Direito Comparado

Jurisprudência do Direito do Consumidor evolui na França

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

20 de novembro de 2013, 19h41

A Corte de Cassação francesa é um dos tribunais mais famosos do mundo. Encontram-se referências a seus julgados em quase todos os tratados e manuais de Direito Civil e de Direito Comercial, embora a corte também exerça competência sobre o Direito Penal e o Direito do Trabalho. Legitima sucessora do “Parlamento de Paris”, ganhou o nome de “Tribunal de Cassação”, nos termos da lei de 27 de novembro-1o de dezembro de 1790. Com Napoleão Bonaparte, em 1804, recebeu a denominação histórica de “Corte de Cassação” e converteu-se na mais alta jurisdição ordinária francesa nas matérias civis, comerciais, laborais e criminais. A concepção de um tribunal com poderes cassatórios espalhou-se pela Europa, juntamente com as tropas napoleônicas. Luxemburgo, Bélgica e Itália possuem cortes com perfil semelhante à Cour de Cassation francesa.

A Corte de Cassação divide-se em: a) uma Câmara Criminal (Chambre criminelle – “Crim.”) b) uma Câmara Trabalhista (Chambre sociale – “Soc.”); c) uma Câmara Comercial (Chambre commerciale -“Com.”); d) três Câmaras Civis (Première chambre civile – “Civ. 1re”); Deuxième chambre civile (“Civ. 2e”); Troisième chambre civile (“Civ. 3e”), assim especializadas: i) direitos pessoais, de família e dos contratos; ii) responsabilidade civil e seguridade social; iii) Direito Imobiliário e da construção. A Corte pode funcionar ainda com “câmaras mistas”. O “Primeiro Presidente da Corte de Cassação” é a maior autoridade da Corte e também referido elegante e solenemente como o “primeiro magistrado de França”. Sua escolha é atribuída ao presidente da República Francesa, de entre os juízes indicados pelo Conselho Superior da Magistratura.

Os franceses consideram que a Cassação é um tribunal de teses e não de fatos. Sua finalidade é estabelecer uma interpretação uniforme do direito ordinário para todo o território nacional, de modo a permitir que um súdito da República Francesa tenha sua vida, sua liberdade e seus bens considerados sob a óptica igualitária, um dos primados ainda hoje enaltecidos daquela sociedade. As decisões do tribunal tem fundamentos extremamente sucintos, o que é bem diverso da exaustiva fundamentação que hoje se encontra nos julgados brasileiros. Fala-se inclusive em uma “arte de interpretar os acórdãos da Cassação”.

No Direito Civil, a Corte de Cassação tem acórdãos históricos. A partir dos anos 1970-1980, esse tribunal mudou sensivelmente sua orientação nos casos envolvendo o Direito dos Contratos e passou a adotar uma postura mais favorável à proteção das partes mais fracas nas relações obrigacionais. É muito importante salientar essa mudança, pois, na segunda metade do século XIX e no início do século XX, a Corte de Cassação e o Conselho de Estado francês ocuparam polos antagônicos no debate sobre a revisão dos contratos.

Como já se teve a oportunidade de destacar alhures, os primeiros julgados sobre a revisão contratual em França deram-se no Conselho de Estado, como é exemplo o famoso caso do gás de Bordeaux (Compagnie générale d’éclairage de Bordeaux), julgado em 1916, no qual se admitiu a majoração do valor do gás comercializado pela companhia bordalesa, sob o argumento de que a invasão alemã das áreas produtoras de carvão implicou o aumento de 3 vezes do preço desse minério.

