Mentiroso em série

Corte nos EUA analisa saga de “fabulador” candidato a advogado

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9 de novembro de 2013, 6h34

Mentiras tiveram pernas curtas na carreira do ex-jornalista e aspirante a advogado Stephen Glass. Mas, aparentemente, deixaram rastros indeléveis em sua vida profissional. Em meados da década de 1990, Glass, com pouco mais de 20 anos, se tornou um jornalista famoso em todo o país, por uma série de reportagens brilhantes que publicou em grandes revistas. Era tudo mentira, pura obra de ficção, fabricada por sua mente criativa, que destruiu reputações de celebridades e corporações. Nesta semana, já com 41 anos, Glass ouviu umas "verdades" da Suprema Corte da Califórnia, quando tentava ganhar na Justiça o direito que lhe foi negado à licença de advogado, pela segunda vez, acusado de ser um "mentiroso em série" — um "serial liar".

Outras publicações cuidaram de desmentir, progressivamente, as reportagens de Glass. Cartas também chegaram às redações, mas os editores defendiam seu jornalista brilhante, às vezes com réplicas duras. Até o dia em que uma chefe de redação resolveu telefonar para uma fonte de Glass, em uma empresa. No primeiro telefonema, ninguém na empresa atendeu a chamada, o que já foi estranho. No segundo, alguém atendeu e confirmou as informações que teria dado ao jornalista. Mas uma investigação da revista revelou que o número do telefone era do irmão de Glass. E o demitiu.

Depois que caiu em desgraça no jornalismo, Glass partiu para a advocacia. Se formou pela Faculdade de Direito da Universidade de Georgetown, sem dificuldades. Passou no Exame de Ordem no estado de Nova York, também sem dificuldades. Mas o pior estava à espreita. Em 2002, logo depois de requerer, no estado de Nova York, sua licença para atuar como advogado, foi avisado de que seu pedido seria rejeitado: faltava-lhe no currículo o "padrão exemplar de conduta" exigível de advogados. Ele retirou o pedido.

Antes disso, Glass já havia feito o que podia para apagar os rastros deixados por suas reportagens mentirosas. Escreveu mais de 100 cartas às pessoas e organizações que prejudicou com suas reportagens fabricadas e às revistas de expressão nacional em que trabalhou — The New Republic, Rolling Stone, George, Harper’s e outras. Admitiu haver mentido em 40 reportagens, no todo ou em partes delas. Reconheceu os erros, pediu perdão, fez psicanálise e se declarou um homem mudado. De nada adiantou: no estado de Nova York ele não seria advogado.

Em 2003, Glass publicou um livro: The Fabulist ("O Fabulador"), uma novela autobiográfica em que contava sua história de mentiroso e sua saga para passar uma borracha no passado. O livro lhe rendeu uma entrevista no famoso noticiário da TV americana 60 Minutes, uma palestra na Universidade George Washington sobre "Ética no Jornalismo" e um filme. Shattered Glass ("Vidro quebrado, em um trocadilho com seu nome) foi dirigido por Billy Ray e estrelado por Hayden Chrisensen, como Glass.

Mas Glass não desistiu da advocacia. Em 2007, atravessou o país e desembarcou em Los Angeles. Há cinco anos do fracasso em Nova York e a mais de duas mil milhas do estado, pensou estar distante o suficiente de seu passado. Fez o Exame de Ordem na Califórnia, passou sem dificuldades e, mais uma vez, seu pedido de licença foi negado. O conselho de examinadores prestou mais atenção às pegadas de suas mentiras e, como em Nova York, questionou sua moralidade.

Glass conseguiu um emprego de assistente jurídico no escritório Carpenter, Zuckerman & Rowley, para não ficar longe da advocacia. Se concentrou em recriar sua imagem e passar a ser visto como um profissional honesto, sério e trabalhador. Prestou serviços pro bono para a banca e fez doações a instituições beneficentes, para ressaltar seu novo caráter.

Pronto para um novo round, Glass voltou à Justiça. Recorreu contra a decisão do conselho de lhe negar a licença. Levou ao tribunal 22 advogados, juízes, professores de Direito, amigos e um psiquiatra, todos dispostos a testemunhar sobre sua reabilitação e seus altos padrões éticos, nos dias de hoje. O tribunal concluiu que ele estava suficientemente reabilitado. Porém, o conselho recorreu à Suprema Corte da Califórnia, que tem a palavra final na concessão de licença a advogados.

O advogado Jon Eisenberg o representou na primeira audiência desta semana. Porém, antes que abrisse a boca, foi bombardeado por críticas e questionamentos dos ministros e da procuradora que representou o conselho. Isso indicou, segundo o Los Angeles Times e o The Recorder, que as probabilidades de sucesso de Glass são mínimas.

"Esse é um caso de um mentiroso em série, não de um adolescente desorientado", disse a procuradora Rachel Grunberg, com o que os ministros pareceram concordar. "Ele não cumpriu os altos padrões exigidos pela corte para provar sua reabilitação", afirmou. A ministra Joyce Kennard perguntou por que a corte deveria acreditar em o que quer que seja que ele diga.

A ministra Kathryn Werdegar perguntou como se pode conceder uma licença a alguém, para uma profissão que depende sobretudo de confiança. "Ser admitido para praticar advocacia é um privilégio", ela declarou. "Há muitos outros tipos de profissão que você pode escolher, em que não é preciso cumprir essas exigências de conduta", ela argumentou.

O advogado iniciou a defesa. Mas quando mencionou que os colegas do escritório de advocacia, onde Glass trabalha como assistente jurídico, se impressionaram com sua ética e honestidade, foi interrompido pela ministra Carrol Corrigan: "Ele também impressionou seus colegas no The New Republic".

Glass não engana a mais ninguém. Nem com a verdade.

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