Consultor Tributário

Limitações constitucionais dos depósitos de tributos

Autor

  • Heleno Taveira Torres

    é professor titular de Direito Financeiro e chefe do Departamento de Direito Econômico Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e advogado.

6 de novembro de 2013, 13h20

Spacca
O depósito do montante do tributo devido, para os fins de suspensão da exigibilidade do crédito, atende às seguintes funções: i) suspensão da exigibilidade do crédito tributário para afastar o solve et repete; ii) excludência da mora futura; iii) na ausência de lançamento prévio, função constitutiva do crédito tributário, na forma de lançamento por homologação, para os fins de cobrança de eventual diferença; iv) garantia do crédito tributário; e v) autovinculação administrativa contra qualquer atividade contrária aos efeitos do depósito.

Nosso sistema jurídico contém rígidas limitações constitucionais e prescreve garantias irredutíveis aos contribuintes, com a finalidade de preservar a segurança jurídica nas relações tributárias. Cumpre sempre lembrar que a segurança jurídica é princípio expresso em nossa Constituição, no seu preâmbulo, no artigo 5º, caput, e em várias disposições autônomas. Trata-se de uma garantia lato sensu que permite a concretização dos direitos e liberdades fundamentais. Dentre estes, a preservação da confiança e da boa-fé. É que a legalidade, para realizar a função certeza, reclama a confiança legítima na atuação dos órgãos estatais, como corolário da segurança jurídica.

Uma das conquistas da segurança jurídica no Direito Positivo brasileiro foi a superação do emprego do princípio solve et repete em matéria de cobrança de tributos, o que se traduzia como uma expressão de privilégio da administração pública de executividade dos atos tributários. No seu lugar, o Código Tributário Nacional (CTN), no artigo 151, introduziu mecanismos compatíveis com a preservação da capacidade arrecadatória, mas com garantia de uma fiscalidade comprometida com os direitos fundamentais dos contribuintes. Dentre estes, o depósito do montante integral do tributo devido assume posição de destaque.

Uma relação jurídica obrigacional une dois interesses qualificados pela natureza de créditos e débitos correlatos, a partir da ocorrência de determinado fato jurídico. Por isso mesmo, a relação jurídica tributária é uma unidade de direitos e deveres, sujeita ao regime jurídico tributário, definido sob a égide dos princípios constitucionais, cujo objeto consiste na entrega da prestação tributo. Em vista disso, o contribuinte tem o dever de entregar a prestação tributo, mas, ao mesmo tempo, encontra-se protegido por uma série de disposições jurídicas e, ademais, é titular de múltiplos direitos em relação ao sujeito ativo (direito de impugnar a cobrança do crédito, direito de depositar, etc.).

Se empregado em matéria tributária, o solve et repete[1] satisfaria apenas um interesse da relação tributária, em detrimento das garantias asseguradas ao devedor. Mormente quando este tem seu débito sendo objeto de litígio judicial ainda não transitado em julgado, logo, coerente com o direito do artigo 5º, inciso LIV, da Constituição, segundo o qual “ninguém será privado de seus bens sem o devido processo legal”. Por conseguinte, o cumprimento do depósito com observância dos ditames constitucionais visa a assegurar que a tributação preserve o direito de propriedade, até que se ultime o eventual litígio pendente.

Conforme o artigo 151 do CTN, o depósito do montante integral do tributo devido suspenderá a exigibilidade do crédito tributário e impedirá qualquer ato de cobrança do crédito tributário, incidência da mora, bem assim a inscrição do débito na dívida ativa e execução fiscal (função suspensiva). O quanto se considera “montante integral” dependerá da existência de ato prévio de “acertamento” do valor do tributo devido, quando efetuado pelo Fisco. No caso de depósito de valores relativos a lançamento por homologação ou de antecipação pelo contribuinte, sem prévio exame de autoridade tributária, “montante integral” será sempre o valor que o contribuinte declara. Neste caso, sequer se pode falar de “depósito parcial”.

