Ideias do Milênio

'Informação livre é crucial para fortalecer economia'

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15 de novembro de 2013, 7h00

Entrevista concedida pela economista Ngaire Woods, diretora da escola de administração pública da Universidade de Oxford, ao jornalista Marcelo Lins, para o programa Milênio, da Globo News. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30. 

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Como melhorar a vida de bilhões de seres humanos continua a ser uma das grandes questões do nosso tempo. Há quem ache que a resposta está em governos nacionais enxutos e discretos que não atrapalhem o mercado em toda a sua potencialidade. Outros defendem o caminho mais centrado na prática política, a criação ou o fortalecimento de instituições multilaterais que acenem com regulações e fiscalização além fronteiras. Ganha espaço ainda a ideia de dar mais poder para os países emergentes. Mas talvez a resposta não esteja nem na política pura, nem nos dogmas liberais da economia de mercado. Um possível caminho pode estar em aprimorar os processos de governança, local e internacional, ao mesmo tempo em que se revê as possibilidades de diálogo e cooperação disponíveis. A economista neozelandesa Ngaire Woods defende reformas profundas nos organismos multilaterais para adequá-los à realidade atual. Ressalta a importância de uma regulação clara no setor financeiro para evitar a repetição de uma crise como a de 2008, e lembra que os países que formam o Brics, por mais visibilidade que tenham ganho nos últimos anos, precisam trabalhar juntos se quiserem um dia influenciar decisões em escala mundial. Diretora da Blavatnik School of Government, a escola de administração pública da Universidade de Oxford, Woods também acha importante ouvir com muita atenção e vontade de entender a voz das ruas para não perder o bonde da história. Ngaire Woods esteve no Brasil a convite da Fundação Lemann e falou ao Milênio na Academia Brasileira de Letras, no Rio.

Marcelo Lins — Professora Ngaire Woods, obrigado por encaixar esta entrevista em sua agenda aqui no Brasil. Vou começar por um assunto bem geral, que é a governança global. Quando as pessoas ouvem essa expressão, muitas delas pensam no fim dos governos nacionais e locais. O que pode explicar a elas sobre a governança global e quando ela é necessária?
Ngaire Woods — A primeira coisa que eu diria é que elas têm razão em achar que a governança global não deve assumir o lugar do governo nacional. O que a governança global, a cooperação entre as nações faz é tornar possível que os governos nacionais cuidem de sua população e atinjam os objetivos almejados por sua população. Portanto, devem se preocupar se alguém propuser algo além disso, mas eu tranquilizaria essas pessoas dizendo que não há a menor chance de que os cidadãos queiram delegar o governo a um organismo que eles não tenham como controlar e responsabilizar.

Marcelo Lins — Hoje, quais são os principais desafios para uma cooperação global prática e eficiente?
Ngaire Woods — Uma questão específica é o mundo após a crise financeira de 2008. Aquela crise mostrou que a quebra de um banco de investimentos nos EUA poderia repercutir imediatamente no resto do mundo, fazendo com que pessoas no sul da África perdessem seu sustento e sua renda. Isso gera pelo menos três problemas de governança global. Primeiro: como regulamentar? Esses bancos eram regulamentados em sua atividade nacional, mas vagavam pelo mundo sem regulamentação. A cooperação global é necessária para regulamentar bancos internacionais que nenhum governo individual é capaz e para lidar com crises. O Brasil é um país que sabe bem disso, porque já lidou com crises. Às vezes, foi atingido por crises nos vizinhos ou até por uma crise na Ásia, que repercutiu nesta região. É nessas situações que precisamos de mecanismos globais para ajudar os países.

