Justiça com desconto?

Conciliação é útil, mas não deve atrair conflito artificial

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30 de novembro de 2013, 10h05

O problema da facticidade (Habermas) ou eficácia (Bobbio) da legislação do trabalho e suas repercussões, por exemplo, na Justiça do Trabalho, é fenômeno que comporta exame multifatorial, perpassando não somente os aspectos culturais, mas também a própria forma como seus atores e destinatários se comportam e concretizam suas ações.

Nesse contexto, os agentes pautam suas agendas por racionalidades que se constituem a partir da tensão entre faticidade e validade do Direito, na medida em que ajustam ações estratégicas, quanto ao cumprimento da norma, de acordo com suas convicções ou em conformidade com os mecanismos de coerção que se projetam sobre o tecido social.

Nas palavras de Aylton Durão, sintetizando Habermas,

no nível da norma jurídica, os destinatários do Direito podem obedecê-la por temor da coerção prevista em lei, proveniente de sua vigência social (faticidade) ou pela convicção que procede do reconhecimento de sua legitimidade (validade), porque o Direito moderno permite que os agentes, orientados pela racionalidade comunicativa do mundo da vida, sigam as normas jurídicas pelo reconhecimento de sua legitimidade, enquanto os agentes, regidos pela racionalidade estratégica dos sistemas, calculam os custos e benefícios de obedecê-la como um fato social, na qual os custos são representados pelas sanções prevista em lei, na forma de multa ou pena de reclusão, enquanto os benefícios emanam dos lucros e vantagens de violá-la [1]

A coordenação de ações dos atores sociais, portanto, pode ser explicada a partir de diversos fatores de influência, dentre os quais o Direito e o sistema politicamente organizado, a partir da Constituição, para lhe emprestar eficácia.

Neste cotexto, gostaria de prestigiar aqui o papel que os acordos ou conciliações, levados a efeito na Justiça do Trabalho, atuam sobre essa tessitura de eficácia das normas dispostas na legislação trabalhista.

Com efeito, a conciliação é fomentada e permitida pela processualística, civil ou trabalhista, em qualquer fase do processo. Espera-se do juiz do Trabalho, inclusive, esforços no sentido de atuar, com persuasão, na construção de uma composição entre as partes.

Nada obstante, esse paradigma precisa estar em harmonia com outros postulados, de envergadura até superior, como o da irrenunciabilidade dos direitos subjetivos trabalhistas e o da força normativa do tecido jurídico de proteção ao trabalho.

Essa tensão de valores sugere e inspira, pois, um atuar cauteloso e criterioso na condução e avaliação dos casos submetidos à jurisdição trabalhista, e justifica constituir-se mera faculdade do juiz do Trabalho a homologação de acordos, aspecto, inclusive, sedimentado na Súmula n. 418 do Tribunal Superior do Trabalho. [2]

Assim, a homologação de acordos que desprestigiem aqueles valores inerentes à ordem jurídico-trabalhista pode contribuir, de forma decisiva, para uma percepção social de que é vantajoso não cumprir a legislação, na medida em que será possível, após o ajuizamento de uma demanda, resolver o problema do inadimplemento em termos possivelmente até mais favoráveis do que se observadas todas as obrigações legais no tempo oportuno.

Não é preciso muito tempo, atuando como um dos atores processuais, para se perceber que essa “racionalidade estratégica” é fenomenologicamente bem presente, e talvez não somente no ambiente sócio-trabalhista.

Tenho insistido na tese de que essa percepção constitui, inclusive, o leitmotiv de um importante contingente de ações judiciais, muitas delas desprovidas de qualquer complexidade interpretativa ou factual, estampando, apenas, uma forte causa litigiogênica.

Por isso, assentou Cândido Rangel Dinamarco que uma das vertentes do escopo social da jurisdição é o seu aspecto pedagógico, de confiança na ordem jurídica e, ao fim e ao cabo, no próprio Poder Judiciário. Mais do que isso, a tutela jurisdicional, pedagogicamente orientada, atua no espaço de poder simbólico, contribuindo na formação de uma ética social que prestigia a força normativa da ordem jurídica, emprestando-lhe eficácia.