O montante do depósito, adicionalmente, traz consigo a função excludente da mora, ao tempo que o dinheiro queda-se à disposição da Justiça ou da própria Fazenda Pública. E, ao tempo que o montante do tributo devido fica à disposição do Fisco, tem-se a função de autovinculação da Administração para afastar a pretensão de qualquer autoridade para exigir o tributo, multa ou juro de mora, admitida unicamente a cobrança sobre eventual diferença a menor, com eficácia de prevenção da decadência.

Com efeito, quanto à exclusão da mora, a depender do momento temporal da sua ocorrência. Quando promovido antes do vencimento, o depósito afasta os efeitos da mora. Quando realizado após o vencimento do tributo, este deve ser acrescido da multa e dos juros de mora, para purga-la e então suspender a exigibilidade do respectivo crédito tributário.

Para assegurar a exclusão da mora, ao lado da função de garantia, o artigo 9º, parágrafo 4º da Lei 6.830/1980, prescreve que “o depósito em dinheiro faz cessar a responsabilidade pela atualização monetária e juros de mora”. E este vale tanto para o crédito já constituído ou com inscrição do débito na dívida ativa, quanto para o crédito pendente de constituição, e que se aperfeiçoa a partir do depósito, como lançamento por homologação.

O depósito judicial tem, por óbvio, a função de garantia do crédito tributário, porquanto o efeito da suspensão da exigibilidade do crédito tributário é dependente da entrega do montante integral do tributo devido.

De fato, quanto às consequências patrimoniais, qualquer depósito suspensivo da exigibilidade do crédito tributário tem um duplo efeito: serve como garantia da Fazenda Pública à disponibilidade e ao uso dos recursos, ao tempo que resguarda o contribuinte quanto à atualização monetária e juros de mora, na hipótese de conversão do depósito em renda em favor da União.

Feito o depósito, os valores deverão manter seu poder aquisitivo e remunerar o uso do capital no período correspondente. Nas palavras de Sacha Calmon:[2] “como os depósitos são administrados pelo Poder Público, a ele incumbe prover a sua atualização monetária.” Por isso, nada mais natural do que cessar a responsabilidade pela atualização monetária e juros de mora, por se tratar de depósito do valor integral e em dinheiro, ao tempo que se apresenta o referido direito de uso do valor depositado pela Fazenda Pública.

A 1ª Seção do STJ já firmou seu entendimento a respeito do depósito judicial, como faculdade do contribuinte e, ao mesmo tempo, como garantia do Fisco, cuja destinação dependerá da decisão que põe fim ao litígio: “1. O depósito do montante integral, na forma do art. 151, II, do CTN, constituiu modo, posto à disposição do contribuinte, para suspender a exigibilidade do crédito tributário. Porém, uma vez realizado, o depósito opera imediatamente o efeito a que se destina, inibindo, assim, qualquer ato do Fisco tendente a haver o pagamento.”[3] E isso porque todo depósito implica a perda da disponibilidade de recursos pelo contribuinte e o direito de uso imediato pela Fazenda Pública. Por isso, a partir da data do depósito, o montante integral do tributo devido passa à conta do Tesouro Nacional, nos termos da Lei 9.703/1998.

O depósito judicial, portanto, surte o efeito de suspender a exigibilidade do crédito tributário no montante correspondente ao valor depositado, com exclusão da mora e constituição do crédito tributário, quando precedente a algum ato de ofício administrativo. Na falta de contestação administrativa ou do juiz competente, o depósito assume a função de autovinculação para afastar qualquer cobrança sobre os valores depositados, inclusive a título de mora, como reconhece a legislação e a jurisprudência.

Na função de garantia administrativa, a instituição financeira depositária vê-se obrigada a remunerar o depósito judicial, na forma da lei, pelo acréscimo dos juros da taxa Selic, índice idêntico àquele utilizado para atualização do crédito tributário. Desde quando o repasse do depósito judicial à conta única do Tesouro Nacional foi declarado constitucional pelo STF, no julgamento da ADI 1.933/DF, esta tem sido uma das consequências dos referidos depósitos. Os depósitos judiciais passam à disponibilidade do erário, mesmo antes de proferida decisão definitiva. E, assim, na hipótese de trânsito em julgado de decisão definitiva favorável a Fazenda Pública, como o pagamento, os depósitos judiciais que antes estavam à disposição do juízo competente, integram-se à conta única do Tesouro Nacional, ao serem definitivamente convertidos em renda.

