como se sabe, o art. 4º da LINDB prevê métodos de integração do direito, ou seja, de suprimento de lacunas da lei. E, como se não bastasse, ainda era majoritário o entendimento de que analogia, costumes e princípios gerais do direito deveriam ser utilizados nesta ordem, de modo que os princípios somente entrariam em cena se não houvesse (i) regra específica para o caso concreto, nem (ii) regra hipoteticamente prevista para situações análogas, nem mesmo (iii) práticas reiteradas e geradoras do sentimento de obrigatoriedade.

Na mesma linha, ainda é possível citar o Código Tributário Nacional:

“Art. 108. Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada:

I – a analogia;

II – os princípios gerais de direito tributário;

III – os princípios gerais de direito público;

IV -a eqüidade.” (destaques acrescidos)

Felizmente, no entanto, atualmente os princípios ocupam lugar de destaque no ordenamento, graças, entre outros, a dois grandes pensadores: Ronald Dworkin e Robert Alexy, que colocaram os princípios como normas jurídicas, ao lado das regras.

Com efeito, superou-se o modelo puramente positivista, que privilegiava a segurança jurídica, tão cara ao Estado liberal e à emergente classe burguesa, que necessitava de segurança (em sentido amplo, inclusive a jurídica) para o desenvolvimento de suas atividades econômicas. E aqui peço licença para fazer uma breve digressão de ordem econômica: os riscos da atividade, porque configuram custos, são incorporados pelos empresários no preço dos produtos e serviços. Na medida em que se diminuem os riscos (entre os quais se inclui a insegurança jurídica), é possível diminuir os custos e aumentar os lucros.

No entanto, com o neoconstitucionalismo, cujo marco filosófico é o pós positivismo, tal sistema fechado de regras passou a ser inviável, mormente porque um sistema puro de regras peca pela dificuldade de concretização do valor justiça, em detrimento da segurança jurídica.

A relativização do sistema puro de regras se deu com a atribuição de normatividade aos princípios jurídicos, que adquirem, então, status de verdadeiras normas jurídicas. A propósito, Luis Roberto Barroso, parafraseando Jacob Dollinger e Dworkin, festeja os princípios, mormente os de ordem constitucional, ao afirmar que eles “são a porta pela qual os valores passam do plano ético para o mundo jurídico” e que “deixaram de ser fonte secundária e subsidiária do Direito para serem alçados ao centro do sistema jurídico. De lá, irradiam-se por todo o ordenamento, influenciando a interpretação e aplicação das normas jurídicas em geral e permitindo a leitura moral do Direito.” (páginas 203-204).

Sobre a dinâmica entre segurança jurídica e justiça, eis trechos da obra de Luis Roberto Barroso:

“[…] o principal valor subjacente às regras é a segurança jurídica. Elas expressam decisões políticas tomadas pelo constituinte ou pelo legislador, que procederam às valorações e ponderações que consideraram cabíveis, fazendo com que os juízos por eles formulados se materializassem em uma determinação objetiva de conduta. Não transferiram, portanto, competência valorativa ou ponderativa ao intérprete, cuja atuação, embora não seja mecânica – porque nunca é –, não envolverá maior criatividade ou subjetividade. Regras, portanto, tornam o Direito mais objetivo, mais previsível e, consequentemente, realizam melhor o valor segurança jurídica.

Princípios, por sua vez, desempenham papel diverso, tanto do ponto de vista jurídico como político-institucional. No plano jurídico, eles funcionam como referencial geral para o intérprete, como um farol que ilumina os caminhos a serem percorridos. De fato, são os princípios que dão identidade ideológica e ética ao sistema jurídico, apontando objetivos e caminhos. Em razão desses mesmos atributos, dão unidade ao ordenamento, permitindo articular suas diferentes partes – por vezes, aparentemente contraditórias – em torno de valores e fins comuns. Ademais, seu conteúdo aberto permite a atuação integrativa e construtiva do intérprete, capacitando-o a produzir a melhor solução para o caso concreto, assim realizando o ideal de justiça.” (páginas 208-209)

A partir dessa constatação, o professor Barroso afirma que “como o Direito gravita em torno desses dois grandes valores – justiça e segurança –, a ordem jurídica democrática e eficiente deve trazer em si o equilíbrio necessário entre regras e princípios”. Mais adiante, o mesmo professor adverte que, “no Brasil, a trajetória que levou à superação do positivismo jurídico – para o qual apenas as regras possuiriam status normativo– foi impulsionada por alguns exageros principialistas, na doutrina e na jurisprudência” (página 209).

Feita essa introdução, passamos a ver as principais diferenças entre as regras e os princípios apontadas pela doutrina.

Robert Alexy ressalta que existem vários critérios para se distinguir regras de princípios. O primeiro critério analisado é o da generalidade, segundo o qual os princípios seriam normas gerais e as regras seriam normas especiais. Exemplo de princípio dado por Alexy, segundo o critério da generalidade: “todos gozam de liberdade de crença”; exemplo de regra dado por Alexy, ainda segundo o critério da generalidade: “todo preso tem o direito de converter outros presos à sua crença”.

