Falso dilema

Termo privatização não existe no mundo jurídico

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25 de novembro de 2013, 13h32

Tenho visto na imprensa nos últimos anos o uso comum do termo privatização como se ele fosse um mal contaminante que se apodera dos homens para levá-los ao inferno, especialmente nos leilões recentes para outorga de concessão de aeroportos. No entanto, esse termo não existe no mundo das normas, no mundo jurídico, porque é um conceito político e como tal é explorado. Porém cabe aqui um esclarecimento para extirpar os falsos dilemas.

É fato que esse tema começou a ser discutido desde o início da década de 90, com a publicação da Lei Federal 8.031/1990, que foi modificada pela Lei Federal 9.491/1997, que criou o Programa Nacional de Desestatização — PND. Essa norma foi e é fundamento básico para todos os editais publicados pelos governos que se seguiram. Com essa base institucional se permite que a iniciativa privada preste serviços públicos[1] ou explore atividades econômicas[2] que na origem institucional[3] poderiam ser prestadas pelo Estado na sua integralidade. Por determinação dessa Lei 9.491/1997 o PND tem como objetivos fundamentais:

I — reordenar a posição estratégica do Estado na economia, transferindo à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo setor público;

II — contribuir para a reestruturação econômica do setor público, especialmente através da melhoria do perfil e da redução da dívida pública líquida;

III — permitir a retomada de investimentos nas empresas e atividades que vierem a ser transferidas à iniciativa privada;

IV — contribuir para a reestruturação econômica do setor privado, especialmente para a modernização da infra-estrutura e do parque industrial do País, ampliando sua competitividade e reforçando a capacidade empresarial nos diversos setores da economia, inclusive através da concessão de crédito;

V — permitir que a Administração Pública concentre seus esforços nas atividades em que a presença do Estado seja fundamental para a consecução das prioridades nacionais;

VI — contribuir para o fortalecimento do mercado de capitais, através do acréscimo da oferta de valores mobiliários e da democratização da propriedade do capital das empresas que integrarem o Programa.

Para atender aos objetivos acima, essa Lei descreve “desestatização” como sendo:

a) a alienação, pela União, de direitos que lhe assegurem, diretamente ou através de outras controladas, preponderância nas deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos administradores da sociedade;

b) a transferência, para a iniciativa privada, da execução de serviços públicos explorados pela União, diretamente ou através de entidades controladas, bem como daqueles de sua responsabilidade.

c) a transferência ou outorga de direitos sobre bens móveis e imóveis da União, nos termos desta Lei. 

Portanto, desestatizar são procedimentos legais em que o Estado permite que uma empresa privada execute serviços ou desenvolva atividades econômicas em seu nome sob a sua fiscalização. Não há como se vê nenhum modo que se denomine privatização. E, mais a desestatização como gênero poderá ser objeto dos seguintes modalidades (espécies) de acordo com o artigo 4º dessa Lei:

I — alienação de participação societária, inclusive de controle acionário, preferencialmente mediante a pulverização de ações;

II — abertura de capital;

III — aumento de capital, com renúncia ou cessão, total ou parcial, de direitos de subscrição;

IV — alienação, arrendamento, locação, comodato ou cessão de bens e instalações;

V — dissolução de sociedades ou desativação parcial de seus empreendimentos, com a conseqüente alienação de seus ativos;

VI — concessão, permissão ou autorização de serviços públicos.

VII — aforamento, remição de foro, permuta, cessão, concessão de direito real de uso resolúvel e alienação mediante venda de bens imóveis de domínio da União.

Da simples leitura ordenada destes dispositivos legais (objetivos, considerações e modalidades) se confirma a inexistência no âmbito normativo da palavra “privatização”, visto que não está definida em nenhuma das modalidades. Igualmente, também não existe esse termo na Lei Geral de Concessões, Lei Federal 8.987/1995 e nas demais leis que se seguiram[4].

Em virtude do ordenamento que lastreia o PND o Estado brasileiro tem inúmeros instrumentos jurídico-institucionais para contratar com a iniciativa privada a prestação de serviços ou exploração de atividades econômicas dependendo das opções político-governamentais. Contratar significa estabelecer direitos e obrigações por determinado prazo, entre a parte privada e a entidade estatal que tem a atribuição de firmar essa contratação. Por mais que o discurso político seja de desconsiderar o mercado, a Constituição Federal e a legislação aprovada pelo Poder Legislativo, e sancionada pelo Executivo indicam que a parceria na junção de esforços entre a iniciativa privada e o Estado é legítima, constitucional e indispensável como se ratificou nos leilões dos aeroportos ocorridos na semana passada.

É fato também que por dispositivo expresso na Constituição Federal de 1988 a ordem econômica é fundada na livre iniciativa (artigo 170) e o Estado só explora atividades econômicas quando necessárias aos imperativos de segurança nacional e relevante interesse público, conforme definidos em lei (artigo 173). E, para finalizar, é lapidar a determinação do constituinte quando indicou que cabe ao Estado regular e fiscalizar a atividade econômica (artigo 174).

Para atestar a veracidade da opinião informo que todos os editais para rodovias, ferrovias, portos, linhas de transmissão, etc… trazem no seu fundamento de validade a aprovação pelo Conselho Nacional de Desestatização — CND na estrita conformidade da Lei 9.491/1997, plenamente valida e eficaz.

