Ideologia da pena

Condenado à prisão está fadado à marginalidade

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27 de novembro de 2013, 11h05

“A questão penitenciária do Brasil é grave. Sua solução extremamente complexa. E o ponto de partida é a compreensão de que, enquanto persistirem as causas geradoras da criminalidade violenta, enquanto não se reformular o sistema penal brasileiro — destinando-se os presídios somente aos efetivamente perigosos—, nenhum governo conseguirá equilibrar o sistema penitenciário. A solução está, assim, integrada à reorganização do Estado, ao estabelecimento de políticas públicas eficientes e justas, com vistas ao bem-estar de toda a sociedade”.

Estas palavras foram ditas há cerca de duas décadas, pelo então ministro da Justiça e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, Maurício Corrêa, à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instalada na Câmara dos Deputados, para investigar a situação do Sistema Penitenciário Brasileiro.

Cerca de 20 anos depois, o atual ministro da Justiça José Eduardo Cardozo afirmou preferir a morte a ter que cumprir pena privativa de liberdade no Brasil.

O ministro Dias Toffoli do STF, no julgamento da Ação Penal 470, alcunhada de “mensalão”, alertou para os males da pena privativa de liberdade e sobre a necessidade contemporânea de se rever esta espécie de pena, que mais combina com o período medieval. Como bem lembrou Toffoli em seu referido voto, Foucault já se referia aos males da prisão e de seu poder disciplinar que tem como função maior adestrar os indivíduos, transformando-os em corpos submissos e dóceis.

Até 1984, ensina Nilo Batista[1], foi o sursis o único substitutivo penal em uso no Brasil. Nos anos 70, informa o autor, tem origem um movimento denominado “fuga da pena”. Este movimento, de acordo com o eminente penalista, emanava: do estado das prisões, da inflação penal e da crítica do discurso penal tradicional. De acordo com Nilo Batista

“a falácia do discurso penal tradicional minava tanto do irracionalismo retributivista quanto da hipocrisia preventivista; as finalidades reais da pena, ainda que ocultas pelo discurso, começavam a impor-se àquele esquálido esquema. ‘Só a pena necessária é justa’, dissera von Liszt em Marburgo; mas o problema é exatamente saber para quê e para quem a pena é necessária, quais os fins reais, e não ideológicos, por ela perseguidos, e quais os sujeitos históricos dessa necessidade”.[2]

Segundo o criminólogo Alessandro Baratta,

“assistimos hoje a uma crise irreversível da legitimação instrumental dos sistemas punitivos. A função de prevenção especial positiva (ressocialização do infrator), que foi a base dos programas de reabilitação nos Estados Unidos e na Europa nos anos setenta, pode ser considerada hoje como uma hipótese refutada pelos programas de pesquisa de controle. A função de prevenção geral negativa (objetiva a dissuasão dos potenciais infratores), na qual se baseia grande parte do consenso que ainda goza o sistema penal no sentido comum pode ser considerada, por sua vez uma hipótese empiricamente não verificada e impossível de sê-lo. A função de prevenção geral negativa é hoje sustentada, especialmente nos Estados Unidos, em duas formas alternativas ou complementarias: a ‘neutralização’ do infrator (incapacitation) e a ‘intimidação específica’ (specific deterrence).”[3]

Das finalidades da pena de prisão apontadas – retributiva do mal causado pelo delinquente; prevenção da prática de novas infrações, através da intimidação do condenado e de pessoas “potencialmente criminosas” e regeneração do preso, no sentido de transformá-lo de criminoso em não criminoso – apenas a retribuição, vêm sendo atingida, de forma cruel e desumana. Diante da realidade atual é inevitável concluir que o sistema penitenciário atua como verdadeiro fomento da reincidência.

