Contratações públicas

TCs podem atualizar controle de mecanismos de mercado

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4 de novembro de 2013, 12h45

“MADAME NATASHA[1]

Madame Natasha aposentou-se depois de trabalhar 35 anos numa empreiteira. Ela torce para que a investigação do propinoduto dos transportes paulista provoque o banimento da palavra “consórcio” na designação de empreitadas de obras públicas.

Ela sabe que nove em dez “consórcios” são montados para diluir a competição entre as empresas. Ela não tem esperança de que essa prática mude, apenas defende o idioma.”

A nota do jornalista Elio Gaspari nos leva à reflexão sobre as notícias que têm dominado os jornais sobre o comportamento dos mercados e dos agentes econômicos em interação com o Poder Público. Assim como nos propõe o desafio de municiar a Administração Pública de meios capazes de fazer frente aos seus efeitos perversos.

Eis, logo de saída, o duplo norte que buscamos abordar: (1) a lógica que alimenta o comportamento dos mercados para (2) identificar como melhor intervir de modo a tolher condutas danosas ao erário e a fomentar as práticas desejáveis nas contratações feitas pela Administração Pública.

Fato é que o Estado não só precisa negociar com os agentes econômicos como consumidor e, por vezes, como fornecedor de bens, serviços e obras, mas também deve operar como instância superior — e tanto quanto possível neutra — de coordenação e controle, em prol do equilíbrio sistêmico da economia.

Nesse sentido, extraímos do artigo 170 da Constituição de 1988 a convicção de que regular — direta ou indiretamente — o comportamento dos mercados é atividade incumbida ao Estado para que sejam atendidos princípios como a soberania nacional, a função social da propriedade, a livre concorrência, a defesa do consumidor e do meio ambiente, entre outros. Eis, portanto, o assento constitucional para o papel regulador das licitações inscrito no art. 3º da Lei Geral de Licitações, sobretudo após o advento da Lei 12.349/2010, e no regime mais benéfico previsto na LC 123/2006.

Sob tal ótica ampliada, as licitações podem e devem ser manejadas como instrumento de regulação indutiva das condutas juridicamente desejáveis do mercado (como o fomento às micro e pequenas empresas, ao desenvolvimento e à inovação tecnológica realizados no país, à geração de emprego e renda etc) e do terceiro setor.

Mas não basta falar em “papel regulador” das licitações, sem que também o estendamos ao controle externo, na medida em que são os órgãos reguladores e fiscalizadores, como os Tribunais de Contas, que materializam, na prática, o alcance de quais seriam as condutas admitidas e as vedadas nas contratações públicas.

É preciso compreender as mecânicas conjunturais da nova economia, pois os agentes econômicos tendem, por natureza, a ser reciprocamente cooperativos e a fazer acordos para mitigar a competição entre eles, desafiando a economicidade do ajuste em desfavor dos consumidores e da sociedade. Diante de tal tendência e diferentemente do resultado esperado pelo legislador, mapas de preços de pesquisa de mercado com outras empresas do próprio mercado local não se prestam a comprovar a independência objetiva e a materialidade fática da cotação feita.

Com o advento da internet, a Administração Pública e os seus respectivos órgãos fiscalizatórios podem e devem desenvolver novas formas ampliadas de coleta de preços e análise de custos como variáveis exógenas ao processo de licitação e contratação pública em análise. Exemplificamos nossa proposta, logo de saída, com a experiência de formação de preços das empresas aéreas, os quais são disponibilizados em função de variáveis com alta/baixa temporada, reserva antecipada, rota, equipamento etc.

É possível que esses mesmos padrões sejam desenvolvidos para revelar, em macrorregiões, os custos e os preços, por exemplo, de mochila de uniforme escolar, notebook, concreto usinado, metro quadrado de construção de moradia popular, homem/hora de serviço de limpeza, segurança e serviços gerais, dentre outros.

Assim como a Lei 8666/1993 foi alterada tendo em mira o alcance de tal função regulatória das licitações e contratações públicas, também os órgãos de controle precisam reorientar o foco da sua atuação priorizando o controle de custos e o controle concomitante, ao invés da tradicional abordagem formal e posterior. Diante da imensa complexidade na nova economia, exames prévios, auditorias operacionais, acompanhamento de gestão se mostram mais eficientes do que exames posteriores à sua execução. Esses são os caminhos que nos são abertos como desafios prementes, como veremos a seguir.

Realidade oligopolista
A realidade dos mercados, se deixada por si só, é tendente a refutar a mais ampla e isonômica competição e a ensejar ajustes que frustram os fins almejados pela Lei Geral de Licitações e pela própria Administração contratante.

Há dois extremos nos mercados: o monopólio, no qual apenas uma empresa vende um bem e não existem produtos similares substitutos e, no outro, a concorrência perfeita, na qual muitas firmas vendem bens e serviços que são perfeitamente substitutos entre si.

