Direitos humanos

Arbitrariedade na aplicação da pena reforça caráter midiático

Autor

  • Alan Trajano

    é advogado especialista em Direito Público processo legislativo administração políticas públicas e gestão governamental. Sócio do escritório Trajano Advogados Associados.

24 de novembro de 2013, 6h00

Nunca é demais relembrar que a Constituição e a rigidez na aplicação do direito penal e processual penal têm como um dos objetivos preservar o cidadão contra o arbítrio do estado. Aliás, este é um dos ícones do processo civilizatório contra o absolutismo real.

Dois ministros da Suprema Corte americana acusam magistrados do Alabama, estado onde há eleição para juízes, de aplicar sentenças de pena de morte com objetivos puramente eleitorais, conforme revela o texto publicado no ConJur.

Comprovada a denúncia, portanto, a ação dos juízes ilustra como o poder estatal representado pelo judiciário pode ser usado para interesses políticos particulares e inconfessados em detrimento do cidadão e contra os valores mais importantes do processo civilizatório ocidental, o direito à vida e a sua integridade física.

Entretanto, as mais comuns arbitrariedades praticadas pelo estado são contra a liberdade e contra o patrimônio material e imaterial pessoal do cidadão. A prática da advocacia reserva praticamente a todos os colegas casos onde estas arbitrariedades são cometidas, muitas vezes de forma clara, cristalina, incontestável, outras tantas escondida nos meandros processuais tão bem evidenciada por Kafka, em O Processo.

A notícia ainda expõe clara e confessadamente a influência da mídia nos julgamentos a incentivar ou provocar na população o afloramento de valores conservadores e anticivilizatórios que os levariam à eleição para o cargo de juiz.

Este comportamento dos juízes em resposta à pressão midiática ou vendo nela uma oportunidade se baseia no estímulo ao sentimento de insegurança na sociedade local e, sobretudo, na concepção da pena como instrumento pueril de vingança, ao invés da ressocialização ou simplesmente como inibidor da prática de delitos pelos demais membros da sociedade, a ser levada a cabo pela ação do estado contra o infortunado condenado. Nos casos denunciados, o júri popular havia condenado os réus à prisão perpétua e os juízes as teriam convertido casuisticamente em pena de morte.

O sentimento de vingança e o desejo de punição “exemplar” para além do admitido na segurança da lei material ou processual contra os “inimigos do estado ou da sociedade” em geral se originam de certa crueldade e mesquinharia concebida de forma pouco refletida, e tem como substrato a concepção tipicamente adolescente de que as agruras que acometem os outros só a estes acometerão, nunca a nós mesmos.

Este caso nos remete à reflexão dos acontecimentos que encerram o episódio jurídico/político que acomete os réus da Ação Penal 470, midiaticamente conhecido como "mensalão". A defesa dos réus e segmentos insuspeitos da comunidade jurídica tem ficado afônicos ao apontar erros materiais e processuais substanciais no julgamento pelo STF e na aplicação dos veredictos.

As arbitrariedades envolvendo o início do cumprimento das penas antes mesmo do trânsito em julgado dos processos, as prisões seletivas já que não foram decretadas em relação a todos os condenados passíveis de cumprimento imediato das penas, a decretação das prisões em pleno feriado da Proclamação da República sem o devido cumprimento das formalidades primordiais e o recolhimento dos mesmos em Brasília após uma épica jornada aérea, reforça a hipótese do caráter político e midiático do julgamento.

Neste contexto, tristemente temos que relembrar a tragédia da Boate Kiss, em Santa Maria no Rio Grande do Sul. Ali centenas de pessoas mortas em um lamentável, por assim dizer, acidente que teria sido provocado por negligência dos proprietários da boate e membros da banda, levou o Poder Judiciário a determinar a prisão preventiva de dois dos potenciais responsáveis pela tragédia: um dos sócios e o produtor da banda.

Os indícios de excesso na determinação das prisões preventivas, do ponto de vista jurídico, são evidentes. Mas o que destaco é que provavelmente os dois que foram "vitimados" por um potencial arbítrio judicial, talvez possam ser daqueles que fizeram coro pela condenação dos réus do mensalão, independentemente da existência de dúvidas quanto aos fatos e mesmo da responsabilidade individual de cada um.

Os mesmos poderiam ter admitido como desejável até mesmo a morte do deputado condenado José Genoino, portador de grave cardiopatia que sem os devidos cuidados médicos poderia ocorrer nas dependências do cárcere, como se fez em publicações nas redes sociais, ainda que o recomendável fosse que cumprisse a pena em prisão domiciliar.

Os dois de Santa Maria talvez nunca tenham pensado que uma tragédia destas poderia lhe ter acontecido, mas aconteceu! A vida civilizada pede razão e generosidade no trato com os dramas pessoais e a vigilância permanente contra as arbitrariedades praticadas pelo estado, pois o drama vivido hoje pelo outro pode ser o seu amanhã.

Autores

  • é advogado, especialista em Direito Público, processo legislativo, administração, políticas públicas e gestão governamental. Sócio do escritório Trajano Advogados Associados.

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