Senso Incomum

O “azul resplendor” do Direito e os sentidos perdidos

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7 de novembro de 2013, 7h00

Spacca
O “achamento” dos argumentos
Cena 1. Streck e a literatura gauche-regional
Como já contei aqui, dia destes, meu livro O Que é isto — Decido Conforme minha Consciência? foi objeto de uma pergunta na prova escrita para o concurso da magistratura de Santa Catarina. Mais ou menos assim: o que se entende por pamprincipiologismo e solipsismo, segundo a obra do Prof. Lenio Streck? A questão provocou reações das mais iradas. Senti-me como um médico cubano chegando no aeroporto de Fortaleza. Sem dinheiro e… vaiado (pelos concurseiros). O pior ainda estava por vir. Nos recursos, consta que alguns candidatos argumentaram — parece que até junto ao CNJ — que “isso” de pamprincipiologismo e solipsismo era só coisa de um autor (no caso eu) e que, como eu era do RS, havia precedentes do CNJ no sentido de que não se podia utilizar literatura jurídica regional. Bingo. E é esse tipo de gente quer ser juiz… Está certo que o RS já esteve envolvido com a República Farroupilha e que queria separar do Brasil, como a própria querida Santa Catarina, então denominada, em parte, de República Juliana. Minha literatura seria regional… Que coisa, não? Estocar comida me parece ser a única saída. E vou lançar um manual para construção de bunkers. Mas um manual simplificado, porque se não a “casa cai”, se me entendem…

Cena 2, 3 e 4. O cão do Eike (que fala alemão), o Metrô de SP, os fiscais de SP etc
Deu na Folha de S.Paulo que desde o ano passado os executivos de Eike Batista já sabiam que as reservas de petróleo de seus poços poderiam ser 80% menores… Mas não informou aos seus acionistas. Falando em Eike, ele tinha no seu conselho diretivo uma ex-ministra do STF (do Brasil e não do Togo) e um ex-ministro da Fazenda (do Brasil e não do Sri Lanka). Fora outros menos votados. Eike era “o cara”. Os grandes veículos de comunicação o celebravam. Seu cachorro falava alemão. Veio de avião da Europa para cá (o cachorro). Os colunistas sociais adora(va)m isso. Piolhos de ricos… Eike dizia que suas ações eram à prova de idiotas. Ele se referia, por certo, ao BNDES e às gentes do governo…

Já em São Paulo roubaram R$ 400 milhões do metrô e mais de R$ 500 milhões da prefeitura. Anos e anos. Como ninguém descobriu isso? Agora, além dos fiscais presos, estão investigando 42 auditores. Estariam faltando predadores “do bem” que combatam os “predadores do mal”? No ecossistema do crime, pode estar dando confusão… Afinal, por vezes os predadores já não sabem de que lado estão…Tudo parece tão confuso nessa pós-modernidade, pois não?

Cena 5. Uma questão epistemológica: o que é um especialista em crise?
Roberto Carlos é(ra?) contra que se escrevam biografias não autorizadas. Consta que contratou Mario Rosa, autor do livro A Era do Escândalo e que trabalhou para o grande filósofo contemporâneo Ricardo Teixeira, ganhador da Ordem-Grã-Cruz-Por-Serviços-Prestados-à-Pindorama. Rosa é consultor especializado em crises. Tudo bem, mas o que me intriga é uma questão “epistemológica”: o que é ser “especializado em crises”? O sujeito cria crises ou “apaga crises”? Que curso fez um sujeito para ser especialista em crises? Essas coisas me deixam cabreiro. Seria algo como o personagem cleaner, do filme Pulp Fiction? Ele chega ao local do crime e “limpa tudo”? (lembram da cena do personagem interpretado por Harvey Keitel, que interpreta o personagem "The Wolf"). Deixa tudo clean? Divirto-me com essas coisas. A propósito: com a crise provocada pelos black blocks, onde estariam os especialistas que deitam cátedra na Globo, chamados de “experts em gestão de crises”? Vou estocar panos kleenex, para limpar resíduos de crise…

Cena 6. A “neuroeconomia no direito”: viva a ocitocina!
Esteve no Brasil o professor Paul Zak, conhecido como Dr. Love. Ele é um dos inventores da “neuroeconomia” (só esse nome já me dá “nos nervos”). O cerne dessa disciplina seria discutir as motivações de gastos e investimentos. E isto teria a ver com uma substância identificada com o amor e a moral, a ocitocina, que nos diz quando confiar e quando desconfiar, quando gastar e quando poupar — afirma o pesquisador. Seria uma espécie de “molécula moral” (sic). Por que os grandes filósofos da ética e da moral não pensaram nisso até hoje? O problema moral é… químico. Isso vai desempregar filósofos, psicanalistas e até… juristas.