Ocorre, contudo, que tanto a concorrência perfeita, quanto o monopólio puro são modelos teóricos. A realidade econômica indica existir algum tipo de competição e outro tanto de domínio de moldes monopolistas. A evidência dos fatos nos ensina, em suma, que o que prevalece no mundo ocidental é o mercado oligopolista.

Nos oligopólios há poucas firmas, de modo que cada uma se preocupa com a reação das rivais a qualquer política que adote. Se um oligopolista reduz seu preço, teme que seus rivais façam o mesmo e assim não obterá vantagem competitiva alguma e ainda terá suas margens de lucro deterioradas. Pior ainda, um competidor pode reagir a uma redução de preço lançando o setor num cenário indesejável a todos os partícipes, qual seja: a guerra de preços.

Por conseguinte, o oligopolista sempre pensa estrategicamente: “entrar em conluio ou competir?” Se não pode haver um conluio explícito (por força de legislações restritivas), como reduzir a eficácia da competição adotando, por exemplo, práticas restritivas? Como barrar a entrada de novos concorrentes? Como os rivais reagirão às suas ações?

Abstraindo-se de qualquer juízo de valoração ético-legal, as empresas oligopolistas encontram mais razões para cooperar (frustrando os interesses dos consumidores e da sociedade) do que para competir, como seria ideal.

Reunidas em câmaras setoriais, em sindicatos patronais ou mesmo em reuniões sociais, as empresas oligopolistas coordenam-se para agir em conluio, atuando como se fossem monopólios e dividem os lucros que daí resultam. A prevalência do conluio ou colusão entre grandes empresas é fenômeno que foi registrado, de há muito, pelo precursor da moderna economia Adam Smith[2]: “Pessoas do mesmo negócio raramente se encontram, mesmo para alegria e diversão, mas a conversa termina em conspiração contra o público ou alguma maquinação para aumentar preços”.

Nessa esteira é que Madame Natasha, citada por Elio Gaspari, tem razão quando aponta o consórcio assentido pela Lei 8666/1993 (art. 33) como mais um facilitador da cooperação entre empresas, em detrimento da concorrência.

Fato é que — quer a legislação tolere níveis de associação entre firmas como os consórcios, quer as abomine — surgem com grande evidência as formas abusivas de concertação praticadas nos mercados, a saber: o truste e o cartel.

De um lado, o truste envolve arranjos societários que visam aumentar o poder econômico do agente e traz, no mais das vezes, restrições à competitividade, na medida em que fusões, aquisições de controle acionário de concorrentes, incorporações, acordos operacionais, práticas de vendas casadas, dentre outras, levam à excessiva concentração de mercado.

Do outro, o cartel funciona como grupo de empresas que opera em conluio (ou seja, em acordo para prejudicar ou extrair vantagem ilícita), revestindo-se de estrutura de organização, formal ou informal, de produtores dentro de um setor, que determina o volume a ser produzido e a política de preços para as empresas que o compõe. Agindo como monopólio, o cartel une as empresas que maximizam seus lucros através da fixação de cotas de produção e preços.

A busca do lucro extraordinário pelo cartel quando interage com a Administração Pública, via cooperação ou conluio (ajuste esse que é vedado legalmente), materializa-se, no mais das vezes, pelo superfaturamento, perceptível em diversas facetas[3]:

a) Medição de quantidades superiores às efetivamente executadas ou fornecidas;

b) Má qualidade na execução de obras e serviços de engenharia que resulte em redução na qualidade, vida útil ou segurança;

c) Pagamento de obras, bens e serviços por preços manifestamente superiores à média praticada pelo mercado ou incompatíveis com os fixados pelos órgãos oficiais competentes, bem como pela prática de preços unitários acima dessa tendência central de mercado;

d) Não manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contratado em desfavor da Administração, por meio da alteração de quantidades (jogo de planilha) e/ou preços (alterações de cláusulas financeiras) durante a execução da obra;

e) Alteração de cláusulas financeiras, gerando recebimentos contratuais antecipados, distorção do cronograma físico-financeiro, prorrogação injustificada do prazo contratual ou reajustamento irregulares.

Ora, diante de tais hipóteses absolutamente corriqueiras na vida real e na dinâmica dos mercados, não pode a Administração Pública restar inerte, nem tampouco chamar para si apenas o papel de repressora e aplicadora de sanções aos responsáveis por ilícitos já consumados.

O desafio é de evitar o abuso do poder econômico por parte das empresas contratadas, na medida em que a livre concorrência — mais do que modelo teórico — é princípio constitucional (artigo 170, IV), que deve ser perseguido pelo Estado, na forma do artigo 173, parágrafo 4º da CR/88.