Destaco, de sua obra A instrumentalidade do Processo, a seguinte e emblemática passagem:

Na medida em que a população confie em seu Poder Judiciário, cada um dos seus membros tende a ser mais zeloso dos próprios direitos e se sente mais responsável pela observância dos alheios. Numa sociedade assim mais educada e confiante, ao cínico “vá buscar seus direitos”, que, entre nós, o devedor inadimplente e mal-intencionado lança sobre o credor, corresponde o ameaçador “I sue you”, com o que o titular de direito dissuade o obrigado a possíveis resistências injustas. [3]

Não é incomum se ouvir de jurisdicionados o discurso de que tomaram a decisão de buscar a Justiça por indicação do próprio devedor da pretensa obrigação resistida, em cena que desemboca na ideia de disfuncionalidade da atividade jurisdicional, uma vez que se mostra, nesta perspectiva, desprovida de qualquer força simbólica capaz de dissuadir ou desestimular o devedor a, de forma consciente e estratégica, deixar de cumprir suas obrigações.

Tomemos o exemplo de uma empresa que, ao despedir o empregado, tenha que desembolsar, no prazo do art. 477 da Consolidação das Leis do Trabalho, a importância de R$ 10 mil, resultante da somatória de todos os direitos rescisórios devidos (aviso prévio indenizado, férias indenizadas, saldo de salário, multa de 40% sobre o FGTS). Além disso, o pagamento há de ser em parcela única, por se tratar legalmente de direitos tingidos com a natureza alimentar. Não o faz.

Judicializada a demanda (de forma estimulada ou não), logra a empresa a homologação de um acordo em R$ 5 mil, ou seja, metade do devido, e, ainda assim, em três ou quatro parcelas. Pergunta-se: qual o paradigma apontado para esse agente, o do cumprimento voluntário da lei, ou o do estímulo à demanda judicial, nomeadamente mais vantajosa (causa litigiogênica)? Mais à frente, diante de outra rescisão contratual, qual será o comportamento desse empregador?

Não se pode ignorar que esse exemplo está muito distante de retratar uma exceção. Pelo contrário, continuo assistindo situações semelhantes todos os dias, como que decorrente de um ethos que não somente ignora a força normativa da legislação trabalhista, mas que também invoca um papel instrumental da Justiça do Trabalho no cenário de uma racionalidade estratégica, de viés estritamente econômico.

Note-se que este diagnóstico está longe de se constituir um problema atual.

Examinando o contexto da (in)eficácia da legislação trabalhista na década de 50, mercê da incipiente estrutura dos órgãos de fiscalização do trabalho, e acentuando a disjuntiva entre o ideal e o real, constatou John French:

Além disso, a história não era muito mais promissora para aqueles trabalhadores que, de boa-fé, levavam suas queixas aos tribunais do trabalho. Ineficiência administrativa, tribunais superlotados e uma tendência para a “conciliação” frequentemente produziram o que pode ser denominado de “justiça com desconto”. Mesmo quando ganhava um caso legal, por exemplo, um trabalhador brasileiro era forçado a um acordo com seus patrões, obtendo um valor muito menor do que o inscrito em seus direitos legais, caso contrário teria que enfrentar atrasos intermináveis devido aos apelos da empresa – que algumas vezes se estendiam por até 12 anos. E, durante aquele período, o dinheiro que o trabalhador havia ganho desaparecia porque, até o final dos anos 60, o momento eventualmente ganho não era corrigido monetariamente. [4]

Ainda que o cenário hoje seja bem diferente, com a exponencial melhoria da estrutura dos órgãos jurisdicionais e o sistema de correção monetária e de incidência de juros de mora (cf. Lei Federal n. 8.177/91), ainda me parece bem presente, no imaginário dos atores sociais do trabalho, boa parte dessas observações, perpetradas sob os fatos de outra época, o que, por si só, já deve constituir objeto de aguda reflexão por parte de todos nós.