Marcelo Lins — Nos últimos anos, houve muitas discussões sobre a necessidade de uma reforma profunda em organismos multilaterais, como o FMI, o Banco Mundial e até a própria ONU. A senhora tem muita experiência com esses organismos. Acha que precisamos mesmo trazê-las dos anos 50, 60 e 70 para o século XXI?
Ngaire Woods — Você tem toda razão. Elas precisam ser atualizadas. É muito importante que países como o Brasil e outras economias emergentes se apoderem desses organismos. Eles não podem continuar sendo simples ferramentas das antigas potências imperiais. Sem a menor dúvida. Mas, ao mesmo tempo, não devemos achar que esses organismos podem se tornar ferramentas rápidas e eficientes de políticas econômicas, e eles nem devem ser isso. Se fossem, não seriam legítimos. Isso está acontecendo com a ONU na Síria. As pessoas estão dizendo que a ONU é lenta e incompetente, que os governos não a usam, a ignoram… Mas, na verdade, é uma forma através da qual os governos podem falar. É muito importante. O presidente Putin disse que vai respeitar o que a ONU decidir e está preparado para negociar na ONU. O mesmo acontece com o FMI. É importante ter uma instituição na qual os países vão negociar. Ela produzirá resultados instantâneos? Não. Será lento, difícil, complicado e confuso, e é assim para proteger a democracia e a soberania dos países. Negociações internacionais têm que ser lentas e difíceis. Então, quem quer se livrar dos organismos internacionais quer substituí-los por algo mais eficaz, ou simplesmente não acredita na cooperação internacional. Eu acho que os dois cenários estão errados. Se tentar reinventá-los, vai acabar com organismos iguais aos atuais. Se você tenta acabar com eles, os países logo vão descobrir que não conseguem atingir seus objetivos sem cooperação, e que a cooperação às vezes precisa de regras para que não haja trapaças, desistências e ou que termine sem resultado. Vimos isso nos anos 20 e 30, quando o mundo mergulhou na Grande Depressão porque os países não queriam cooperar.

Marcelo Lins — Isso nos leva a outro assunto diretamente ligado a esse, que é esse novo multilateralismo, defendido por tantos. Acha que é algo possível? Estamos num processo de construção de um multilateralismo ou isso é apenas uma esperança de algumas pessoas?
Ngaire Woods — Está acontecendo. Os Brics, países como o Brasil, estão se tornando mais influentes, mas por dois ou três meios diferentes e interessantes. Primeiro, o Brasil e outras economias emergentes criaram maior resistência, aumentando suas reservas e forjando novas parcerias bilaterais além das velhas parcerias com os EUA. Por causa disso, eles têm mais influência, porque têm opções. Os novos organismos regionais que, desde 2008 têm mais poder, também mostram que economias emergentes não podem ser ignoradas. E há as novas relações, principalmente entre a China e a África, mas veja as novas relações do Brasil com o resto do mundo. O que isso significa é que, depois de lutar tanto para mudar organismos internacionais como o FMI, com o qual o Brasil tem um histórico tão longo, o que os brasileiros estão vendo é que o FMI não está mudando por causa de esforços internos, mas porque percebeu que tem de mudar para não ficar totalmente marginalizado.

Marcelo Lins — A crise financeira que começou em 2008 e ainda é sentida no mundo inteiro, aqui no Brasil, mas também na Europa e nos EUA trouxe muitas dúvidas em relação à forma como os governos em geral, particularmente os governos das grandes potências, reagiram a essa crise. O que acha dessas reações e o que podemos aprender com o que aconteceu?
Ngaire Woods — Para mim, a primeira e mais óbvia lição é que toda crise financeira, nas últimas muitas décadas, alguns diriam até nos últimos séculos, primeiro levava os governos a usarem o dinheiro do contribuinte para socorrer investidores. Depois, os mesmos governos diziam ao povo: “Isso jamais vai se repetir. Nunca mais usaremos dinheiro de impostos para socorrer bancos.” Foi isso que aconteceu na década de 1980, quando a crise da dívida latino-americana explodiu. Foi o que aconteceu na década de 1990 e foi o que aconteceu depois de 2008. Então, a primeira lição é: eles estão fazendo o necessário para cumprir essa promessa? Por enquanto, não. Então, o que as potências mundiais fizeram nos últimos 30 anos foi criar medidas e regras claras para a abertura do mercado permitindo a globalização financeira, mas nunca criaram regras que assegurem ao mesmo tempo um equilíbrio global. Estamos num caminho agora que… Esta semana, na reunião do G20, Mark Carney vai tentar aprovar regulamentações mais robustas. Se os governos não fizerem isso, o mundo terá que se desglobalizar e o sistema financeiro também. Muitos diriam que isso não é ruim. Permitiria que os governos, de forma mais eficaz, assumissem a responsabilidade de proteger sua população e adotar uma regulamentação prudencial. Mas há um bom argumento a favor de certos tipos de finanças internacionais. Ninguém é contra financiamentos do comércio. É o óleo que mantém a economia global funcionando, é o que assegura que os criadores do nordeste do Brasil exportem seus produtos. Esse tipo de cooperação sempre será importante. A desglobalização não pode ir longe sem prejudicar o sustento até dos pobres. Então, a lição para mim é que os governos agora terão de decidir claramente se irão adotar medidas rigorosas de regulamentação, que são impopulares entre os grandes grupos bancários e financeiros que financiam suas campanhas. E essa é a dificuldade.

