Preconceito e desinformação

Questão do teto remuneratório é fonte de factoides

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1 de outubro de 2013, 12h52

Anunciada com pompa e circunstância, inclusive com uma incomum presença do Presidente do TCU no Senado, para “entregar a decisão” ao presidente do Senado, o acórdão da Corte de Contas da União, que determinou a aplicação do “corte de teto” e a “devolução dos valores percebidos indevidamente nos últimos cinco anos” pelos servidores expõe uma das mais antigas práticas da administração pública brasileira: a demagogia.

Como não se consegue, por absoluta paralisia dos Poderes da República, dar uma resposta satisfatória à população acerca das verdadeiras necessidades do país como crescimento econômico, segurança jurídica, saúde de qualidade, segurança pública, educação verdadeira, combate à corrupção, etc., parte-se para o ataque àqueles segmentos sociais menos organizados (como os aposentados, já adjetivados de “vagabundos” por um presidente da República) ou, no caso da decisão referida, aos segmentos sociais vistos como “privilegiados” (como os servidores públicos, já rotulados de “marajás” por outro presidente da República), para os quais é fácil desviar a atenção dos reais problemas da nação, que ficam, assim, varridos para “debaixo do tapete”.

Não se questiona que o recebimento de valores acima do teto remuneratório é vedado expressamente pelo artigo 37, inciso XI, da Magna Carta, cuja redação, aparentemente, não deveria deixar dúvida alguma. Também não são defensáveis “supersalários”. Mas falta bom senso e espírito republicano na análise da questão e a imprensa mais desinforma que informa.

Ressalvados os casos de percepção de verbas indenizatórias que, por sua própria natureza, evidentemente, não devem integrar o teto, já que se destinam apenas a recompor o patrimônio em razão de alguma despesa em razão do serviço público realizado como viagens, diárias e ajudas de custo, verifica-se que o ponto central da questão do teto remuneratório não é enfrentado e sua solução está delegada a um futuro e incerto consenso sobre como remunerar de forma justa os agentes públicos, à vista da inegável qualificação profissional ostentada por alguns segmentos do funcionalismo.

Em sendo assim, grassam no país interpretações sobre a matéria que revelam estar ainda a questão do teto remuneratório mal resolvida, constituindo-se em fonte de factoides como o visto no estrondoso anúncio do Tribunal de Contas no Senado da República.

E quem pode se defende.

Cita-se, apenas como exemplo, a interpretação extensiva acerca das verbas submetidas ao teto remuneratório iniciada pelo próprio Supremo Tribunal Federal que, em sessão administrativa de 5 de fevereiro de 2004, entendeu ser possível a percepção, por ministro daquela Corte, da verba eleitoral, acima do teto, quando em exercício do Tribunal Superior Eleitoral, por se tratar de uma “cumulação permitida pela Constituição” e para evitar uma “injusta carga” sobre os Juízes em razão de “ônus funcional mais gravoso sem a devida contraprestação”.

Este justo entendimento, diga-se, aplica-se a todos os magistrados, da Justiça Federal e Comum, que atuam na Justiça Eleitoral, bem como aos membros do Ministério Público, em idênticas condições. Portanto, não é uma interpretação aplicável apenas a três ministros do STF, eventualmente no TSE, mas, sim, entendimento com consequências em todo o país em relação a milhares de magistrados e promotores atuantes na Justiça Eleitoral que, de fato, não podem assumir responsabilidade maiores, e mais trabalho, sem receber por isso.

Por outro lado, no âmbito do próprio Poder Legislativo verificam-se interpretações igualmente legítimas como as que deram origem ao factoide alardeado por toda a imprensa brasileira como a “solução de todos os problemas nacionais”, esquecendo-se, talvez, de que a má imagem da instituição não se deve aos seus servidores, mas, sim, ao fato de alguns de seus mais ilustres membros ocuparem, vez por outra, páginas de triste memória de nossa história.

Existia no âmbito do Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado), e com variações em cada Casa, interpretação razoável segundo a qual o teto deveria ser calculado de forma independente em relação a cada cargo ocupado pelo servidor, observadas as cumulações permitidas, como, por exemplo, as chefias e as assessorias, tanto quanto aos ministros do STF quando em exercício no TSE. Maior responsabilidade, maior remuneração. Justo.

Portanto, em sendo razoável o entendimento administrativo no âmbito do Senado da República, em existindo, inclusive, interpretação do Supremo Tribunal Federal na matéria, no sentido de se excluírem do teto parcelas remuneratórias decorrentes de cumulações permitidas como verba eleitoral e cumulação de magistrado com um cargo público de professor, não faz qualquer sentido, agora, acoimar de ilegal a percepção de remuneração “acima do teto” por alguns dos servidores da Câmara Alta determinando o ressarcimento ao erário de tais valores.

