Observatório Constitucional

Jurisprudência sobre perda de mandato tem de ser clara

Autor

  • José Levi Mello do Amaral Júnior

    é professor associado de Direito Constitucional da USP professor do mestrado e do doutorado em Direito do Ceub livre-docente doutor e mestre em Direito do Estado procurador da Fazenda Nacional cedido ao TSE e secretário-geral da Presidência do TSE.

30 de novembro de 2013, 7h01

Spacca
A Constituição de 1988, no que se refere à perda de mandato parlamentar por força de condenação criminal, não adota conjunto normativo muito claro. Recentes decisões do Supremo Tribunal Federal em duas Ações Penais e em um Mandado de Segurança trouxeram ainda maiores dificuldades ao problema.

Introdução ao assunto
A Constituição de 1988 veda a cassação de direitos políticos, mas admite que sejam eles perdidos ou suspensos em algumas poucas hipóteses, como, por exemplo, a condenação criminal transitada em julgado[1].

Por outro lado, dentre as hipóteses de perda do mandato parlamentar, estão: (i) a suspensão dos direitos políticos; e (ii) a condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos[2].

No contexto até aqui narrado talvez pareça evidente que da condenação criminal transitada em julgado — quando relativa a parlamentar — decorra, ao natural (ou seja, como efeito da própria condenação), a perda do mandato parlamentar: isso porque o mandato pressupõe o gozo de direitos políticos, o que não se tem com a suspensão desses advinda do trânsito em julgado da condenação criminal.

No entanto, o próprio texto constitucional faz duas colocações potencialmente conflitantes: (i) no caso de suspensão dos direitos políticos, “a perda será declarada pela Mesa da Casa respectiva”[3]; e (ii) no caso de condenação criminal transitada em julgado, “a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal”[4].

Dito de outro modo: (i) no geral dos casos, em se tratando de suspensão dos direitos políticos, a perda do mandato é automática e será apenas declarada pela Mesa da Casa respectiva; (ii) porém, no caso de condenação criminal transitada em julgado — não obstante dela decorra suspensão dos direitos políticos — a perda do mandado fica sujeita a uma decisão da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal.

Essa questão foi enfrentada recentemente pelo Supremo Tribunal Federal nos autos de duas Ações Penais, a Ação Penal n. 565/RO (caso Ivo Cassol) e a Ação Penal 470/MG (rumoroso caso “mensalão”), mas que conheceram soluções divergentes dada a ocorrência de variação na composição da Corte no interstício havido entre uma decisão e outra. Em um terceiro caso (caso Donadon), insinua-se, ainda, um desdobramento no mínimo curioso, inclusive porque parece implicar inovação ao Direito aplicável. É o que se passa a examinar.

Condenação criminal e perda de mandato parlamentar no caso mensalão
No julgamento da Ação Penal n. 470/MG, relator o ministro Joaquim Barbosa, julgada em 17 de dezembro de 2012, relativa a graves crimes contra a Administração Pública, o relator sustentou que a previsão constitucional acerca de decisão da Câmara ou do Senado sobre perda de mandado de parlamentar condenado criminalmente “justifica-se (…) nas hipóteses em que a sentença condenatória não tenha decretado a perda do mandato pelo parlamentar, seja por não estarem presentes os requisitos legais para tanto (…), seja por ter sido proferida antes da expedição do diploma”. Para ele, “o procedimento estabelecido no art. 55 da Constituição da República disciplina as hipóteses em que, por um juízo político, pode ser decretada a perda de mandato eletivo parlamentar. (…) Situação inteiramente diversa, porém, é aquela que envolve a decretação da perda do mandado eletivo pelo Poder Judiciário, que pode atingir não apenas o parlamentar eleito como qualquer outro mandatário político, seguindo normas específicas de direito penal e processual penal. (…) Condenado o Deputado ou Senador, no curso de seu mandato, pela mais alta instância do Poder Judiciário nacional, inexiste espaço para o exercício de juízo político ou de conveniência pelo Legislativo, pois a suspensão de direitos políticos, com a subsequente perda de mandato eletivo, é efeito irreversível da sentença condenatória (…)”.

Por sua vez, o ministro Ricardo Lewandowski, funcionando como revisor, abriu divergência. Para ele, “a condenação criminal (…) configura apenas uma condição necessária, mas não suficiente, para a perda dos respectivos mandatos, a qual depende da instauração do competente processo na Câmara, que não pode deixar de fazê-lo, se devidamente provocada”.