Marcelo Lins — E quais são os fundamentos da boa governança? Existe um conjunto de fundamentos? E é possível ensiná-los?
Ngaire Woods — Para governar bem é necessário se educar e se manter informado. Dizem que um bom líder é alguém de visão. Eu diria que não: um bom líder é alguém com visão informada, e isso significa saber ouvir a comunidade e analisar o que os indícios mostram que funciona na hora de formular políticas. Mas você pergunta o que é a boa governança, o que é a democracia. Acho que é muito importante deixar claro que a democracia não envolve apenas eleições, ela envolve três coisas, e todas devem estar presentes num governo bom e responsável. A primeira são as eleições e o poder de os cidadãos escolherem seus governos, mas a segunda tem a mesma importância: um governo controlado pelas leis. Ter um Estado de direito para que os governos não desrespeitem suas próprias leis. Seu uso do poder é limitado. Isso é muito importante. O Estado de direito é tão importante quanto as eleições. Em terceiro lugar, a democracia tem que proteger todos os grupos de uma sociedade, inclusive das minorias. Não é um sistema de predomínio da maioria. Para muita gente, a democracia equivale a apenas uma ou duas dessas coisas. Mas quando a democracia comporta as três coisas, acredito que seja um ótimo sistema de governo.

Marcelo Lins — Acha que há uma relação direta entre democracia e boa governança?
Ngaire Woods — O termo “boa governança” surgiu porque os economistas não queriam usar o termo “política”. Os economistas do FMI e do Banco Mundial disseram: “Não vamos falar em ‘política’, mas em ‘boa governança’. Assim não temos de decidir se um país é democrático ou não.” Mas o problema disso é que quem defende governos tecnocráticos imagina um mundo em que todos são tão racionais quanto eles se julgam ser e que essas pessoas racionais tomam decisões informadas e baseadas em fatos concretos. Mesmo se isso fosse verdade, o problema de um governo é que o sistema se corrói muito rapidamente. Até tecnocratas, após muitos anos no poder, percebem que seus parentes e a própria comunidade começam a querer as negociatas, as propinas… Governos se corrompem muito rapidamente e também perdem o zelo da eficiência, e é por isso que a democracia, embora difícil e complicada, é muito importante. Ela assegura a alternância no governo.

Marcelo Lins — Como vê a importância do fluxo livre de informações para uma sociedade fortalecer a democracia e a economia?
Ngaire Woods — É crucial. A imprensa e os jornalistas têm um papel importantíssimo nisso, assim como os think tanks, porque é preciso pegar as informações e disponibilizá-las às pessoas, para que elas possam reagir. Acho que há uma grande diferença entre um governo que só reage e um governo que responde. Quando um governo vê pessoas se manifestando nas ruas e muda suas políticas imediatamente, não está servindo bem à população. Mas quando um governo vê gente nas ruas e se pergunta: “Estamos fazendo o bastante? Estamos sendo eficientes?” E usa o aparato do governo para melhorar, isso para mim é um governo que responde.

Marcelo Lins — O que acha da importância de os governos ouvirem os protestos, seja no Brasil, na Rússia ou no mundo árabe? Qual é a importância de se ouvir esses protestos?
Ngaire Woods — É absolutamente essencial. Não porque os protestos sempre representem a maioria, mas porque representam ao menos uma fatia da população que está sentindo os efeitos das políticas do governo. E até mesmo os governos que tentam ouvir o povo e sabem quais são os impactos de suas políticas são sempre um pouco cegos, porque os burocratas não querem analisar o que não está funcionando ou porque o governo é muito distante do povo. E os cidadãos que assumem a responsabilidade e saem às ruas para protestar… Acho que é parte da responsabilidade do cidadão chamar a atenção dos governos. É muito desconfortável para os governos. É claro que vão querer se livrar deles, mas isso faz parte do que mantém um governo consciente de que, às vezes, ele nem sempre sabe do impacto de suas políticas.