Neste sentido Michel Foucault para quem: “A detenção provoca a reincidência; depois de sair da prisão, se têm mais chance que antes de voltar para ela, os condenados são, em proporção considerável, antigos detentos…”[4]

Mais adiante, Foucault observa que:

“a prisão não pode deixar de fabricar delinquentes. Fabrica-os pelo tipo de existência que faz os detentos levarem: que fiquem isolados nas celas, ou que lhes seja imposto um trabalho inútil, para o qual não encontrarão utilidade, é de qualquer maneira não ‘pensar o homem em sociedade; é criar uma existência contra a natureza inútil e perigosa’; queremos que a prisão eduque os detentos, mas um sistema de educação que se dirige ao homem pode ter razoavelmente como objetivo agir contra o desejo da natureza? A prisão fabrica também delinqüentes impondo aos detentos limitações violentas; ela se destina a aplicar as leis, e a ensinar o respeito por elas; ora, todo o seu funcionamento se desenrola no sentido do abuso de poder…”[5]

Sobre a prisão como “fábrica de delinquentes” e como uma “monstruosa opção”, valiosas são as palavras do Ministro Evandro Lins e Silva:

“Prisão é de fato uma monstruosa opção. O cativeiro das cadeias perpetua-se ante a insensibilidade da maioria, como uma forma ancestral de castigo. Para recuperar, para ressocializar, como sonham os nossos antepassados? Positivamente, jamais se viu alguém sair de um cárcere melhor do que entrou. E o estigma da prisão? Quem dá trabalho ao indivíduo que cumpriu pena por crime considerado grave? Os egressos do cárcere estão sujeitos a uma outra terrível condenação: o desemprego. Pior que tudo, são atirados a uma obrigatória marginalização. Legalmente, dentro dos padrões convencionais não podem viver ou sobreviver. A sociedade que os enclausurou, sob o pretexto hipócrita de reinseri-los depois em seu seio, repudia-os, repele-os, rejeita-os. Deixa, aí sim, de haver alternativa, o ex-condenado só tem uma solução: incorporar-se ao crime organizado. Não é demais martelar: a cadeia fabrica delinquentes, cuja quantidade cresce na medida e na proporção em que for maior o número de condenados.”[6]

Sem dúvida, a privação da liberdade é a consequência mais visível da pena de prisão. Contudo, outros sofrimentos, algumas vezes obscuros, infligem ao preso um sofrimento até maior. A falta de privacidade, privação de ar, de sol, de luz, de espaço em celas superlotadas[7], os castigos físicos (torturas), a falta de higiene, alimentação nem sempre saudável, doenças inimagináveis[8], violência e atentados sexuais cometidos ora pelo próprio companheiro de infortúnio, ora pelos próprios carcereiros ou agentes penitenciários, a humilhação imposta, inclusive aos familiares dos presos, o uso de drogas como meio de “fuga” e etc.[9]

Ao chegar a uma das penitenciárias do Estado, o condenado perde, além da liberdade, o seu nome que é substituído por um número de matrícula, muitas vezes perde sua roupa e recebe um uniforme, quando não perde todos os seus pertences pessoais para outros presos ou até mesmo para os guardas do presídio, enfim, perde o condenado a prisão toda a sua identidade, sua honra, sua moral… A prisão salienta Ferrajoli[10], “é uma instituição ao mesmo tempo antiliberal, desigual, atípica, extralegal e extrajudicial, ao menos em parte, lesiva para a dignidade das pessoas, penosa e inutilmente aflitiva”.

As palavras de Roberto Lyra sobre os malefícios da prisão merecem, apesar de longas, serem transcritas. Segundo o autor:

“a prisão é causa de doenças e vícios. Não é o lugar que vicia ou enlouquece é a condição, é a vida do preso. Doenças físicas e não somente morais e mentais. Ninguém contesta que a prisão enriqueceu o elenco psiquiátrico com a chamada psicose carcerária, psicose de situação, hoje redistribuída e rebatizada, e que propicia outras doenças e perturbações mentais, além de novos capítulos da patologia sexual. Pretende-se até generalizar o anexo penitenciário junto as prisões. O são fica meio louco. O meio louco fica louco por inteiro. E o louco? É preciso recorre ao superlativo. O ótimo torna-se péssimo e aprende a dissimular a maldade. A prisão, fábrica e escola de reincidência, habitualidade, profissionalidade, produz e reproduz criminosos, causa crimes e contravenções. O que ocorre é que infrações penais intramuros costumam ser toleradas ou tratadas como transgressões disciplinares pelo arbítrio criminoso da administração. Só aparecem os casos de homicídios e de repercussão inevitável. Os responsáveis ignoram ou oficializam crimes, por omissão ou mesmo por ação. Há crimes de funcionários contra preso (em regra impunes) e vice-versa, de funcionários e particulares (inclusive os presos) contra a administração e outros bens ou interesses jurídicos penalmente protegidos. Registram-se, também, relações e associações celeradas de dentro para fora e de fora para dentro. Planos de fuga e crimes, organizações de equipes, aperfeiçoamento em contato com os mais peritos. A prisão é o meio criminal por excelência.”[11]