A ministra Rosa Weber, ao acompanhar a divergência, argumentou que “o juiz competente para julgar sobre o exercício do poder político, do poder de representação, em uma democracia, é o povo soberano, que o faz diretamente (caso de democracias cujas Constituições preveem o instituto do recall) ou por meio de seus representantes (caso da hipótese prevista no art. 55, VI e § 2o, da Constituição brasileira)”. Para ela, “o mandato se reveste, durante o período para o qual constituído, da qualidade da intangibilidade, somente podendo ser afetado nas hipóteses e segundo os procedimentos expressamente previstos pela Constituição”.

O ministro Gilmar Mendes buscou harmonizar as diversas disposições constitucionais pertinentes. Sustentou que a condenação de parlamentar por crimes contra a Administração Pública — crimes esses que dificilmente deixam de ser considerados atos de improbidade administrativa (e improbidade administrativa também é causa de perda ou suspensão de direitos políticos[5]) –, em que o próprio juiz assenta a perda do mandato, impõe-se à Casa parlamentar competente a mera declaração da perda do mandato parlamentar.

O ministro Marco Aurélio afirmou considerar automáticos os efeitos do art. 15, III, da Constituição brasileira de 1988. Também defendeu que o parágrafo 2o artigo 55 da Constituição brasileira de 1988 “é reservado a situações concretas em que não se tem, como consequência da condenação, a perda do mandato”.

Enfim, o ministro Celso de Mello disse concordar com a distinção feita pelo ministro Gilmar Mendes, qual seja, remanescem na esfera das Casas legislativas os casos em que o crime pelo qual foi condenado o parlamentar não contém, como elementar típica do tipo penal, ato de improbidade administrativa. Enfatizou a prevalência de decisão transitada em julgado, que guarda relação com a concepção mesma de Estado Democrático de Direito. Destacou que a Constituição brasileira de 1988 confere ao Supremo Tribunal Federal o monopólio da última palavra em tema de exegese das normas constitucionais. Encerrou afirmando que “a insubordinação legislativa ou executiva ao comando emergente de uma decisão judicial revela-se comportamento intolerável, inaceitável e incompreensível”.

O resultado do julgamento no ponto foi por maioria apertada, cinco votos contra quatro, para decretar a perda do mandato dos parlamentares julgados.

Condenação criminal e perda de mandato parlamentar no caso Donadon
No julgamento da Ação Penal 565/RO, relatora a ministra Cármen Lúcia, julgada em 8 de agosto de 2013, em que figura como réu um Senador[6], a jurisprudência foi modificada. Dois novos ministros, Teori Zavascki e Roberto Barroso, aderiram ao entendimento vencido na Ação Penal 470.

Por outro lado, semanas antes, em 26 de junho de 2013, transitara em julgado a Ação Penal 365/RO, relatora a ministra Cármen Lúcia, julgada em 28 de outubro de 2010, em que figurava como réu um Deputado Federal[7]. O parlamentar foi recolhido à penitenciária logo após o trânsito em julgado. Em 28 de agosto de 2013, a Câmara dos Deputados votou a perda do mandato do parlamentar: foram 233 favoráveis à perda, 131 contrários e 41 abstenções, resultado insuficiente para a perda do mandato (que demanda voto da maioria absoluta dos membros da Casa[8], ou seja, 257 votos no caso da Câmara dos Deputados).

Configurou-se, então, a inusitada situação de cidadão detentor de mandato parlamentar preso no cumprimento de decisão transitada em julgado.

Contra a decisão da Câmara dos Deputados, Líder de partido de oposição impetrou o Mandado de Segurança n. 32.326/DF, relator o ministro Roberto Barroso, pendente de julgamento plenário. O relator, em decisão monocrática proferida em 2 de setembro de 2013, concedeu liminar para suspender a deliberação da Câmara dos Deputados que não cassou o parlamentar condenado e preso[9].

Para o relator, “quando se tratar de Deputado cujo prazo de prisão em regime fechado exceda o período que falta para a conclusão de seu mandato, a perda se dá como resultado direto e inexorável da condenação, sendo a decisão da Câmara dos Deputados vinculada e declaratória”.

A propósito, vale conferir os seguintes excertos do despacho:

36. De acordo com a legislação em vigor e a interpretação judicial que lhe tem sido dada, o preso em regime aberto e semiaberto pode ser autorizado à prestação de trabalho externo, independentemente do cumprimento mínimo de 1/6 da pena. Este tem sido o entendimento pacífico do Superior Tribunal de Justiça, podendo-se citar, exemplificativamente, os acórdãos proferidos no HC 251.107 e no HC 255.781, ambos julgados este ano. Por outro lado, no tocante ao preso em regime fechado, a Lei de Execuções Penais (arts. 36 e 37) não apenas restringe o trabalho externo como exige o cumprimento mínimo de 1/6 (um sexto) da pena. Reiterando: o preso em regime fechado tem restrições severas ao trabalho externo, além de não poder prestá-lo antes do cumprimento do sexto inicial da pena.