Marcelo Lins — Qual é a importância dos Brics na economia mundial, não só hoje, mas a importância que esse grupo pode ter num futuro próximo se conseguir aproveitar essa janela de oportunidade?
Ngaire Woods — Acho que os Brics, nos últimos cinco anos, têm sido uma força muito importante para testar e desafiar um consenso decrépito dos países do G7, porque, economicamente o G-8 nunca foi muito forte. Esses países tinham chegado a um consenso confortável e também a um motivo para não ouvir o resto do mundo, e acho que a explosão dos Brics forçou-os a analisar se aquelas premissas estavam certas e se eram eficazes. Acho que isso é muito positivo, mas gostaria de ver os Brics indo mais longe e sendo mais eficazes. Amanhã, o G20 vai se reunir. E, quando esses líderes se reúnem, os ministros da economia do G7 já se coordenaram, já trocaram informações, coordenaram suas políticas e sabem no que discordam e no que concordam. Acho que, para o G20 ser mais eficiente, os Brics devem fazer o mesmo. Muita gente acha isso horrível e diz: “Assim não teremos um consenso”, mas o consenso do G20 não deve ser o mesmo do G7 simplesmente vendido para o resto em São Petersburgo em dois dias. Deve ser um consenso levando em conta as preocupações de todos. Se os órgãos de controle das finanças globais tivessem ouvido melhor o Brasil, a África do Sul e a China na década anterior à crise financeira, levando em conta a sua preocupação com a regulamentação prudencial, talvez tivéssemos um sistema de controle financeiro mais equilibrado. Em relação ao debate sobre a Síria, é claro que os EUA podem agir sozinhos ou convencer um país europeu a aliar-se a eles no ataque aéreo, mas a única solução viável para a Síria é uma solução política. E não haverá uma solução política sem uma negociação com a Rússia. Você pode não desejar essa negociação, pode não saber como começar essa negociação, mas, sem ela, não haverá solução.

Marcelo Lins — E essas “coisas práticas” que menciona não precisam ser complexas. Aparentemente, há coisas simples que podem ser feitas para aproximar os governos e para atingir consensos.
Ngaire Woods — Com certeza. Não precisam ser cúpulas caras envolvendo líderes e realizadas em locais exóticos. É a coordenação entre as autoridades que faz as negociações avançarem nos bastidores. São os jovens e brilhantes assessores que precisam estar constantemente negociando políticas. Essas são as pessoas que estamos formando na Blavatnik School of Government. Quando a faculdade foi criada, me perguntaram qual era o meu sonho. Uma das coisas que sei é que temos estudantes que fazem parte de governos de países do G20. Além de estarem aprendendo como tomar essas decisões, eles estão se conhecendo, e isso facilitará na hora de o assessor do ministro da economia do Brasil ligar para o assessor russo, o sul-africano, o chinês, com quem passou um ano estudando, indo a festas, debatendo… Acho que isso é uma das formas de fazer essas instituições funcionarem melhor.

Marcelo Lins — Na minha pesquisa de preparação para esta entrevista, eu a ouvi dizer algo como: “a democracia pode se enfadonha”, mas diria que ela vale o esforço e o suor que gastamos com ela?
Ngaire Woods — É muito difícil não repetir a frase de Winston Churchill, mas todo mundo repete, porque ela é boa. Como ele disse, a democracia é o pior sistema, tirando todos os outros que foram testados. Mas o que quero que as pessoas tenham em mente é que não basta haver eleições para dizer que isso é democracia. Isso não basta. Uma democracia não é composta apenas por eleitores ativos, mas por cidadãos que se responsabilizam pelo controle do governo e por um governo que responde, para que seus filhos e netos gozem dos benefícios de uma democracia plena. Ela dá trabalho aos cidadãos, não apenas aos governos.

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