Em virtude da base constitucional dessa contratação por prazo determinado cabe ao governo promotor do certame que escolherá a melhor proposta dos agentes privados elaborar editais e minutas dos contratos que melhor atendam ao princípio da boa-fé, do equilíbrio entre as partes, da transparência e da previsibilidade de normas, e da tecnicidade das decisões. Não importa que denominação se dê a esse contrato, importa é que haja segurança jurídico-regulatória para a sua longa execução e com isso os usuários/consumidores sejam devidamente atendidos.

Para tanto, o Estado brasileiro criou organismos que fossem capazes de gerir esses contratos, promover a regulação e fiscalizar o cumprimento adequado das obrigações dos agentes privados que foram as agências reguladoras, a princípio órgãos técnicos e autônomos que deveriam ficar impermeáveis às questões políticas. No entanto, a distância prudente entre governo e as agências reguladoras nem sempre é a ideal.

A regulação tem como característica relevante a elaboração em parceria com a sociedade através da realização de consultas e audiências públicas para que o ente regulador possa explicitar os motivos que o levaram a propor uma nova regulação e, no caso da sua aprovação, quais impactos ocasionaria no setor que iria obedecer a essa regulação proposta.

Porém, o que se viu ao longo dos últimos dez anos foi um esvaziamento das atribuições das agências, especialmente a ANEEL e a ANP e uma captura governamental que em muitos casos tornou essas agências inertes, embora tivessem realizado concursos para admissão de servidores. As diretorias, que a princípio deveriam ser técnicas, em muitos casos foram indicadas pessoas sem a qualificação profissional que a tecnicidade desses setores exige. Com isso houve um amálgama entre o que é governo e o que é Estado. Some-se a isso o reiterado contingenciamento das verbas orçamentárias das agências que as impede[5] de atuar em conformidade com as suas obrigações legais.

É imperativo dizer que em nenhum momento o Estado se retirou da responsabilidade de regular e de fiscalizar dos serviços e/ou das atividades desestatizadas. Ao contrário, deve ser mais eficiente, mais transparente nas decisões para que os usuários/cidadãos e os agentes econômicos saibam o que se pretende como política pública de um determinado setor da infraestrutura.

Por derradeiro, mais um motivo para gerar sentimento de insegurança jurídica e política: apenas a título informativo nos anos de 2010, 2011 e 2012 foram emitidas 120 Medidas Provisórias pelo Poder Executivo (em média uma MP a cada 5 dias úteis), e 1.048 decretos numerados que regulamentam leis, serviços e atividades. Com isso se presenciou uma hiperatividade emanada do Poder Executivo, a qual o Poder Legislativo homologa quando aprova essas MPs com a informação de que não pode ser alterada (emendada), ou seja, o Congresso Nacional carimba o ato imperial do Poder Executivo permitindo a ampliação de um emaranhado legislativo que pode intimidar uma decisão de investir no Brasil.

A pouca procura pelos editais que são publicados pelos diversos entes da União se deve a esse tsunami normativo que dificilmente se consegue acompanhar, à pouca transparência e fundamentação na prescrição das exigências editalícias. Para os desavisados informo que na década de 90 exigia-se a contratação de dois consórcios para fazer a avaliação do bem que iria ser ofertado ao mercado.

Ao final da avaliação a comparação das justificativas do valor e das condições de participação no certame para depois ir à audiência pública e receber as críticas e sugestões da sociedade. Portanto, há de haver racionalidade jurídica, econômica e técnica demonstrável. Lembra-se aqui que esses contratos que se originam desses leilões serão interligados a vários outros, como de financiamento e que por isso geram incontáveis obrigações em cadeia. E, para que todas sejam cumpridas, há de haver base legal e regulatória conhecida e estável.

Ainda, durante a execução do contrato (prazo determinado) os bens afetos à prestação dos serviços são registrados e no término da concessão serão revertidos para o Poder Concedente. Assim o Estado ganha duplamente: no início da contratação com o lance do contrato e ao final com a reversão dos bens.

O que se leu nos jornais foram opções editalícias e por fim um edital que nem sempre favorece a segurança jurídica e institucional que esses contratos de longo prazo exigem. O descompasso entre o lance mínimo e o ofertado da última semana evidencia uma necessidade de rever os critérios que têm sido utilizados para a avaliação prévia. Verifica-se que o fato político tem sido noticiado com mais importância do que os benefícios que o Estado e a sociedade obterão com a desestatização — contratação por prazo determinado do bem, do serviço ou da atividade.

Por tudo aqui exposto há que desmistificar para sempre os procedimentos legais e legítimos que possui o Estado para contratar legitimamente com a iniciativa privada aprendendo com os fatos e aplicando somente a Lei vigente.


[1] Serviços públicos de energia elétrica, saneamento, telecomunicações, rodovias, ferrovias, portos e aeroportos.

[2] As atividades econômicas da indústria do petróleo, do gás natural, dos biocombustíveis.

[3] A letra “b”, do inciso XII, do art. 21 da Constituição Federal indica que compete à União, explorar diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água…

O § 1º, do art. 177 da Constituição Federal prescreve que o monopólio da União nas atividades de pesquisa, produção, refino, importação e exportação, transporte marítimo e dutoviário pode ser contratado com empresas estatais ou privadas observadas as condições da legislação.

[4] Lei Geral de Telecomunicações, Lei do Petróleo, Lei de PPP e a Lei de Saneamento.

[5] Um exemplo disso aconteceu no caso do vazamento de óleo em plataforma ocorrido em 2011, em que se evidenciou a falta de equipamentos da ANP para fiscalizar essas atividades: sem helicóptero, sem lanchas, sem equipamentos marítimos etc… embora tivesse por lei a ela destinada uma soma financeira que daria para equipá-la na dimensão da sua importância.

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