Feito o depósito, os valores deverão tanto manter seu poder aquisitivo quanto remunerar o uso do capital no período correspondente. Compete à instituição financeira remunerar os depósitos judiciais calculados pelo mesmo índice utilizado para atualização do crédito tributário, nos termos do artigo 2-A, parágrafo 3º da Lei 9.703/1998. Consequentemente, cessa a responsabilidade do contribuinte pela atualização monetária e juros de mora, por se tratar de depósito do valor integral e em dinheiro (vide Súmula 112, do STJ), ao tempo que se apresenta o referido direito de uso do valor depositado pela Fazenda Pública enquanto perdura o litígio.

A Lei 12.099/2009 prevê que mesmo após o repasse dos depósitos à conta única do Tesouro Nacional, estes deverão ser acrescidos dos juros (remuneratórios e moratórios) da taxa Selic (artigo 2º-A, parágrafo 2º, da Lei 9.703/1998: “após a transferência à conta única do Tesouro Nacional, os juros dos depósitos referidos no caput serão calculados na forma estabelecida pelo parágrafo 4º do artigo 39 da Lei 9.250, de 26 de dezembro de 1995”). De outra banda, no caso de levantamento, a estabilidade das relações impõe a atualização necessária dos valores depositados, como forma de preservar o poder aquisitivo da moeda, além do cômputo dos necessários juros remuneratórios, para compensar o contribuinte pelo tempo durante o qual se manteve desprovido dos recursos depositados. São razões de moralidade administrativa, naquilo que corresponde à boa-fé e proteção da confiança legítima, que determinam a efetividade desses direitos.

Nesse particular, a suspensão da exigibilidade do crédito tributário gera uma expectativa de confiança legítima do contribuinte quanto à existência dos efeitos acima sobre o depósito do montante integral do tributo devido, afastada qualquer exigência adicional por parte da Fazenda Pública. Tem-se, assim, a função de autovinculação administrativa do depósito, para impedir qualquer ato de exigibilidade dos tributos suspensos ou seus consectários, como multa de mora ou de juros de mora, pela vinculação aos efeitos decorrentes da suspensão.

Pois bem, na espécie, decorrem dos depósitos pelo menos duas consequências de autolimitação administrativa: a) autovinculação imediata, que impede qualquer lançamento tributário sobre as parcelas depositadas e aceitas judicialmente como suficientes para gerar o efeito de suspensão da exigibilidade do crédito, sem qualquer exigência de complementação do depósito ou alguma alegação de insuficiência do valor depositado; e b) autovinculação mediata, que se aplica às autoridades, judiciais ou administrativas, que funcionam no processo administrativo de cobrança do crédito tributário, que devem aceitar aquela eficácia suspensiva, em virtude da condição de lançamento tributário sujeito à homologação, da qual pode decorrer a complementação do depósito ou o lançamento da diferença não depositada.

A conformidade ou a desconformidade de uma conduta em face da legislação tributária, inclusive do Fisco, no agir vinculado da tributação, deve ser examinada à luz do princípio hermenêutico da boa-fé do contribuinte. Se o ato administrativo vinculado tem a “função de concretizar e de estabilizar as relações jurídicas entre o Estado e o cidadão particular”, como bem resume Hartmut Maurer, essa qualidade estabilizadora da relação jurídica entre administração e contribuinte propicia as bases de confiança na sua permanência quando adotado dentro de condições de legitimidade e certeza jurídica.

O direito à proteção de expectativas de confiança legítima implica o princípio de autovinculação da administração pública para assegurar ao administrado o controle devido sobre atos de distintas autoridades sobre uma mesma situação já tutelada pela administração. Se os jurisdicionados têm o direito de confiar nos atos administrativos, os órgãos vinculam-se a esta imposição jurídica para erradicar a contradição entre decisões e assegurar a confiabilidade na atuação administrativa, permanentemente.