Não coloco em dúvida a existência da tal ocitocina. Mas, por que ele não vende a ideia para os governos, que, em vez de gastarem em Copa do Mundo, poderiam gastar na construção de hospitais, pois não? Os governantes devem estar com uma baixa dose de ocitocina. Sugiro que os governos contratem o Dr. Love. Pronto: Zak para Ministro da Fazenda. Ou para o cargo de encarregado de compras. Junto, grandes doses de ocitocina. Já estou imaginando na campanha eleitoral: “Vote no candidato que tem mais ocitocina”. Logo, saberá poupar e gastar bem! E quem sabe boas doses de ocitocina para a equipe econômica do governo e os diretores da Petrobras? Como diz Paulo Kliass (ler aqui), “a única explicação que resta para se tentar compreender a aceitação do leilão do Campo de Libra é a visão estreita do curto prazo, a lógica pequena de fechar as contas no final do mês”. Faltou, pois, ocitocina.

Também poderíamos levar o Dr. Zak para o ramo da Justiça. Dr. Zak como magistrado, quem sabe? Como uma boa dose de ocitocina, poderíamos ter menos decisões solipsistas. As decisões não mais dependeriam do (bom ou mau) humor do julgador. Um magistrado, em decisão de colegiado, não mais diria em três decisões seguidas que para ele “dar” dano moral, necessita ver provada a intenção de causar dano e, na quarta decisão, trocar de tese, sob o argumento de que “cada caso é um caso” (ou seja, dependendo de quem é a parte, muda a “régua da lei”).

Cena 7. O que seria isto — a virada linguística?
Em recente artigo publicado na ConJur (leia aqui), foi dito que “desde a virada linguística o sujeito (e os juízes) não tem mais acesso direto às essências transmitidas pela linguagem, sendo cognitivamente limitado” (sic). Neste sentido, segue o artigo, não podendo conhecer a priori todos os significados das regras, o ato de julgar teria sido transformado em um jogo argumentativo, enfim, em “uma guerra de palavras”, em que as partes disputam o convencimento do juiz pela qualidade de sua argumentação. Bonito, não? Só que tudo isso foi feito com uma leitura equivocada da história da filosofia. E o que a virada (viragem) linguística teria a ver com o recebimento de honorários advocatícios, pano de fundo da matéria? Lendo o artigo, fica a dúvida e a perplexidade: afinal, com a viragem linguística “o essencialismo” (sic) se transformou em retórica? Seria isso? Se isso é verdadeiro, a viragem linguística é responsável pelo subjetivismo? Como assim? Mas, não seria exatamente a viragem linguística (a segunda, porque a primeira foi meramente analítica, a do neopositivismo lógico) que encerra (ou enterra) a filosofia da consciência (e as suas vulgatas voluntaristas)? De todo modo, insisto, quero frisar que não entendi a relação da viragem linguística com os honorários. Enfim… Deus morreu, Marx se foi e eu já não estou me sentindo muito bem com isso tudo (uma paródia de uma frase de W. Alen).

Cena 8. E o Maluf? Inelegível. O que será de nossa democracia sem ele?
Após doze anos (o processo é 2001!), Maluf foi condenado pelo TJ-SP e se tornou inelegível por cinco anos, em razão da Lei da Ficha Limpa. Bem, na verdade, deveria se tornar inelegível (finalmente). Mas, como o personagem Jason, daquele filme do sujeito com a máscara de beisebol, ele sempre volta. E voltará! A condenação também foi para ressarcir aos cofres públicos a nada módica quantia de R$ 42,3 milhões. Mas, aí entra o fator "Jason", porque ainda há recursos para o STJ e STF, bem como embargos… embargos dos embargos, proto embargos, embargos dos embargos dos embargos… infringentes ou não. Enfim, a torcida é para que ele tenha uma vida longa, afinal, do jeito que vai, caso seja definitivamente condenado, até que todos os recursos sejam vencidos, a futura execução o alcançará já centenário.

O “azul resplendor” (do direito) — a magistral peça de teatro
Calma. Os leitores já verão onde quero chegar. Como dizem os jovens, já linkarei tudo isso. Assisti a peça O Azul Resplendor, com Eva Wilma e Pedro Paulo Rangel. Trata-se de uma das melhores metalinguagens já feitas sobre o teatro, a TV e à “produção de sentidos” nestes tempos de fragmentação pós-moderna. O teatro ri de si mesmo (como o Direito deveria rir de si mesmo!). E os personagens fazem uma leitura do modo como se dão as escalas de “sucesso”. As escadas para a glória. O que é talento? O que é sucesso? Na peça, um ator fracassado ganha uma herança e quer investir na volta de uma atriz famosa aposentada. Ele fora apaixonado, platonicamente, durante mais de 40 anos pela agora velha atriz. Quer vê-la de novo. Ele se vê nela. E contrata um diretor. O mais famoso. O que sabe tudo. E que reescreve toda a peça, fazendo algo sem sentido, niilista, pós-moderno. Já não existe a peça que foi escrita. E sequer o papel da velha atriz. O que há, agora, é o sentido novo atribuído pelo diretor, espécie de Humpty Dumpty do teatro.

