Palocci inocentado

Nem só notícia ruim é boa notícia

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1 de outubro de 2013, 6h49

Na edição de 15 de setembro passado, o jornal O Estado de S. Paulo deu um exemplo de que nem só notícia ruim é boa notícia. Um homem de Estado ser investigado — e já nesta fase, prejulgado e antecipadamente condenado pelas ruas — produz manchetes. Mas o arquivamento de investigações em que já se augurava dura sentença condenatória merece, quando muito, singela nota de rodapé. O Estado contrariou — no mais democrático sentido do termo — esta regra tão difundida ao estampar em meia página da edição nobre de domingo a notícia de que o ex-ministro Antônio Palocci Filho foi inocentado não só das acusações mas também das suspeitas da prática de ilícitos fiscais, que antes circularam com grande estrépito e a mancheias.

Mesmo o Ministério Público, que em alguns dos seus setores nos tem remetido a uma personagem multimovente do escritor francês Ponson du Terrail (“Montou no cavalo e saiu galopando em todas as direções”), cedeu, superiormente, à força dos fatos, não propriamente ao importante instituto exculpatório da “falta de provas”. Mas, por intermédio do insigne promotor de justiça Edmilson Andrade Arraes de Melo, curvou-se ao resultado das apurações da Fazenda Pública e chancelou a constatação oficial de que a empresa e a movimentação financeira do ex-ministro atenderam rigorosamente às exigências da lei. Se provas apareceram foi para inocentar o acusado.

Ainda pretendeu-se, por zelo persecutório, averiguar-se a apuração de lavagem de ativos, mas o intento mostrou-se inexequível, eis que anteriormente houvera decisão da Procuradoria-Geral da República que realizou exaustiva investigação sobre o assunto e concluiu pelo arquivamento do expediente.

Alvejado por uma saraivada de setas envenenadas, Antônio Palocci preferiu deixar o cargo de ministro-chefe da Casa Civil da Presidência da República, em junho de 2011, e aguardar na solidão absoluta da planície o resultado de investigação instaurada contra sua pessoa. Arquivada esta, faz-se necessária a mais ampla divulgação da decisão terminativa proferida pelo erudito magistrado Eduardo Pereira dos Santos Júnior, para que ao menos se mitigue, de vez que não apaga jamais, o malefício causado por açodadas acusações sem lastro e divulgação de suspeitas infundadas. É fácil aquilatar o sofrimento pessoal, o constrangimento familiar, a vergonha do opróbrio imputado, o peso da suspeita em circulação, que aquele contra quem se dirigem sabe injustos e incabíveis, mas que se espalham como as penas do travesseiro da calúnia aberto no alto de uma torre e entregues à difusa flutuação.

Aguardamos para verificar se o furo do Estado repercutiria em outros meios de comunicação — e, vã esperança, guardando proporção com as manchetes incriminadoras. Mas só avistamos tradicionais tópicos de pé de página, nem de longe similares ao quanto veiculado com viés incriminatório. Parecem mais o que determinado especialista conceitua de “notícia-epitáfio”: aquela publicada para enterrar o assunto. Ao contrário do que muitos acreditam, reparação não é desonra. É antes grandeza e sobretudo uma democrática salvaguarda para prevenir a repetição do erro cometido e agora reparado.

Os que condenam por antecipação nem precisam, por indigência jurisdicional, ser confrontados com a antiga e extensa sabedoria do Direito Penal. Para estes, basta citar o samba de Noel Rosa: “Primeiro é preciso julgar pra depois condenar.” Para tanto existe o devido processo legal, que se baseia exclusivamente em normas garantistas, limitadoras do poder que desborda, e que almeja a verdadeira reconstrução histórica dos fatos, pois a justiça é realizada com a verdade dos fatos. É uma peça de carpintaria a ser construída com material sólido e de boa procedência. Evidências e indícios são madeira bruta a ser lavrada; pontos de partida, não de conclusões. Suposições, insinuações, irresponsabilidades retóricas do tipo “só pode ser”, “tudo indica” não cabem no rigor do processo, que repugna a prospecção divinatória do talvez, do quem sabe…

Não têm mais lugar na história os métodos de Pilatos, que julgou — sem julgar — o mais célebre de todos os réus em plena praça pública, consultando o povo hostil para pronunciar o veredito, e são incompatíveis com o estado democrático de direito e o atual estágio da nossa civilização os métodos de Lynch com suas execuções sumárias.

Se a Justiça é cega, o processo legal deve ser surdo ao ulular das ruas. Dos três poderes que constituem a República, sobretudo o Legislativo deve ter o ouvido atento à voz do povo. O Executivo, em menor escala, pois decisões impopulares às vezes são inevitáveis e necessárias. Já o Judiciário só pode servir um senhor: a lei democrática, bússola da Justiça.

Nesses episódios dolorosos, nunca é ocioso invocar a obra de Rui Barbosa, não só jornalista e jurisconsulto, mas homem de Estado vilipendiado em seu tempo, bravo opositor da “execrável justiça das ruas”. Rui prezou como poucos, em suas palavras, “as vastas e poderosas camadas populares, em cujo seio se elabora a consciência, a virtude e a riqueza das nações”, mas negou a César o que era de Deus: se as “hordas sanguissedentas” querem substituir o processo legal, “bem se podia logo entregar ao populacho das ruas a administração pública, e confiar aos contínuos dos tribunais a distribuição da justiça.”

Eis uma lição perene, que acaba de ser posta em prática pelo douto ministro Celso de Melo num momento em que a mais alta corte do país é acossada pelo “clamor das ruas”. Em voto decisivo, o ministro observou que não deve o Supremo Tribunal Federal (nem qualquer outro juiz ou tribunal, acrescemos nós) se submeter aos juristas de passeata.

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