É uma ingenuidade, uma ilusão acreditar que aquele que sobreviveu — muitos acabam morrendo na própria prisão — a tudo isso, estará “ressocializado” podendo ser “reintegrado” a sociedade. Aquele que cumpriu pena privativa de liberdade estará fadado à marginalidade, estará estigmatizado pelos anos que lhe resta de vida.[12] A retribuição na maioria das vezes é desproporcional, desumano, sádica e atroz o que inviabiliza qualquer forma de “recuperação”, escondendo os verdadeiros propósitos e ideologia da pena.


[1] BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos: violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990.

[2] BATISTA, ob. cit. p. 128-129.

[3] BARATTA, Alessandro. Funções instrumentais e simbólicas do direito penal. Lineamentos de uma teoria do bem jurídico, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 2, n. 5, janeiro-março de 1984, p. 17-18.

[4] FOUCAULT, ob. cit. p. 234.

[5] Idem, p. 235.

[6] SILVA, Evandro Lins e. De Beccaria a Filippo Gramatica. Sistema penal para o terceiro milênio. Rio de Janeiro: Renavan, 1991, p. 40. Eugenio Raúl Zaffaroni afirma que: “A prisão ou cadeia é uma instituição que se comporta como uma verdadeira máquina deteriorante (…) O preso ou prisioneiro é levado a condições de vida que nada têm a ver com as de um adulto: é privado de tudo que o adulto faz ou deve fazer usualmente em condições e com limitações que o adulto não conhece (fumar, beber, ver televisão, comunicar-se por telefone, receber ou enviar correspondência, manter relações sexuais, etc.).” (ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdida: a perda da legitimidade do sistema penal. Trad. Vania Romano Pedrosa, Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p.135).

[7] Arminda Bergamini Miotto vê nas grandes penitenciárias, bem como na superpopulação carcerária fatores de incremento à reincidência, segundo a professora “nas penitenciárias de grande porte, geralmente situadas na região da capital para onde convergem todos os condenados da respectiva Unidade da Federação, lotando-as e superlotando-as, as circunstâncias fazem com que a situação seja essa, ainda que a administração entenda que deva ser diferente e deseje que possa sê-lo. Sem falar no que, ademais, costuma acontecer numa penitenciária de grande porte, provavelmente superlotada, aí está uma relevante explicação para o tão grande número de reincidentes entre os egressos.” (MIOTTO, Arminda Bergamini. O controle social sob o ponto de vista criminológico. A prevenção da reincidência. In Revista de Informação Legislativa. Brasília, 22, out/dez. 1985).

[8] Sobre as doença na cadeia, o médico Drauzio Varella nos informa que: “As doenças de pele, por exemplo, epidêmicas nas celas apinhadas, compreendiam a dermatologia inteira: eczemas, alergias, infecções, picadas de percevejos, sarna e a muquirana, um ácaro ousado que se esconde nas dobras das roupas, capaz de saltar longas distâncias de uma pessoa à outra.” ( VARELLA, Drauzio. Estação Carandiru. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 91).

[9] Hulsman observa que: “o condenado à prisão penetra num universo alienante, onde todas as relações são deformadas. A prisão representa muito mais que a privação da liberdade com todas as suas seqüelas. Ela não é apenas a retirada do mundo normal da atividade e do afeto; a prisão é, também e principalmente, a entrada num universo artificial onde tudo é negativo. Eis o que faz da prisão um mal social específico: ela é um sofrimento estéril.” (HULSMAN, Louk e CELIS, Jacqueline Bernat. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Niterói -RJ, Luam, 1993, p. 62).

[10] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do garantismo penal. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002.

[11] LYRA, Roberto. Direito penal normativo. Rio de Janeiro: Konfino, 1975, p. 184/185.

[12] Carnelutti observa que: “Ao aproximar-se do fim do período prisional, aguarda o sentenciado, com alegria, a liberdade. Ao sentir-se livre das grades, contudo, sente o seu drama: não consegue emprego, em virtude de seus maus antecedentes. Nem o Estado e nem o particular lhe facilitam uma colocação. A pena, portanto, não termina para o sentenciado.” (CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Trad. José Antonio Cardinalli. São Paulo: Conan, 1995, p. 8).

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