Não se nega à administração o direito à modificação do entendimento que vinha até então adotando e aplicando aos seus servidores, afinal, como tudo na vida, o direito é dialético, ou seja, nem sempre, nem nunca. Aliás, é dever do administrador público anular os atos administrativos tidos por ilegais, nos termos dos enunciados 346 e 473 do Supremo Tribunal Federal.

A maneira preconceituosa, e apriorística, como a matéria vem sendo tratada vem produzindo efeitos colaterais deletérios em toda a administração pública já que não há incentivo algum para os servidores públicos mais qualificados assumirem cargos de chefia e direção.

À vista da notória especialização dos servidores do Senado Federal é até natural que alguns percebam remuneração muito próxima do teto do Supremo Tribunal Federal e estas pessoas dificilmente concordam em assumir maiores responsabilidades, como, por exemplo, uma chefia, ou uma função, sem a devida contraprestação.

Sim. Porque a consequência prática da decisão do TCU, não somente no Senado, mas em todo o serviço público do país, é afastar os servidores mais experientes e, teoricamente, mais preparados para as funções de liderança do exercício de tais atividades já que, em grande parte dos casos, não se perceberá um centavo a mais pelo encargo assumido.

Aliás, é comum a existência de servidores no âmbito do primeiro escalão dos governos federal, estadual, distrital e municipal, que nada percebem pelo exercício de relevantes funções como, por exemplo, ministros e secretários de Estado e isto não é noticiado. Portanto, o entendimento obtuso a respeito do teto afastam os servidores técnicos das funções de maior relevância no âmbito da administração posto que, na imensa maioria dos casos, tais responsabilidades são assumidas sem qualquer contraprestação.

A ausência de uma política séria de remuneração de pessoal no âmbito do Poder Público também é um dos motivos pelos quais não se conseguem preencher cargos de médicos, e de outros profissionais da área de saúde, no Brasil, como dentistas, fisioterapeutas, enfermeiros, nos mais diversos níveis de governo.

É fato inconteste que a remuneração de tais profissionais é mais atraente na iniciativa privada sendo que muitos preferem perceber remuneração menor nos grandes centros urbanos, do que ir para as localidades pequenas e afastadas. Aliás, o teto nos municípios, por força do dispositivo constitucional em referência, é o do prefeito, situação que limita, em muito, a remuneração percebível pelo profissional em tais unidades federativas.

Como se vê, o quadro é amplo, e a falta de seriedade na discussão da questão esconde preconceitos, desinformação, demagogia e má-vontade, sobretudo daqueles que têm a responsabilidade de apontar os caminhos do país e produzir para a sociedade uma administração pública que, ao lado de reconhecer seus servidores, tendo em conta sua qualificação profissional, não descambe para a criação de privilégios.

Além disso, a decisão do Tribunal de Contas da União de determinar a devolução dos valores percebidos “indevidamente”, segundo esta nova orientação, é absolutamente destoante dos entendimentos do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça na matéria, que somente permitem o ressarcimento nos casos de comprovada má-fé do servidor.

Tal decisão da Corte de Contas da União certamente será objeto de questionamentos judiciais, até mesmo por força da obrigatoriedade do devido processo legal, em relação a cada servidor, para que afiram as condições pessoais de cada um. Além disso, como dito, parcelas remuneratórias percebidas de boa-fé não são repetíveis e não tem qualquer cabimento proceder-se a descontos manu militari; ou seja, é preciso verificar a existência, ou não, de má-fé do servidor, através do devido processo lega, para que, então, se faça a cobrança dos valores recebidos “irregularmente”.

Outrossim, desconto em contracheque somente é permitido com a autorização expressa do servidor. Fora disso, configurada a necessidade de devolução dos valores, há que se proceder à notificação para pagamento voluntário sob pena de se proceder à inscrição em dívida ativa, nos termos do artigo 46 da lei 8.112/1990.

Portanto, o anúncio do “combate aos marajás” realizados pelas altas autoridades da República, longe de representar a solução para os problemas de remuneração e teto no âmbito do serviço público, é mais uma “satisfação”, um “factoide”, uma “cortina de fumaça”, que longe de resolver o problema agrava-o e eterniza-o com a consequente judicialização de uma questão que já deveria estar resolvida pelo Poder Legislativo.

É a velha e conhecida política do pão e circo.

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