Reclamações constitucionais

Por que há tantos processos na Justiça do Trabalho?

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1 de novembro de 2013, 6h00

A pergunta que constitui o título deste artigo é daquelas que despertam diversos sentimentos, implicam diferentes discursos e inspiram múltiplas explicações. Logo, adianto ao leitor que o espaço aqui não comporta uma pretensão de explicação, mas apenas um fomento à discussão de um fenômeno que merece – e precisa – ser examinado, na medida em que não é apropriado a uma democracia – que deseja de afirmar institucionalmente – que seus órgãos jurisdicionais atuem acima do limite de suas forças.

Em 26 de outubro, a ConJur publicou matéria, assinada pelo repórter Elton Bezerra, dando conta que 38% das reclamações constitucionais aforadas perante o Supremo Tribunal Federal se relacionam com decisões oriundas da Justiça do Trabalho. E mais: revelou que essas ações judiciais, raras há alguns anos, já se mostram aos milhares no STF.

Do ponto de vista qualitativo, as informações divulgadas apontam que boa parte dessas reclamações dizem respeito à estipulação de responsabilidade subsidiária de órgãos públicos, tendo em vista o artigo 71, § 1º, da Lei 8.666/93, diante do que decidiu o STF na Ação Direta de Constitucionalidade 16.

Agregaria, além dessa hipótese, outras que também percebo como muito presentes nas reclamações perante o STF: competência da Justiça do Trabalho nas ações que envolvem trabalho precário e temporário na administração pública, bem como demandas que envolvem a fixação da base de cálculo do adicional de insalubridade.

Tenho que a importância do destaque a esse fenômeno repousa na necessidade de percepção de que a Justiça do Trabalho tem contribuído, para o número total de ações judiciais em tramitação, com significativa parcela. Estamos falando de milhões de processos por ano.

Acredito que esses dados precisam ser examinados sob os aspectos “litigiogênicos”, isto é, sobre as causas que incrementam as demandas na Justiça do Trabalho. Por que há tantos processos?

No caso das reclamações no STF, de que causas estamos falando? De um lado, o enorme aumento da terceirização no setor público, muitas vezes por meio de empresas prestadoras de serviço sem a necessária idoneidade econômica-financeira. De outro lado, as incertezas jurídicas que ainda pairam sobre os efeitos da decisão do STF na ADI 3.395, que excluiu da Justiça do Trabalho as relações trabalhistas “jurídico-administrativas”, expressão jurídica de forte indeterminação. Ainda quanto a este item, acresço o enorme esforço que os entes públicos têm empreendido para fazer com que os processos que versem sobre esse tema deixem os limites da Justiça do Trabalho, ainda que, a par desse propósito, não vislumbre significativa melhora na qualidade da contratação de pessoal no setor público.

Isso porque muitos ainda são os contratos precários e temporários, sem prévia aprovação em concurso público ou sem a observância das excepcionais regras na contratação por prazo determinado no âmbito da Administração Pública.

Por fim, a Súmula Vinculante 4, que proíbe a fixação do salário-mínimo como base de cálculo do adicional de insalubridade, deixou uma série de dúvidas práticas para serem enfrentadas pela Justiça do Trabalho quando do exame dos casos concretos. As reclamações ao STF têm como fundamento as diversas soluções encontradas pelo Judiciário para observar o binding precedent que se constitui a SV 4.

Sem embargo, estes são apenas alguns exemplos da diversidade de causas que acorrem, diariamente, à Justiça do Trabalho. Infelizmente, muitos deles apenas revelam altíssimos graus de inadimplência trabalhista, na medida em que expõem que muitas obrigações básicas são descumpridas.

É dizer: em geral, é baixa a faticidade da legislação trabalhista.

Para Adalberto Cardoso, a observância da legislação decorre de algumas condicionantes, que presidem, em relação de aproximada causa e efeito, o comportamento dos atores sociais relativamente às suas obrigações legais. No caso da legislação do trabalho, é possível cogitar as seguintes situações que interferem diretamente na faticidade da lei:

a) o empregador cumpre a lei, porque a sanção é considerada alta o suficiente para tornar racional evitá-la e o risco de ser pego e punido é alto;

b) o empregador não cumpre a lei porque, embora a sanção por não cumpri-la seja alta, a probabilidade de ser apanhado é muito baixa;

c) se o risco de for pego é alto, mas a sanção é considerada pequena o bastante para tornar racional sofrê-la em lugar de incorrer nos custos trabalhistas, a lei não será cumprida;

d) se a sanção for baixa e o risco de ser pego também, a lei tampouco será cumprida[1].

As dimensões continentais de nosso país e a histórica deficiência dos órgãos de fiscalização do trabalho (nomeadamente por falta de estrutura e de pessoal) justificam, a partir dessa abordagem, a assunção de riscos, pelo empregador, com uma estratégia de (des)cumprimento, mesmo que apenas parcial, da legislação. É que sucede, por exemplo, no setor da construção civil, de onde surge um número importantes de ações judiciais apenas para fazer repercutir o salário variável nas verbas de natureza rescisória.

De outro lado, as eventuais fiscalizações, com autuação, ainda observam uma lenta marcha administrativa, com a possibilidade de interposição de recursos no contencioso não judicial, antes de inscrição do débito na dívida ativa da União, e eventual ajuizamento de execução fiscal, somente recentemente na Justiça do Trabalho (após a Emenda 45/2004). E até que algumas multas não são tão baixas (especialmente quando multiplicadas pelo número de empregados envolvidos), mas o que importa, na formação do ethos, é a efetiva cobrança, o efetivo pagamento.

E se entrelaçam com esse quadro os superlativos números da informalidade no Brasil. De acordo com o IBGE, em 2012, havia mais de 44 milhões de trabalhadores em ocupações informais no país[2]. Quero crer que boa parte desse contingente, em algum momento, buscará a Justiça do Trabalho com pretensão de ver formalizada a relação de trabalho e, provavelmente, pagos direitos decorrentes dessa formalização.

O que não me parece adequado é guardarmos obsequiosa omissão no enfrentamento desses temas, tomando como normal uma dimensão disfuncional da Justiça do Trabalho no Brasil, que precisa, atualmente, harmonizar seus recursos humanos e materiais para enfrentar desafios de um quadro de inadimplência que, pelo menos no contexto de momento, implica em inequação desfavorável à pretensão de eficácia do direito fundamental da duração razoável do processo.

Mais adiante, pretendo explorar neste espaço alguns aspectos adicionais que perpassam o exame da litigiosidade na Justiça do Trabalho.


[1] CARDOSO, Adalberto Moreira. As normas e os fatos. Rio de Janeiro: FGV, 2007, p. 72.

[2] Cf. www.valor.com.br . Acesso em 28 out. 2013.

Autores

  • é Juiz do Trabalho, titular da 2ª Vara do Trabalho de Natal, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual.

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