Por fim, vale assinalar que todo depósito tem uma função constitutiva do crédito tributário, quando preventivo de qualquer medida do Fisco e assume a condição de lançamento por homologação, para os fins de controle da administração, na forma do artigo 150, parágrafo 4º, do CTN. Por isso, não pode prosperar qualquer pretensão fiscal de cobrança de multa de mora e juros de mora em lançamento tributário sobre quantia depositada que gera o efeito suspensivo da exigibilidade do crédito, e, nesta condição, mantém-se reconhecido ad judicia. Seria verdadeira afronta ao princípio constitucional de separação dos poderes qualquer investida da autoridade administrativa contra o depósito sem ordem judicial que reconheça o afastamento do efeito de suspensão da exigibilidade do crédito.

Todo depósito do montante integral do tributo devido efetuado pelo contribuinte, antes de qualquer lançamento de ofício ou de acertamento de liquidez do débito pela administração terá sempre o papel de “lançamento por homologação”, na constituição do crédito tributário, para os fins da cobrança do crédito.

O depósito prévio a qualquer atuação administrativa assume as feições de ato de acertamento pelo contribuinte[4], que aplica o direito e cria uma norma individual e concreta, logo, constitutiva do crédito tributário, como identificação do montante que julga ser o valor integral da “prestação pecuniária” devida.

Esse direito de crédito surge com a ocorrência do fato jurídico tributário, o qual, por ser dependente de formalização para obter os efeitos de exigibilidade, fica sujeito ao ato de aplicação do direito definido como ato administrativo de “lançamento tributário”.

Como ato de aplicação do direito, o lançamento tributário, ato administrativo que é, tem como “motivo” a incidência das normas gerais e abstratas que veiculam critérios definidores de ocorrência do fato (subsunção) e do efeito de implicação para os fins de constituição de uma relação jurídica típica, de conteúdo patrimonial, definida como “obrigação tributária”, quando da ocorrência do fato previsto na hipótese.

Em vista disso, até que advenha ato de controle das autoridades fiscais ou lançamento de ofício, prevalecerá o valor declarado pelo contribuinte e admitido pela autoridade judicial como suficiente para suspender a exigibilidade do crédito tributário. Assim, o saldo que porventura as autoridades fazendárias consideram não depositado é que deve ser objeto de lançamento de ofício, com acréscimo de multa e juros de mora.

Dito de outro modo, caberá ao Fisco, mediante ato de controle, apurar a correção do montante do depósito, a saber: i) requerer em juízo a complementação do depósito, como forma de assegurar os efeitos de suspensão da exigibilidade do crédito; e ii) promover o lançamento de ofício da diferença não depositada, preservada a suspensão da exigibilidade do crédito tributário depositado (com efeito equivalente de lançamento por homologação).

Por todos esses argumentos, o depósito do montante integral do tributo devido assume prevalência sobre o solve et repete em matéria de cobrança de tributos e o atendimento dos seus requisitos deverá ser examinado segundo a finalidade, o tipo de processo e as ações adotadas pelas partes e pelo juiz no curso processual. Ora, quando o juiz ou a Procuradoria, em nenhuma etapa do processo, arguem qualquer complementação do depósito, prevalecerá sempre o efeito de suspensão da exigibilidade do crédito tributário. Eventual diferença a menor, porém, poderá ser sempre exigida antes do decurso do prazo de decadência.


[1] BILLARDI, Cristián J. Solve et repete: crítica a su vigência jurídica. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2006, pp. 127-128.
[2] COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 9. ed. rev. e atualizada de acordo com o Código Civil de 2002. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 785.
[3] EDiv no REsp 227.835/SP, Rel. Min. Teori Zavascki, j. 09.11.2005.
[4] “Outra possibilidade de constituição do crédito tributário pelo cidadão-constituinte é o depósito judicial, quando se pretende discutir o crédito ou parte dele, nos moldes do art. 151, II, do Código tributário Nacional.” Cf. CAVALCANTE, Denise Lucena. Crédito tributário: a função do cidadão-contribuinte na relação tributária. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 108. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. 3. ed. São Paulo: Noeses, 2009, pp. 507-508. Passim, MACHADO, Hugo de Brito. Depósito judicial e lançamento por homologação. Revista Dialética de Direito Tributário. v. 49. São Paulo: Dialética, 1999, p. 53-54.

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