Alexy ainda cita, sem, no entanto, analisá-los, os seguintes critérios distintivos:

“[…] Outros critérios discutidos são ‘a determinabilidade dos casos de aplicação’, a forma de seu surgimento – por exemplo, por meio da diferenciação entre normas ‘criadas’ e normas‘desenvolvidas’ –, o caráter explícito de seu conteúdo axiológico, a referência à idéia de direito ou a uma lei jurídica suprema e a importância para a ordem jurídica. Princípios e regras são diferenciados também com base no fato de serem razões para regras ou serem eles mesmos regras, ou, ainda, no fato de serem normas de argumentação ou normas de comportamento.”

Após apresentar os critérios listados acima, Robert Alexy faz referência a três possíveis teses acerca da distinção entre regras e princípios:

1) “A primeira sustenta que toda tentativa de diferenciar as normas em duas classes […] seria, diante da diversidade existente, fadada ao fracasso.”; isso porque os critérios poderiam ser combinados da maneira como quisesse o intérprete, o que geraria muito subjetivismo e pouca ou nenhuma objetividade na análise;

2) A segunda tese é a adotada pelos autores que aceitam a existência de distinção entre regras e princípios, mas afirmam que tal distinção seria apenas de grau;

3) A terceira corrente aceita a diferenciação entre regras e princípios e afirma que, além da generalidade, há entre as duas espécies de normas uma diferença qualitativa. É a essa terceira corrente que se filia Robert Alexy.

Para Alexy, portanto, o critério mais seguro e objetivo para diferenciar regras de princípios é o qualitativo, não o quantitativo (grau de generalidade). Nessa linha, afirma-se que os princípios são mandamentos de otimização, devendo ser satisfeitos na maior medida possível dentro das possibilidades fáticas e jurídicas existentes. Já as regras ou são satisfeitas ou não são satisfeitas (tudo ou nada). Oportuno transcrever trecho da obra de Alexy:

“O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes.

 Já as regras são normas que são sempre satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível. Isso significa que a distinção entre regras e princípios é uma distinção qualitativa, e não uma distinção de grau. Toda norma é ou uma regra ou um princípio.”

Outro doutrinador que necessitamos visitar é Canotilho, que já inicia sua análise reconhecendo que a distinção entre regras e princípios “é uma tarefa particularmente complexa” (página 1160) e apresentando os seguintes critérios distintivos (que ora apresentamos sinteticamente):

a) Grau de abstração: já explicado acima;

b) Grau de determinabilidade: os princípios, por serem vagos e indeterminados, reclamam mediação concretizadora, enquanto as regras podem ser aplicadas diretamente;

c) Caráter de fundamentalidade: os princípios são normas estruturais e fundamentais no ordenamento jurídico;

d) Proximidade da ideia de direito: os princípios estariam mais próximos da ideia e do sentimento de justiça (Dworkin) e de direito (Larenz), enquanto as regras podem ter conteúdo meramente funcional;

e) Natureza normogenética: os princípios estariam na gênese das regras, ou seja, “estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamentante”.

Logo após apresentar esse rol de critérios, Canotilho diferencia princípios hermenêuticos de princípios jurídicos. Estes (jurídicos) são os que interessam ao nosso artigo. Os hermenêuticos são princípios que desempenham uma função retórico-argumentativa, não configurando normas de conduta.

Por fim, o doutrinador português sintetiza com primor os principais critérios que diferenciam qualitativamente os princípios das regras, in verbis:

“Os princípios são normas jurídicas impositivas de uma optimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condicionalismos fácticos e jurídicos; as regras são normas que prescrevem imperativamente uma exigência (impõem, permitem ou proíbem) que é ou não é cumprida (nos termo de Dworkin: applicable in all-or-nothing fashion); a convivência dos princípios é conflitual (Zagrebelsky), a convivência das regras é antinómica; os princípios coexistem, as regras antinómicas excluem-se. Consequentemente, os princípios, ao constituírem exigências de optimização, permitem o balanceamento de valores e interesses (não obedecem, como as regras, à lógica do tudo ou nada), consoante o seu peso e a ponderação de outros princípios eventualmente conflituantes; as regras não deixam espaço para qualquer outra solução, pois se uma regra vale (tem validade) deve cumprir-se na exacta medida das suas prescrições, nem mais nem menos. Como se verá mais adiante, em caso de conflito entre princípios, estes podem ser objecto de ponderação e de harmonização, pois eles contêm apenas exigências ou standards que, em primeira linha (prima facie), devem ser realizados; as regras contêm fixações normativas definitivas, sendo insustentável a validade simultânea de regras contraditórias. Realça-se também que os princípios suscitam problemas de validade e peso (importância, ponderação, valia); as regras colocam apenas questões de validade (se elas não são correctas devem ser alteradas).” (páginas 1161-1162)

Por fim, cumpre registrar que o modo de aplicação das regras é o de subsunção, por meio do qual se enquadra o fato à norma e retira-se uma conclusão objetiva. Havendo conflito de regras, tradicionalmente se aplicam os critérios (i) hierarquico, (ii) temporal e (iii) da especialização. Já a colisão de princípios é solucionada pelo método da ponderação, que busca verificar qual o princípio de maior peso naquele caso concreto e aplicar os princípios colidentes na máxima medida possível, dentro dos parâmetros de justiça (o objetivo seria não aniquilar nenhum princípio, nem mesmo o de menor peso. No entanto, há manifestações doutrinárias afirmando a possibilidade de aniquilamento eventual de um determinado princípio, a depender dos condicionamentos fáticos).

BIBLIOGRAFIA:

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo – Os Conceitos Fundamentais e a Construção do Novo Modelo. São Paulo: Saraiva, 2009.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.

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