Direito Comparado

Novo Código Civil tcheco entrará em vigor em janeiro de 2014

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

6 de novembro de 2013, 20h20

A República Tcheca é uma unidade política que compreende as antigas regiões da Boêmia e da Morávia, integrantes do velho Império Austro-Húngaro. Os tchecos foram uma das minorias mais importantes do domínio dos Habsburgos, que, na segunda metade do século XIX, cedeu grandes poderes políticos à Hungria, em detrimento dos outros povos do Império, o que gerou grandes ressentimentos internos. Após a Primeira Guerra Mundial, a Hungria perdeu imensas áreas territoriais em favor de um novo país, a Tchecoslováquia, que se tornou independente e ocupou um importante papel na Europa nos anos 1920-1930. Após a anexação alemã dos Sudetos, em 1938, e a vergonhosa capitulação do Reino Unido e da França, na Conferência de Munique, a Checoslováquia foi paulatinamente desaparecendo até seu ressurgimento após o fim da Segunda Guerra Mundial.

O renascimento tchecoslovaco deu-se sob a influência da antiga União Soviética, cujas tropas libertaram o país do domínio alemão, ao tempo em que criaram as condições para que se instaurasse um regime comunista, que se estendeu até 1989, ocasião da histórica “Revolução de Veludo”, liderada pelo poeta Vaclav Havel (1936-2011).

Dissidente político, poeta, preso político, Havel liderou uma das mais belas revoluções do final do século XX. Sem derramar uma gota de sangue, com o apoio de intelectuais, artistas, estudantes e políticos dissidentes, ele conseguiu derrubar o regime filossoviético e instaurar uma república democrática, que até hoje persiste sem maiores turbulências, o que põe a República Tcheca em um patamar diferenciado em relação a outros países da antiga Cortina de Ferro.

Um dos exemplos dessa maturidade política do regime inaugurado em 1989 foi a separação pacífica dos tchecos e dos eslovacos em 1993, com a criação de duas repúblicas independentes. A ligação entre tchecos e eslovacos era, de fato, plena de artificialidade. Os eslovacos, até por laços históricos, teriam mais conexões com a Hungria do que com a República Tcheca.

Assim como diversos outros países submetidos à influência do governo de Moscou, os tchecos sofreram com a alteração de seus modelos jurídicos, reorientando-os para a então chamada “família soviética”, uma classificação muito contestada, mas que hoje remanesce apenas como uma referência histórica.

No âmbito do Direito Civil, a República Tcheca tem um código de 1964, que sofreu grandes alterações após a queda do regime comunista e em função do ingresso do país na União Europeia. A partir de 1º de janeiro de 2014, no entanto, entrará em vigor o novo código civil tcheco, com grandes inovações no sistema de Direito Privado daquele país da Europa do Leste.

Considerando-se a dificuldade do acesso direto ao idioma, que só nos permite a consulta da versão em inglês do Código Civil tcheco de 2014, ainda assim é útil apresentar ao leitor brasileiro alguma notícia sobre esse relevantíssimo câmbio normativo no Direito Civil tcheco. É interessante observar que entrarão em vigor, além do novo código civil, novos códigos de comércio e de sociedades, além de uma inovadora lei de introdução ao código civil, com normas de Direito Internacional Privado.

Sem maiores pretensões de verticalizar a análise do novo Código Civil tcheco, põem-se em destaque suas principais inovações:

(1) O código divide-se em uma Parte Geral e uma Parte Especial, o que é relevante quando se observa ainda haver grande dissenso entre os privatistas sobre a conveniência de se conservarem as partes gerais nas codificações civis. A Parte Geral compõe-se de seções com essas rubricas: (1) objeto do Código e seus princípios fundamentais; (2) Pessoas Naturais, com um amplo catálogo de previsões de direitos da personalidade e questões ligadas à privacidade e ao direito ao corpo, e Pessoas Jurídicas; (3) Representação; (4) Relações de Consumo; (5) Prescrição e Decadência. A Parte Especial divide-se em: (1) Família; (2) Direito de Propriedade; (3) Sucessões; (4) Contratos.

(2) O Direito Privado tem por objetivo proteger a dignidade e da liberdade do homem. Seus princípios fundamentais, de entre outros, são: (a) o direito de todos à proteção da vida, da saúde, da liberdade, da honra, da dignidade e da privacidade; (b) a família, a paternidade e o casamento gozam de proteção legal especial; (c) o direito de propriedade é assegurado por lei e somente esta pode definir quando a propriedade nasce ou é extinta.

(3) Não há referência à função social da propriedade, do contrato ou da empresa no Código Civil tcheco.

(4) A aplicação das normas de Direito Privado independe do Direito Público. Se não houver vedação expressa em lei, as pessoas podem celebrar negócios e contrair obrigações, nos limites das cláusulas gerais dos bons costumes e da ordem pública, das normas sobre o estado das pessoas e o direito à privacidade (§1).

(5) Os animais não são mais considerados coisas, à semelhança do Código Civil alemão, após a reforma da década de 1990.

(6) A mudança de sexo é regulada, mas considera-se casamento “uma união permanente de um homem e uma mulher, estabelecida de maneira protegida por lei. O principal propósito do casamento é a constituição de família, boa formação das crianças, apoio e assistência mútuos” (§655).

(7) O consumidor é considerado como uma pessoa que, fora de suas atividades profissionais ou de seus negócios, relaciona-se com um empresário, o qual vem a ser uma pessoa que atua profissionalmente, por sua conta e risco, em uma atividade com propósito de lucro (§§ 419 e 420).

(8) Eliminou-se a exigência de conselhos fiscais para as sociedades.

(9 Restabeleceu-se a vinculação da propriedade do prédio construído em face da edificação, com o retorno do princípio romano clássico superficies solo cedit.

(10) Diversos contratos extravagantes, como o de seguro, foram incluídos no Código Civil.

(11) O testamento foi simplificado, com eliminação de diversas formalidades, inclusive a presença do notário no ato de testar.

Em linhas gerais, o novo Código Civil tcheco mostra-se adequado a uma tradição civilista alemã e francesa, suas das mais antigas e importantes influências. A estrutrura do código é bastante fiel ao modelo alemão, com as naturais adaptações à realidade local. É nítida também a ruptura com o modelo socialista implantado em 1964, com várias disposições em favor da autonomia privada, da liberdade individual e da proteção à segurança negocial. Em termos de Direito de Família, o código mostrou-se em descompasso com as novas legislações civis europeias, o que deve ser observado sob a óptica das peculiaridades de caráter moral e social da região.[1]


[1] A íntegra do novo Código Civil tcheco está disponível em: http://www.czechlegislation.com/en/89-2012-sb. Acesso em 5-11-2013. O texto está em inglês.

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    é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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