Antes disso, no entanto, a Corte de Cassação, em 6 de março de 1876, decidiu o também conhecidíssimo caso do Canal de Craponne, que é considerado um dos mais importantes precedentes de sempre daquele tribunal. A situação de fato era a seguinte: os Senhor Marquês de Galliffet celebrou em 1560 e 1567 um contrato para a Comuna de Pélissanne, que tinha por objeto a manutenção de um canal de irrigação e de abastecimento de água para a comuna. Passados três séculos, o Marquês de Galliffet reajustou o valor do arrendamento, considerando a brutal desvalorização das taxas pagas pelos comunais, que se converteram em ridículas e incompatíveis com os dispêndios do aristocrata. Em primeiro grau, o Senhor de Galliffet obteve ganho de causa, em 1875, no Tribunal de Aix, mas a Corte de Cassação, em um acórdão com fundamento em dois parágrafos, cassou o acórdão local e manteve o contrato em suas base originais, a despeito da alteração das circunstâncias. Segundo os juízes da Corte de Cassação, o art. 1.134 do Código Napoleão assegurava a prevalência e a incolumidade dos pactos, não havendo razões para o juiz colocar-se acima da vontade pretendida pelas partes.[1]

Uma área na qual a Corte de Cassação emprestou grandes serviços ao Direito Privado nos últimos 30 anos foi o Direito do Consumidor. A esse propósito, J. L. Gallet, conselheiro da Corte, elaborou uma completa análise da jurisprudência desse tribunal em matéria de relações de consumo, que foi traduzida (com grande qualidade) por Clarissa Costa de Lima e publicada na Revista de Direito do Consumidor, volume 87, página 13 e seguintes, de maio de 2013, com o título em português “A proteção do consumidor na jurisprudência da Corte de Cassação”. É com base nessa resenha da evolução dos julgados da Corte francesa que se desdobrarão os itens abaixo desta coluna:

1) Conceito de consumidor. Um dos problemas que o tribunal de cassação teve de resolver foi o relativo ao conceito de consumidor, o que é algo bastante simétrico ao que hoje enfrenta o Superior Tribunal de Justiça.[2] Segundo o estudo de J. L. Gallet, a Corte de Cassação deu uma interpretação mais ampla ao que seja um consumidor, de modo a açambarcar também as pessoas jurídicas, em face de cláusulas abusivas. No julgado Cass. Civ. 1.ª, 15.03.2005: Bull. Civ. I, n. 136, o tribunal assim se pronunciou:

“Se, segundo a decisão de 22.11.2001 da Corte de Justiça das Comunidades Europeias, a noção de consumidor, no sentido da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, em 05.04.1993, concernente às cláusulas abusivas nos contratos concluídos com os consumidores, visa exclusivamente as pessoas físicas, a noção distinta de não profissional, utilizada pelo legislador francês, não exclui as pessoas jurídicas da proteção contra as cláusulas abusivas”. [3]

Essa condição de “consumidor” também foi conferida a: a) um síndico de condomínio e um sindicato de condomínios (Cass. Civ. 1.ª, 01.03.2005: Bull. Civ. I, n. 64); b) uma associação. (Cass. Civ. 1.ª, 27.09.2005: Bull. 2005, I, n. 347). Desse modo, “esta tendência a estender o benefício da proteção além das pessoas jurídicas tem o condão de conduzir a Corte de Cassação a integrar as pessoas jurídicas na noção de consumidor cada vez que o texto aplicável não comporta nenhuma restrição (ex. regulamentação em matéria de venda de viagens ou pacotes: termo ‘consumidor’)”.[4]

2) Consumidor leigo e consumidor esclarecido. No Direito brasileiro, há uma presunção ampla de vulnerabilidade técnica, jurídica e econômica do consumidor, o que torna bem mais simples o tratamento da questão de seu conhecimento dos produtos ou dos serviços adquiridos ou contratados. Ainda de acordo com o conselheiro da Corte de Cassação, nos contratos de crédito, o tribunal criou uma diferenciação entre consumidor leigo e consumidor esclarecido. De tal modo, prestigiou-se o entendimento “que coloca a cargo do banco uma obrigação de advertência em relação ao consumidor não esclarecido, que consiste em chamar sua atenção sobre os riscos ligados a seu endividamento em relação a sua capacidade financeira (Cass. Ch. Mista, 29.06.2007: Bull. Civ. ch. Mista, n. 7 e 8”. De tal sorte que se estabeleceu uma presunção de “que o mutuário não é esclarecido, cabendo ao banco provar que ele o é ou que cumpriu seu dever de advertência”. A instituição financeira será tida como exonerada desse dever se o mutuário demonstrou comportamento desleal (Cass. Civ. 1.ª, 30.10.2007: 06-17003).[5]