Mas reprimir práticas oligopolistas nocivas e fomentar a livre concorrência não é função exclusiva dos órgãos especializados na defesa da ordem econômica propugnada pela nossa Constituição. Tal mister também se espraia e impacta as licitações e as contratações públicas, as quais — recorrente e infelizmente — sofrem com estratégias predatórias que lesam o erário e mitigam a eficácia e a efetividade das políticas públicas.

Nesse cenário, cabe aos órgãos reguladores e fiscalizadores compreender as mecânicas conjunturais da nova economia. Com 20 anos de vigência, a Lei Federal 8666/1993 precisa ser confrontada com a sua atualidade, sem que isso signifique qualquer demérito para seu legado moralizante e padronizador (donde se extraí o seu máximo cuidado com a impessoalidade, a legalidade estrita e a publicidade).

Enfim, os desafios estão postos nos processos de prestação de contas que chegam cotidianamente para apreciação dos órgãos de controle, mas, para enfrentá-los, precisamos de novas abordagens e instrumentos de resolução dos problemas que eles encerram.

Desafios para os Tribunais de Contas
Não se trata de buscar nova legislação, mas nova leitura para sua aplicação. No Estado de São Paulo, por exemplo, a Lei Leiva (Lei estadual nº 9.076, de 2 de fevereiro de 1995) é um dos vários meios já disponíveis para tal releitura. O caminho certamente passa pelo acompanhamento concomitante das licitações e contratos, em uma lógica de malha fina de informações e automatização de diagnóstico de falhas.

Como vimos, já há instrumento jurídico para analisar o comportamento indevidamente cooperativo dos mercados, o que falta é deslocar a origem das fontes de pesquisa, testar a composição de custos, assim como, em outras sendas, precisamos passar a questionar a eleição das entidades beneficiárias de repasses, a densidade dos seus respectivos planos de trabalho e a justificativa das admissões temporárias, dentre outras nuances.

A prevenção dos casos de frustração do caráter competitivo das licitações e de lesão à economicidade dos contratos administrativos deve ser meta proativa dos Tribunais de Contas e não uma constatação a posteriori de fatos consumados, com o saldo de dano ao erário a ser perseguido para eventual pretensão de ressarcimento.

Rever os consórcios, como sugerido pela Madame Natasha, é apenas a ponta do iceberg. Há inúmeros esforços que podem ser empreendidos em prol da renovação da capacidade de controle dos Tribunais de Contas, quer seja para o controle de preços e custos, quer seja para o controle concomitante da execução contratual. Mas tais Cortes também precisam eleger prioridades na abordagem (ao invés da desgastante e impossível pretensão de controlar tudo), com critérios transparentes e eficazes de amostragem.

Não pode o Estado, na economia da veloz e interligada mudança tecnológica, principalmente por meio dos seus órgãos reguladores e fiscalizadores, continuar com seus surrados métodos burocráticos e ultrapassados, caminhando a passos de cágado para lidar com os sofisticados impasses causados pelos mercados oligopolistas.

Os órgãos de controle, sob pena de se tornarem o “ornato aparatoso e inútil” citado por Ruy Barbosa, devem se modernizar, adquirir agilidade, privilegiando os controles prévio e concomitante em detrimento do subsequente, quando o interesse público já foi lesionado.

Em síntese, a Administração Pública precisa reduzir a distância que a separa da sociedade. Atualizar é preciso, até para que possamos aprender com as lições das manifestações de junho último e ir ao encontro do saneamento das situações que nos levam a termos de ouvir calados as considerações de Gaudêncio Torquato[4]: “A ciência política ensina que Estado e sociedade formam um todo indivisível. A prática mostra que, ao menos entre nós, Estado e sociedade compõem uma dualidade em escancarado desnível. Nosso corpo social anda a passos mais avançados que o esqueleto do Estado. […] Desse cenário conflituoso emerge a ideia de que a sociedade nunca esteve tão ativa, enquanto o Estado nunca foi tão reativo, lerdo, sem rumo. Seja qual for o espaço da administração, as amostras de ineficiência e incúria se multiplicam.”


[1] ELIO GASPARI – in Folha de São Paulo, 11/08/2013, pg. A-16.

[2] A Riqueza das Nações (1776), Livro I, Capítulo 10, parte II.

[3] Conforme lição extraída de Silva Filho, Laércio de Oliveira. Perícias e superfaturamento em obras públicas: o que não vai para o papel. XII Simpósio Nacional de Auditoria em Obras Públicas – Brasília – DF, novembro, 2008.

[4] Gaudêncio Torquato – O ESTADO NO PICO DA CRISE in O Estado de São Paulo, 06/10/2013, pg. A2

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    É procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, Pós-Doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela UFMG.

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    É auditor substituto de conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, Administrador (FGV), Contador e Consultor em Gestão Empresarial (Controladoria, Planejamento Financeiro, Tributário e Auditoria).

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