37. Disso resulta que o condenado em regime inicial fechado, cujo período remanescente de mandato seja inferior a 1/6 (um sexto) da pena a que foi condenado – isto é, ao tempo mínimo que terá de permanecer necessariamente na penitenciária (LEP, art. 87) –, não pode conservar o mandato. É que, nessa situação, verifica-se uma impossibilidade jurídica e física para o exercício do mandato. Jurídica, porque uma das condições mínimas exigidas pela Constituição para o exercício do mandato é o comparecimento às sessões da Casa (CF, arts. 55, III, e 56, II). E física, porque ele simplesmente não tem como estar presente ao local onde se realizam os trabalhos e, sobretudo, as sessões deliberativas da Casa Legislativa. Veja-se, então: o mandato do Deputado Natan Donadon terminaria em 31.01.2015, isto é, cerca de 17 (dezessete) meses após a deliberação da Câmara, que se deu em 28.08.2013. Porém, 1/6 da sua pena de 13 anos, 4 meses e 10 dias corresponde a pouco mais de 26 meses. Logo, o prazo de cumprimento de pena em regime fechado ultrapassa o período restante do seu mandato.

O relator, ao final do despacho, explicita que tomou em consideração “a gravidade moral e institucional (…) de uma decisão política que (…) chancela a existência de um Deputado presidiário”. Também faz expressa referência à “indignação cívica”, à “perplexidade jurídica”, ao “abalo às instituições” e ao “constrangimento” que a situação gera aos Poderes constituídos, fatores esses que, segundo o Relator, “legitimam a atuação imediata do Judiciário”[10].

Parece bastante claro que essa decisão monocrática – abstraindo a circunstância de haver suspendido uma não-decisão: a decisão pela não-perda do mandato de parlamentar preso – decorreu de interpretação bastante construtiva. Tanto isso é verdade que o ministro Gilmar Mendes afirmou que o despacho implicaria um “mandato salame”, de cumprimento fatiado, na medida em que o parlamentar progredisse de regime prisional[11].

Conclusão
Mandato parlamentar é algo da maior importância, mormente em um regime democrático. Sua cassação arbitrária não tem lugar e sua perda não deve ser uma ocorrência banalizada. De modo acertado, não é essa a prática brasileira, que revela um escrutínio judicial prudente, respeitoso à dignidade da função parlamentar. Há, aqui, uma interação construtiva entre Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal, com pequenas fricções ocasionais, mas saudáveis à melhor definição dos limites decisórios de cada instituição.

Por outro lado, as variações de entendimento jurisprudencial sobre como se dá a perda do mandato após condenação criminal de parlamentar com trânsito em julgado não são desejáveis, mas compõem quadro próprio a assunto novo, mormente em face do ingresso natural de novos membros na Corte.

Essencial, no contexto, é defender de modo bastante claro e firme o próprio Congresso Nacional como instituição fundamental do regime democrático que é. Compreensivelmente isso implica, por vezes, decisões do Supremo Tribunal Federal — como árbitro do jogo institucional — que repercutem, de algum modo, sobre o mandato parlamentar. Claro, daí não pode decorrer vulneração das prerrogativas decisórias próprias às instituições parlamentares (o que não parece ser o caso no quadro posto). De toda sorte, melhor seria que houvesse uma definição jurisprudencial clara e final acerca do texto constitucional aplicável (ou que fosse ele ajustado para eliminar qualquer dúvida).


[1] Constituição brasileira de 1988, art. 15, incisos III.
[2] Constituição brasileira de 1988, art. 55, incisos IV e VI.
[3] Constituição brasileira de 1988, art. 55, § 3o.
[4] Constituição brasileira de 1988, art. 55, § 2o.
[5] Constituição brasileira de 1988, art. 15, inciso V.
[6] Ivo Cassol, eleito pelo Estado de Rondônia.
[7] Natan Donadon, eleito pelo Estado de Rondônia.
[8] Constituição brasileira de 1988, art. 55, § 2o.
[9] Inteiro teor neste link.
[10] Há outras declarações do ministro Roberto Barroso sobre a influência da “opinião pública”. A propósito, entrevista publicada em 3 de novembro de 2013 na revista jurídica eletrônica Consultor Jurídico neste link.
[11] A declaração foi publicada, por exemplo, no jornal Folha de S.Paulo, de 4 de setembro de 2013, editoria “Poder”.

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