O tal diretor estudou com bolsa da Viúva na Europa. Desdenha dos patuleus. Por isso, faz “laboratório” com as peças. E a mídia, idiota e interesseira, louva-o. E ele mostra o traseiro para a plateia (ou ameaça fazê-lo). Ele pode tudo. Para a peça, o diretor não contrata atores stricto sensu, mas, sim, artistas famosos da novela das nove. Sim, pouco importa o talento. O que vale é ser famoso, ter músculos ou mostrar as calcinhas ou, ainda, dormir com o diretor. E os repórteres, na coletiva da peça, não perguntam sobre a peça. Nem sabem do que se trata. Querem saber da próxima novela, do próximo papel dos artistas. “- Qual é o seu próximo projeto?”

Eis um retrato da sociedade (do espetáculo). Eis um retrato da cultura. A velha atriz denuncia, mas acaba participando da peça. E o próprio autor da peça, que já não é a que escreveu, comparece para receber a louvação da plateia. Ninguém entendeu nada da peça. Ninguém entendeu “um ovo sequer”. Mas gostaram e aplaudiram de pé. O texto apresentado é incompreensível, totalmente sem sentido. E daí? O que vale é a estética.

No Direito faltam autocríticas. Faltam metalinguagens
Fico pensando nas cenas que abriram esta coluna. É proibido fazer perguntas complexas em concursos públicos. Vale, mesmo, é decorar textos simplificados e facilitados. Quem tentar complexizar, é vaiado. Por que fazer concursos que buscam profissionais que possam compreender a sociedade? Melhor é investir no produto final de quiz shows. Melhor é apostar em perguntas que tratem da “ladra Jane”, que furta um automóvel em Cuiabá e leva-o ao Paraguai para vender para um terceiro de boa-fé. Isso! Para que aprofundar? Como consta em livro sobre direito facilitado, no artigo 13 da CF a palavra armas, ao tratar dos símbolos nacionais, não se refere à armas de fogo. Ainda bem, não? Genial. Alvíssaras. Vamos em frente. Vou estocar verbetes do Google!

Por aqui em terrae brasilis, há espaço para tudo. O Rei Roberto Carlos faz/fez cruzada nacional. Para ele, por certo, fatos não existem; existem apenas interpretações, as que ele autoriza, é claro. Qualquer problema, ele chama o especialista em crises. Bingo!

E assim poderia trazer um leque de situações que dariam uma boa peça no estilo “Azul Resplendor”. Algo como Direito Resplendoroso. Ou Resplendor Jurídico. Um ato da peça seria o ensino jurídico. Apareceria a figura do professor fanfarrão. Que ensina só com pauerpoint. Ou que faz piadinha com tudo. Trocadilhos infames. Desdenha da teoria do direito. Ele “ensina” direito. Para ele, aqueles que tratam da Teoria do Direito fazem “perfumaria”. E ele? Bem, ele lê orelhas de livros. Repete o que ele acha a coisa mais sofisticada do mundo: a de que “o juiz boca da lei morreu; o que vale, agora, é o juiz dos valores, o que não se apega a letra ‘fria’ da lei”… Permito-me uma blague: isso deve ser culpa do linguistic turn.

Outro ato mostraria que, nas horas vagas, esse professor — ou qualquer outro — escreve um livro. Sim, porque hoje todos publicam. Há editoras “especializadas”, que por dez “real” a página, editam a “sua opus magna”. E tem grande clientela esse tipo de “gráfica-editora”, que sequer tem conselho editorial: até gente da pós-graduação por lá publica. Ah: na peça, também poderia se retratar um novo produto: Pós-doc fast food. Sim, já existe. Maravilha. Coisa fina.

