Diário de Classe

Violência, governo e Estado na obra de Steven Pinker

Autor

23 de novembro de 2013, 7h01

Spacca
“Acredite se quiser — e sei que a maioria não acredita — a violência vem diminuindo desde o passado distante, e hoje podemos estar vivendo na era mais pacífica que nossa espécie já atravessou”. [1] Essa frase, de conteúdo controvertido auto-evidente, está no pórtico de entrada das mais de 900 páginas do livro Os Anjos Bons da nossa Natureza, de autoria do psicólogo canadense e professor em Harvard Steven Pinker. Pinker é um autor de sucesso no mundo editorial atual. Seus livros são massudos e densos sendo que o tema da violência aparece como uma constante na sua linha de interesses de pesquisa. Além do livro citado, a temática surge também em outras obras como é o caso de Tabula Rasa, também com tradução para o português. Nesse último texto, o eixo argumentativo gira em torna da desconstrução de três ideias que — para o autor — estão sedimentadas no campo das concepções correntes sobre o entendimento e sobre a violência: em primeiro lugar, a concepção, proveniente da teoria do conhecimento de John Locke, de que a criança nasce numa situação em que a mente se assemelha a uma folha de papel em branco cujo colorido vai sendo preenchido a partir das experiências captadas através dos sentidos. Por outro lado, Pinker ataca também a formulação de Rousseau do mito do bom selvagem. Trata-se da conhecida ideia de que o ser humano, em estado de natureza, é bom e de comportamento pacífico, sendo a instituição da sociedade o fator responsável por introduzir a corrupção e a violência no seio da humanidade. Por fim, o autor submete a uma revisão a concepção religiosa que define o ser humano como um ente dotado de livre-arbítrio, sendo as ações do individuo o resultado das escolhas afirmadas de acordo com a sua vontade.

Já em Os Anjos Bons da nossa Natureza, Pinker se volta exclusivamente para o tema da violência projetado segundo a lente da psicologia social. Sua posição é condicionada pelo paradigma da ciência cognitiva e da neurociência. Para ele, a natureza biológica do ser humano é um dado nuclear permanente, que pode ser moldado conforme os tempos históricos por acidentes de ordem cultural.

Desse matiz biológico, Pinker deriva a interpretação segundo a qual a mente seria encarada como um sistema complexo de faculdades cognitivas e emocionais, enraizadas no cérebro, sendo sua estruturação básica tributária dos processos de evolução.

Daí sua conclusão de que o ser humano não possui uma bondade ou uma maldade inata. Pelo contrário, ele já vem “equipado” (sic) com motivações, tais quais: a empatia, o autocontrole, o senso moral e a razão, que possuem a potencialidade de afastá-lo da violência. Esse elemento biológico essencial é complementado — e condicionado? — pelo horizonte da cultura. No caso, Pinker afirma a tese de que a história influencia decisivamente a nossa psicologia na questão da violência. Assim os marcos civilizatórios afirmados no decorrer dos tempos nos pressionam psicologicamente a sentir repulsa por atos que implicam violência, mas que eram tolerados em outros tempos históricos. Esse processo opera no sentido de tornar o convívio humano cada vez menos violento.

E o autor procura demonstrar uma tal afirmação a partir de um acalentado discurso histórico e de uma pesquisa quantitativa fartamente alimentada. Ele demonstra, por exemplo, como as taxas de violências nas sociedades tribais sem governo eram maiores do que nas sociedades com governo.

Em um momento específico, Pinker aproxima conscientemente a sua investigação da de Norbet Elias.[2] Nesse aspecto, em uma das tendências de redução da violência por ele verificada, aparece o retrato do período que vai do final da idade média até o século XX. Esse período cobre situações que vão desde a afirmação, cada vez mais evidente, de uma autoridade que exerce governo de forma centralizada até o aparecimento do Estado. De fato, No seu O Processo Civilizador, Elias atribui uma queda abrupta verificada nas taxas de homicídio à consolidação de uma série de territórios feudais em torno de um grande reino dotado de uma infraestrutura comercial e à concepção de uma autoridade centralizadora. Em um primeiro momento essa autoridade será personificada na pessoa do rei e, mais tarde, acabará por gerar os estados nacionais democráticos.

Pinker destaca ainda, como fator que pressiona a queda dos índices de violência em decorrência da aversão social que se consolida em relação a determinadas práticas, o processo de afirmação de direitos, desde as declarações iluministas de direitos até aquelas que se seguiram à II Guerra Mundial e que acabaram por consolidar uma série de direitos civis, direitos das mulheres, dos homossexuais, dos animais etc. Nesse contexto, afirma o autor, assiste-se a uma crescente repulsa pela agressão em escalas menores, na violência contra minorias étnicas, mulheres, crianças, homossexuais, etc..

Em certo aspecto, a tese exposta por Pinker não destoa daquela que já havia sido construída por Norbert Elias: de que, como sociedade, estamos inseridos no contexto de um processo civilizador que nos transforma de diversas maneiras – inclusive com aspectos negativos – mas que possui, de forma saliente, um nítido valor positivo.

Nos dois casos, o aparecimento das instituições sociais que cuidam do governo e a posterior consolidação do Estado possuem um papel determinante: não fosse por eles talvez estaríamos ainda reféns da própria natureza, matando-nos uns ao outros com pedras e tacapes.

Há um quê de Thomas Hobbes nisso. Refiro-me não ao Hobbes desfigurado por algumas interpretações tendenciosas que procuram enquadrá-lo como o inimigo da liberdade e o protetor máximo do direito de propriedade. Refiro-me ao Hobbes que pensa o Estado como forma de interdição das paixões humanas incontroláveis e que é capaz de, a partir de uma gestão da economia do medo, garantir a segurança e a vida dos indivíduos.

Talvez o grande ponto diferenciador — que separa Pinker de Elias — esteja no fato de que o autor canadense procura enquadrar esses elementos civilizatórios em motivações que nos acompanham em face de nossa constituição biológica. Os “anjos bons de nossa natureza”. Há um determinismo naturalista moderado aqui. Já Norbert Elias procura pensar essa dimensão a partir daquilo que Renato Janine Ribeiro chama de uma “ética do sentido”. Como afirma esse grande filósofo brasileiro: uma dimensão ética está presente no pensamento de Elias: a convicção de que o homem se civiliza e de que isso constitui um valor positivo. O mais importante é que, para Elias, esse sentido ético projetado pelo processo civilizador não é “dado”, ou determinado por fatores de ordem natural ou biológica, mas, sim construído pelo ser humano.

Nesse processo civilizador, o governo e o Estado, institucionalizados pelo Direito, representam um fator crucial para a redução da violência. Mas, caberia perguntar: a instituição do Direito já não é, também, um ato de violência?


[1] Pinker, Steven. Os Anjos Bons da Nossa Natureza: Por que a violência diminuiu. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, passim.
[2] Elias, Norbert. O Processo Civilizador. 2 vol. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!