3) Necessidade de alegação da abusividade da cláusula. O Superior Tribunal de Justiça, após longa polêmica, resolveu a questão da impossibilidade de conhecimento da cláusula abusiva de ofício pelo juiz, ao editar a Súmula 381: “Nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas”. J. L. Gallet, em seu texto, demonstra que essa é uma matéria bem polêmica em França, especialmente por conta das diretivas da União Europeia e das mudanças legislativas no direito interno. Ele cita algumas decisões da Corte no sentido de que “o desconhecimento das exigências do art. L. 311-9 do Código do Consumo, mesmo de ordem pública, só pode ser alegado na demanda da pessoa protegida por esta disposição; em consequência, viola este texto o juiz que, para denegar a demanda ao mutuante contra o mutuário após uma abertura de crédito, destaca de ofício a regularidade da renovação do crédito ao fim de cada período anual e julga depois que o mutuante não prova ter advertido o mutuário das condições de renovação da abertura de crédito” (Cass. Civ. 1.ª, 16.03.2004: Bull. Civ. I, n. 91)”.[6]

No entanto, como o conselheiro da Corte de Cassação anota, em seguida, “esta jurisprudência estava baseada tanto numa preocupação de neutralidade do juiz quanto no princípio dispositivo, mas não poderá ser mantida”. Tal se deve em razão “novo art. L. 141-4 do Código do Consumo, oriundo da Lei de 03.01.2008”, que dispõe: “O juiz pode suscitar de ofício todas as disposições do presente Código nos litígios resultantes de sua aplicação”.[7]

Esses três pontos, que dizem respeito mais proximamente com a realidade brasileira, demonstram que o Direito do Consumidor nacional tem enfrentado problemas bem similares a seu homólogo francês. E as soluções brasileiras não são inferiores às francesas, seja em seus resultados, seja em sua fundamentação teórica. Uma vantagem do estudo da evolução pretoriana está em se descolar da simples consulta aos textos legais, cuja atualização jurisprudencial pode lhes imprimir um colorido totalmente diferenciado. E é esse um dos papéis mais relevantes do Direito Comparado.


[1] Recomenda-se ao leitor, que está interessado no estudo desses casos e na evolução da jurisprudência (não só francesa) sobre a teoria da imprevisão e a alteração das circunstâncias, a leitura de: RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Revisão judicial dos contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006. Há também o excelente livro: KHOURI, Paulo R. Roque A. A revisão judicial dos contratos no novo Código Civil, Código do Consumidor e Lei n. 8.666/93 : a onerosidade excessiva superveniente. São Paulo: Atlas, 2006.
[2] Para um estudo atualizado desse tema, é também indicada a leitura de: RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz . Um “modelo de revisão contratual por etapas” e a jurisprudência contemporânea do Superior Tribunal de Justiça. In: LOPEZ, Teresa Ancona; LEMOS, Patrícia Faga Iglecias; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. (Org.). Sociedade de risco e Direito Privado: Desafios normativos, consumeristas e ambientais. 1 ed. São Paulo: Atlas, 2013, v. 1, p. 469-514.
[3] GALLET, J. L. A proteção do consumidor na jurisprudência da Corte de Cassação. Traduzido por Clarissa Costa de Lima. Revista de Direito do Consumidor, v. 22, n. 87, p. 13-30, maio/jun. 2013. item I.1.
[4] GALLET, J. L. Op. cit. loc. cit.
[5] GALLET, J. L. Op. cit. loc. cit.
[6] GALLET, J. L. Op. cit. loc. cit.
[7] GALLET, J. L. Op. cit. loc. cit.

Autores

  • Brave

    é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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