Cautela
Por certo que a conciliação exerce um papel importante, não somente naqueles casos de acentada res dubia, como – e principalmente – naquelas situações de potencial executivo improvável, diante do evidente deficit patrimonial do apontado empregador ou tomador dos serviços. Nesses casos, a conciliação é instrumento útil, como expressão de uma reserva do possível, diante de um sistema jurídico, a partir da Constituição, que concebe – corretamente – a execução como sendo de natureza real, e não pessoal.

Fora, contudo, dessa faixa cognitiva do caso concreto, é preciso redobrada cautela com os deletérios efeitos (não) pedagógicos que um certo ethos judicial pode provocar na tensão entre validade e faticidade da legislação.

Tenho pensado a respeito de uma teoria da efetividade processual que busque prestigiar a diversidade de fatores extraprocessuais (inclusive pré-processuais) e endoprocessuais que interferem na concretização da tutela jurisdicional. Nesse enfoque, não somente os problemas estruturais (morosidade sistêmica) devem ser examinados, mas também o comportamento dos atores do processo (morosidade ativa). [5]

Por isso, parece-me tão importante a discussão a respeito dessa característica atribuída à Justiça do Trabalho, e que, se não reflete uma prática engajada por todos, é no mínimo presente o bastante para ser percebida e projetada socialmente, o que pode, no limite, comprometer o papel pedagógico que a jurisdição trabalhista precisa cumprir.

Num Estado Constitucional, o papel reservado ao Judiciário deve ser estratégico, na medida em que não pode ser ele – diretamente – instrumento de concretização da norma, mas uma reserva simbólica que, ao ser provocada, precisa fazer jus ao que dele se espera: fazer cumprir a obrigação devida ao titular do direito subjetivo, de tal modo a desestimular o descumprimento da norma pelos demais agentes passivos. Se o faz às avessas, na realidade se transforma num espaço imantado, a atrair para si artificiais conflituosidades que trazem consigo apenas uma carga estratégica, no todo ou em parte, de seus agentes, buscando maximizar seus ganhos.

Uma democracia de alta intensidade se mede pela ampla adesão ao projeto social e jurídico, constituindo uma disfuncionalidade as altas taxas de judicialização que temos hoje, em grande medida debitada na ação dos atores das relações jurídicas, inclusive naquela protagonizada pelo próprio Estado.

Na Justiça do Trabalho, esse tema ainda se coloca de forma mais prioritária na agenda institucional, em razão de suas novas atribuições, e na preferência atribuída às causas que envolvem doenças ocupacionais e acidentes de trabalho, para as quais a resposta necessária que o Judiciário precisa dar não consegue chegar em bom tempo, em razão da pletora de processos que ainda afluem para seus órgãos, muitos deles cuidando de mera inadimplência estratégica.

É fundamental, na minha ótica, aprofundar o debate em torno desse tema.


[1] DURÃO, A. B. A tensão entre faticidade e validade no Direito, segundo Habermas. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br. Acesso em 28.11.2013.

[2] MANDADO DE SEGURANÇA VISANDO À CONCESSÃO DE LIMINAR OU HOMOLOGAÇÃO DE ACORDO. A concessão de liminar ou a homologação de acordo constituem faculdade do juiz, inexistindo direito líquido e certo tutelável pela via do mandado de segurança.

[3] DINAMARCO, C. R. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 162.

[4] FRENCH, John D. Afogados em leis. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001, p. 19.

[5] Um desenvolvimento desses conceitos, a partir da metodologia de Boaventura de Sousa Santos, pode ser encontrado em: CHAVES, Luciano Athayde. ‘Jurisdição trabalhista: bloqueios e desafios’. Revista LTr. São Paulo, 2008, ISBN 1516-9154, v. 72, n. 9, p. 1073-1086.

Autores

  • Brave

    é Juiz do Trabalho, titular da 2ª Vara do Trabalho de Natal, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual.

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