Outro ato da peça poderia tratar da produção de trabalhos na pós-graduação (mestrado e doutorado). Dissertações sobre “A Natureza do Cheque”, “o Princípio da Afetividade: uma interpretação sistemática”, “Direito das Obrigações e Sustentabilidade” ou algo do tipo (os títulos são fictícios e qualquer relação com a realidade será mera coincidência). É de pensar: qual seria a matriz teórica? Qual a metodologia empregada? Ou um trabalho sobre Platão e, ao lado, outro, no mesmo programa, sobre a “Cobrança de Energia Elétrica” (ou algo assim). Qual a relação de organicidade de um tema e outro? Mas, como na peça Azul Resplendor, os orientadores provavelmente são especializados na matéria (qual? Por vezes, o orientador é o mesmo). E, na maioria dos casos, estudou com bolsa da Viúva. E, na peça, poder-se-ia fazer uma análise da diferença entre algumas monografias de graduação e dissertações… Qual seria a grande diferença? Entra o diretor (orientador?) e declara: “eu é que defino isso”. E a plateia, formada por alunos e pós-alunos, delira. Aplaude de pé. Viva o neonominalismo! Dissertações que não passam de dissertações, mas que se nominam de teses.

No ato final, na apoteose da “peça”, poderiam ser mostrados os diversos modos como se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa. Viva a algaravia! E apareceria uma multidão de pessoas cada uma dando um sentido para as coisas. Tratar-se-ia de um novo sintoma: a esquizofrenocracia. O domínio da esquizofrenia no palco (e na vida). Os personagens vão trocando o nome das coisas. Cada um dá o sentido que quer. Um chama a modulação de efeitos de recurso; outro carrega um cartaz exaltando a nova Súmula sobre qualquer coisa; outro diz que a palavra “complementares” de um certo artigo do CPP não quer dizer “complementares”; outros portam cartazes anunciando a venda de palavras e significados; em um canto do palco, uma banquinha vendendo enunciados de Direito Civil e Direito Penal (usam máscaras de neopandectistas); em outro canto do palco, simulando uma sala de aula, um professor escreve na lousa que palavras e coisas não tem qualquer relação. Outro professor, fantasiado de Nietzsche, mostra em pauerpoint a frase “Fatos não há; só há interpretações”. Tudo pode. Deus morreu e tudo pode. E, bem no final, alguém vendendo ocitocina. E apresentando a nova ciência: o “neurodireito”. Claro. Já existe existe a neuroeconomia… Em vez de estudar, cada aluno receberá uma injeção de ocitocina. Não precisaremos mais estudar a relação direito-moral. Nem filosofia. Resolve(re)mos isso tudo através de moléculas morais. Qualquer problema, chamem o especialista em crises. Ou o expert em gestão de crises.

Vem aí a coleção “Direito Periguetado”
De fato, a cada minuto nasce um trouxa, para, exatamente, comprar ideias e teses. Aliás, o mundo está cheio de vendedores de ilusões e de fórmulas mágicas. A TV, os jornais e as redes sociais estão repletas de vendedores. Emagreça sem esforço. Tome uma pílulas de casca de camarão. Leve para a sua empresa o professor fulano de tal, “motivador”. Compre pedras luminosas e ponha ao lado de seu travesseiro. Ponha uma fita sobre seu nariz e você vai parar de roncar. Passe o xampu tal e você terá mais cabelos. Use uma palmilha cheia de pedrinhas e você será mais calmo e feliz (claro: seus pés doem e você esquece as preocupações!). Se você ler Nietzsche em drops, será mais feliz. Pascal em pílulas. Platão em 140 caracteres. Mude sua vida lendo Aristóteles twitado. Compre Direito Penal twitado. Uau! Ou livros como Jesus, o maior empresário que já existiu (nunca soube que o Nazareno tenha vendido algo). E o best seller O Monge e o Executivo (seria um casal? Ou uma dupla sertaneja, do tipo Milionário e José Rico?). Gosto do livro Seja um Vendedor Ninja (fico imaginando como é um vendedor ninja – iah, uch, tchin, tchú). Ainda no Direito, compre o resumo do resumo e vosmicê alcançará o sucesso… Compre a coleção Direito Periguetado, que o sucesso é garantido ou seu dinheiro de volta”! E a malta cerca o vendedor, todos querendo o seu exemplar… Fim do ato.

E fecham-se as cortinas. Termina o espetáculo.

Ups… Mas ainda, lá do fundo do teatro, aparece alguém correndo para lhe dizer “perdeu… perdeu”! Parece que Maluf não precisará pagar. Se me entendem o que quero dizer…! Ah: o patrocínio da peça (não a Azul Resplendor, mas esta, que estou montando agora, aqui), é do grupo… do Eike. Claro: com dinheiro da Lei Rouanet. Da Viúva! Bingo! E tudo auditado pelos fiscais da Prefeitura de São Paulo. Não tem como dar errado!

PS: Mas mais para o fundo ainda, aparece correndo o grande Conselheiro Acácio, segurando um cartaz com a clássica frase: “As consequências sempre vem depois”!

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