Democracia financeira

Orçamento deve determinar despesas de agências reguladoras

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30 de novembro de 2013, 5h27

Notória a inoperância desses entes da Administração indireta, noticia-se que as agências reguladoras federais estão com recursos bloqueados por variados contingenciamentos orçamentários, incapazes assim de executar o múnus para as quais foram criadas, desde o atendimento ao cidadão que reclama contra as concessionárias de serviços públicos até a respectiva fiscalização ordinária.

Ora, prevê a Constituição que o Estado, “agente normativo e regulador da atividade econômica, exercerá as funções de fiscalização, incentivo e planejamento” (artigo 174) e também que “incumbe ao Poder Público, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, a prestação de serviços públicos” (artigo 175). A Lei 8.987, de 1995, dispõe sobre o regime de concessão e permissão na prestação de serviços públicos, constando dela que incumbe ao poder concedente, entre outras atribuições: regulamentar o serviço concedido e fiscalizar permanentemente a sua prestação; aplicar as penalidades regulamentares e contratuais; intervir na prestação do serviço, nos casos e condições previstos em lei; zelar pela boa qualidade do serviço, receber, apurar e solucionar queixas e reclamações dos usuários (artigo 29); sendo certo que, no exercício da fiscalização, o poder concedente terá acesso aos dados relativos à administração, contabilidade, recursos técnicos, econômicos e financeiros da concessionária (artigo 30).

Os serviços públicos são o processo normal de atendimento estatal às necessidades públicas, gerais da população que, por sua relevância, são daquela forma qualificadas e merecem atenção especial do Estado. Por isso mesmo, a Lei 8.897/95 prevê que “toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários” (artigo 6º), satisfazendo as condições de “regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas” (parágrafo 1º).

Nada mais que isso reclama o povo brasileiro desde as manifestações de junho.

Ocorre que tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei Complementar PLP 7/2011, que pretende modificar o parágrafo 2º do artigo 9º da Lei de Responsabilidade Fiscal, passando este a assim vigorar: “Não serão objeto de limitação as despesas que constituam obrigações constitucionais e legais do ente, inclusive aquelas destinadas ao pagamento do serviço da dívida, as dotações orçamentárias e despesas de custeio das Agências Regulatórias, e despesas ressalvadas pela lei de diretrizes orçamentárias” (alteração proposta grifada).

A justificativa do projeto anota que as Agências Regulatórias foram dotadas, nas respectivas leis de criação, com “instrumentos financeiros para lograr obter receitas próprias, em razão dos serviços que prestam; em seguida, porque a atribuição regulatória demanda a capacidade institucional plena, com isso faz-se necessário garantir que, ao menos a ordinária administração das agências, seu funcionamento e atuação dentro dos fins institucionais sejam assegurados”.

De fato, as leis da ANEEL, ANAC e ANATEL, por exemplo, preveem a cobrança de taxas de fiscalização, taxas aeroportuárias ou a participação em fundos, como o Fundo de Fiscalização das Telecomunicações (Fistel), além de dotações do orçamento da União, entre as fontes de receita.

Assim, “conceber que houvesse contingenciamento de recursos dessas entidades (…) poderia resultar — como, de fato, acaba acontecendo — no comprometimento de sua atuação (…) na disciplina econômica, normativa e reguladora…” (justificativa do PLP 7/2011).

Ora, atribuída missão constitucional à Administração, não pode ela ser privada dos meios necessários ao respectivo desempenho, máxime em se tratando de funções que têm ver com a garantia de exercício de direitos fundamentais, como o de ir e vir, informar-se e comunicar-se, trabalhar e empreender. Como assinalado, a par de fontes próprias, a distribuição dos recursos públicos às Agências Reguladoras se faz por dotações orçamentárias.

Mais importante lei votada anualmente nas democracias consolidadas, o Orçamento deveria determinar (não apenas autorizar) a Despesa, pois à Receita corresponde o gasto justo e necessário para prover às políticas públicas. Se a Constituição admite a concessão de serviços públicos, resta ao Estado um núcleo essencial de atuação, indelegável, que é o exercício do poder de polícia, a regulação e a fiscalização em face daqueles serviços, que são públicos porque são de interesse público, ou do povo.

E não pode faltar recursos para essa missão exercida com potestade estatal. Do contrário, apresenta-se a falência múltipla dos órgãos encarregados pela ordem jurídica de prover o Bem Comum aos cidadãos.

Então, o bloqueio de empenhos ou contingenciamento de verbas no Brasil traz o debate acerca da conexão íntima entre tributo e despesa, e se intensifica no caso das receitas tributárias legitimadas em função de gastos específicos. Tributação e orçamento não são um fim em si mesmos, mas vertentes indissociáveis da mesma ordem jurídico-financeira em nome da proteção dos direitos fundamentais. A repartição equitativa do gasto público decorre entre nós da conjugação do objetivo de construção de uma sociedade justa e solidária (artigo 3º, I) com a determinação de graduação da carga tributária conforme a capacidade econômica da cidadania (artigo 145, § 1º). E pela Constituição Federal de 88 a Administração Pública obedece à eficiência e à moralidade, entre outros princípios (artigo 37).

Conforme a doutrina e o que decorre da Lei de Responsabilidade Fiscal, o instituto do contingenciamento é de utilização excepcional, quando as bem planejadas expectativas de receita não se concretizarem (não é o caso brasileiro, em que sucessivos recordes de arrecadação têm sido verificados). Logicamente, excesso de arrecadação é incompatível com contingenciamento. Este tem-se prestado ao abuso sem maiores pudores, ressalvada a intervenção tópica do STF no caso do contingenciamento da CIDE-combustíveis (ADI 2.925).

A quem interessa a indisciplina orçamentária? O orçamento é uma lei plena que determina (e não apenas autoriza) o gasto público. Nesse sentido, o orçamento há de ser naturalmente impositivo e não meramente autorizativo. A Lei Orçamentária existe para ser cumprida, não podendo legitimamente abrir espaço genérico para remanejamentos de verbas sem controle prévio do Legislativo, que não se pode demitir do dever de controlar a Administração. Quando se apresentam irresponsáveis as autoridades públicas, o Judiciário, provocado, tem dado a sua resposta, ensaiando controle orçamentário, sequestrando dinheiros ociosos e determinando as providências necessárias à tutela dos direitos fundamentais.

Planeja-se mal e gasta-se mal. As opções (dotações) decididas pelos poderes competentes do Estado estão na lei para serem observadas, sob pena de iludirem o contribuinte.

O mal das finanças públicas brasileiras não é apenas de gestão, mas sobretudo de desrespeito ao Direito. Se o planejamento público é “indicativo para o setor privado” (artigo 174 da Constituição), ele é um dado da democracia.

Ora, sem democracia financeira não há democracia política. E não há governo que se sustente num poder vazio. Essa verdade, sentida nas ruas do país, parece não ter chegado a certas mentes alquimistas que, com sua contabilidade criativa, testam os limites de tolerabilidade de uma sociedade desatendida e sem condições de desenvolver-se com liberdade, porque paga tributos demais sem retorno; porque lhe falta saúde, transporte, educação, segurança; porque lhe falta governança pública e republicana.

Do ponto de vista da saúde orçamentária, o PLP 7/2011 pode ser um passo importante no sentido da sustentabilidade das Agências Reguladoras, guardiãs do direito dos usuários dos serviços públicos concedidos; sua missão constitucional não pode ser obviada pela insuficiência de recursos.

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