Despesa reservada

Prefeito não precisa pagar do próprio bolso gasto sigiloso

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12 de novembro de 2013, 15h01

O direito financeiro está no olho do furacão, mais uma vez.

No início da semana passada, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, afirmou que utilizou recursos próprios para alugar imóvel com o intuito de possibilitar uma investigação administrativa sobre suposto desvio de dantescas quantias de recursos públicos.

O gestor municipal afirmou que caso fossem utilizadas as trilhas usuais, com a celebração de um contrato de locação do imóvel, os integrantes do grupo perceberiam a investigação e os esforços seriam infrutíferos. Ou seja, se o gasto público fosse realizado pelas vias ordinárias o interesse público — investigar e posteriormente recuperar o dinheiro — não seria atingido.

A questão que o presente ensaio visa analisar brevemente é: O prefeito tinha outra saída? Poderia deixar de utilizar recursos próprios e utilizar, secretamente, recursos públicos?

Em artigo imprescindível sobre o tortuoso tema das despesas sigilosas, Fernando Facury Scaff delineia precisamente a realidade ao afirmar que “todo governo realiza gastos sigilosos com base em vários fundamentos, entre eles a segurança do Estado e da sociedade”[1].

Em tempos nos quais antigos agentes de espionagem desvelam inúmeros casos de espionagem e contraespionagem, o tema das despesas sigilosas exsurge, dolorosamente, para todos os estudiosos do direito público.

Há 30 anos talvez não, mas hoje toda e qualquer questão jurídica deve atravessar, obrigatoriamente, o texto constitucional devendo este permanecer ileso, e surge a pergunta: os gastos públicos sigilosos encontram-se sob o manto da constitucionalidade?

De um lado, é cediço o corolário constitucional da publicidade, regente de todas as condutas administrativas, por expressa determinação do artigo 37, caput, da Constituição de 1988. Associado, e o regulamentando, tem-se a Lei 12.527, de 18 de novembro de 2011, a Lei de Acesso à Informação, lei nacional, ou seja, que regulamenta todos os entes da federação, conforme determina o seu primeiro artigo, que regulamenta o direito de todos de acesso às informações.

Assim, a regra é clara: todas as despesas devem ser públicas, com amplo e fácil acesso por parte de toda a população, sendo, consequentemente, louváveis iniciativas como o Portal da Transparência.

Entretanto, o próprio texto constitucional, em seu artigo 5°, inciso XXXIII, assenta as excepcionais hipóteses à ampla publicidade dos dados públicos ao determinar que “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado” (grifos nossos).

Sobre o tema, Régis Fernandes de Oliveira preleciona que “o dispositivo constitucional mencionado permite, pois, que haja informações sigilosas, o que redunda ou pode redundar em despesas necessárias. Abre-se, pois, a oportunidade para que ocorram no Estado despesas que não podem e não devem ser reveladas à sociedade”[2].

A própria Lei de Acesso à Informação traz as hipóteses e formas de classificação das informações, e despesas, públicas ao determinar que “a informação em poder dos órgãos e entidades públicas, observado o seu teor e em razão de sua imprescindibilidade à segurança da sociedade ou do Estado, poderá ser classificada como ultrassecreta, secreta ou reservada” (artigo 24, da Lei 12.527/2011).

O aluguel do imóvel em questão — gasto destinado à investigação para recuperação de recursos públicos supostamente desviados — poderia ter sido classificada, por exemplo, como reservada? Em tese, sim. Ademais, o manto do sigilo deveria ser retirado com o final das investigações, com determina o artigo 24, parágrafo 3°[3], da Lei de Acesso à Informação.

A questão é delicada e merece, ironicamente, regulamentação clara e precisa, no âmbito de cada ente federado[4], tal como ocorre na Lei de Acesso à Informação[5], com o intuito de se obstar excessos e ilegalidades.

Fernando Facury Scaff[6], em artigo incontornável para a qualquer estudo do tema, conclui, no que interessa a este breve ensaio, que: i) há exceção ao direito constitucional à verdade no acesso às informações públicas, sendo imperiosa a não utilização indiscriminada, e somente em casos excepcionais e de maneira restritiva; e, ii) que as Cortes de Contas, ao analisarem e constatarem que o gasto não se enquadra nas excepcionais hipóteses, devem promover a reclassificação da despesa.

Em suma, as duas parcelas de R$ 500,00 (quinhentos reais) financiadas pelo chefe do executivo municipal paulistano poderiam, em tese, ter sido arcadas pelo contribuinte, ainda mais se considerando que os benefícios morais e econômicos potenciais oriundos dos gastos serão, espera-se, exponencialmente maiores.


[1] SCAFF, Fernando Facury. Direitos fundamentais e orçamento: despesas sigilosas e o direito à verdade. In: CONTI, José Maurício. SCAFF, Fernando Facury, Orçamentos Públicos e Direito Financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p.217.

[2] OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 475.

[3] “§ 3o  Alternativamente aos prazos previstos no § 1o, poderá ser estabelecida como termo final de restrição de acesso a ocorrência de determinado evento, desde que este ocorra antes do transcurso do prazo máximo de classificação”.

[4] No âmbito federal, por exemplo, o art. 92, da Lei n° 8.443/92, Lei Orgânica do TCU, dispõe: “Os atos relativos a despesa de natureza reservada serão, com esse caráter, examinados pelo Tribunal, que poderá, à vista das demonstrações recebidas, ordenar a verificação in loco dos correspondentes comprobatórios, na forma estabelecida no Regimento Interno. Os atos relativos a despesa de natureza reservada serão, com esse caráter, examinados pelo Tribunal, que poderá, à vista das demonstrações recebidas, ordenar a verificação in loco dos correspondentes comprobatórios, na forma estabelecida no Regimento Interno.”

[5] A título de exemplo, a Lei de Acesso de Informação, e posteriores decretos regulamentadores, discriminam os procedimentos e competências para classificação das informações, e determina que somente Presidente da República, Vice-Presidente da República, Ministros de Estado, autoridades com as mesmas prerrogativas destes, Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica e Chefes de Missões Diplomáticas e Consulares permanentes no exterior podem classificar qualquer informação com ultrassecreta.

[6] SCAFF, Fernando Facury. Direitos fundamentais e orçamento: despesas sigilosas e o direito à verdade. In: CONTI, José Maurício. SCAFF, Fernando Facury, Orçamentos Públicos e Direito Financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, pp. 230-231.

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