Embargos Culturais

John Hart Ely e a crítica ao controle de constitucionalidade

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

3 de novembro de 2013, 7h00

Há diferenças entre se declarar a inconstitucionalidade de uma lei e se ocupar o Parlamento? Essa intrigante questão é sugerida no conjunto de conclusões de um dos mais importantes livros de Direito Constitucional escritos na segunda metade do século XX. Refiro-me a Democracia e Desconfiança[1], de autoria de John Hart Ely, professor norte-americano, que lecionou em Yale (1968), em Harvard (1973), em Stanford (1982) e na Faculdade de Direito da Universidade de Miami (1996)[2]. John Hart Ely nasceu em 1938 e morreu em 2003. Sua obra dá-nos insumo para tentativa de compreensão da relação que há no Brasil entre os três poderes da República.

Para Ely, a substância dos atos normativos importa mais do que o conjunto de procedimentos, ainda que estes últimos calibrem e qualifiquem aqueles primeiros. Isto é, como resultado, a substância das decisões institucionais e normativas supera os mecanismos de produção dessas decisões. A democracia exige que decisões sejam tomadas pela sociedade, democraticamente. Por isso, para Ely, cortes constitucionais deveriam controlar apenas os procedimentos de produção de decisão: jamais poderiam decidir sobre a substância das opções institucionais. Tem-se, no limite, alguma referência com a tese do deficit democrático, indicativo de crítica à atuação do Judiciário.

A partir de John Hart Ely pode-se fracionar as correntes de compreensão constitucionais em grupos favoráveis e desfavoráveis a interpretações criativas dos textos políticos fundantes. Aqueles primeiros são ativistas, insistem que a aplicação da Constituição exige alguma medida de criatividade e de alguma maneira revelam adesão a concepções jusnaturalistas e metafísicas do Direito: amplia-se o texto original da Constituição. Earl Warren, que presidiu a Suprema Corte dos Estados Unidos de 1953 a 1968 é o nome que mais representa essa tendência.

Os refratários ao ativismo defendem posturas de contenção, centradas nos textos legais, na perene busca da intenção dos autores dos textos constitucionais. Antonin Scalia, juiz da Suprema Corte norte-americana, é o campeão da causa. Nos Estados Unidos, há alguma relação entre ativistas e democratas, bem como entre originalistas e republicanos. Ainda que Warren fosse republicano, nessa qualidade fora governador da Califórnia, e para a Suprema Corte fora indicado pelo republicano Dwight David Eisenhower. Bem entendido, Eisenhower considerava a ida de Warren para a Suprema Corte como o maior erro que cometera.

Curiosamente, John Hart Ely fora estagiário (law clerck) de Earl Warren[3], logo depois de ter estagiado com um ultraconservador, Abe Fortas[4], com quem teria colaborado na elaboração da defesa de Anthony Lewis, no célebre caso das trompetas de Gedeão, quando se discutiu o direito potestativo do réu contar com um defensor em juízo[5].

Democracia e Desconfiança foi lançado em 1980. Trata-se de um livro de maturidade, que reflete experiências colhidas e vividas por seu autor, que conviveu com euforias e traumas que os norte-americanos viveram ao longo da Guerra Fria. John Hart Ely pertence a uma geração de juristas norte-americanos marcada pela ideologia do New Deal, protagonizada pelo Presidente Franklyn Delano Roosevelt.

Essa geração, cujo pano de fundo conceitual fora construída nas bases do realismo jurídico, defendeu que intervenção judicial é efetivamente intervenção e que as controvérsias do meio social deveriam ser resolvidas por intermédio do processo democrático, isto é, prestigiando-se eleições e as regras da maioria.


[1] ELY, John Hart, Democracy and Distrust, A Theory of Judicial Review¸ Cambridge and London: Harvard University Press. Há tradução para o português, Democracia e Desconfiança, uma Teoria Judicial do Controle de Constitucionalidade, de Juliana Lemos, com revisão técnica de Alonso Reis Freire e revisão da tradução e texto final de Marcelo Brandão Cipolla, São Paulo: Martins Fontes, 2010.
[2] Os dados biográficos de John Hart Ely foram colhidos em Richard D. Parker, in NEWMAN, Roger K. (organizador), The Yale Biographical Dictionary of American Law, New Haven and London: Yale University Press, 2009, p. 185.
[3] Cf. POWER JR., Lucas, The Warren Court and American Politics, Cambridge and London: Harvard University Press, 2001, p. 385.
[4] Sobre Fortas, conferir KALMAN, Laura, Abe Fortas, a Biography, New Haven and London: Yale University Press, 1990.
[5] Cf., por todos, LEWIS, Anthony, Gideon´s Trompet, New York: Random House, 1964.

Autores

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    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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