Senso Incomum

Tout va très bien dans le monde juridique

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28 de março de 2013, 8h01

Spacca
A canção francesa e o título da coluna
De pronto, antes que venham críticas xenófobas, explico: li por estes dias o livro de Alan Riding, Paris, a Festa Continuou, que trata da vida cultural de Paris durante a ocupação nazista. Há uma bela passagem, que fala de uma canção popular do ano de 1936, interpretada por Ray Ventura, chamada Tout va très bien, Madame La Marquise ( “tudo vai bem, Madame La Marquise”). A canção denunciava o que a França fingia não ver: o cataclismo que se aproximava. Na canção, os empregados de uma aristocrata continuavam a assegurar-lhe de que tudo estava bem, embora um incêndio tomara conta de seu castelo, destruindo os estábulos e matando a sua égua favorita. Além disso, o marido de Madame cometera suicídio, mas, ainda assim, não havia com que se preocupar, porque “tout va très bien, Madame La Marquise”. Na paródia que fiz do título da música de Ray Ventura, “tudo vai muito bem no mundo jurídico”. Como o famoso corsário, “afundando e atirando, afundando e atirando”! Também há o filme italiano Stanno tutti bene (1990), com Marcelo Mastroianni (os filhos estavam todos “bem”: por exemplo, o que era maestro, na verdade apenas tocava um tambor!).

O que quero fazer? Simples. Penso que é possível fazer uma alegoria da canção e da situação nela apresentada com a questão dos concursos públicos, a crise do ensino jurídico e a crise da operacionalidade do sistema jurídico — mormente quando os jornais e sites jurídicos noticiam que 89,7% dos bacharéis chumbaram no exame da OAB (leia aqui). Embora tudo isso, a comunidade jurídica continua cantando “que tudo vai bem, Madame Dogmática Jurídica e Mounsier Ensino Jurídico”. E o filho “maestro” toca apenas um tamborzinho…

Automa(ta)ção do ensino
Tudo vai bem? É? Pois é. Pelo jeito, sim, porque a indústria que mais cresce é a dos compêndios e manuais simplificados-simplificadores. Embora o alto índice de “chumbamento” nos exames de Ordem e nos concursos, estes vão de vento em popa. Como um “fordismo jurídico”, tudo é feito em série, repetitivo, automatando (e auto-matando) o ensino e a sua operacionalização.

Já denunciei tudo isso à saciedade e à sociedade. Mas, por amor à ciência jurídica, não me canso. Parece não haver limites nesse processo de estandardização. Portanto, um índice de chumbamento de 89,3% não aparece “do nada”. Nem o alto índice de reclamações sobre o caráter de quiz show das questões dos concursos públicos em geral.

O elemento simbólico disso pode ser visto a partir de simples acesso à internet. Na rede pode ser visto um sujeito ensinando Direito Constitucional na melodia de “atirei um pau no gato”. Sim, é verdade. Fora outro(a) que “ensina” direito com músicas da Xuxa. Além disso, e nem sei se é o mesmo do “atirei o pau no gato”, há também como “aprender” sobre agências reguladoras por melodia dos Mamonas Assassinas. Pior, e aqui está o busílis da crise do Direito, se você prestar atenção, o que o “professor” está ensinando é, “esculpido em carrara”, nada mais, nada menos que o texto da lei, dos Códigos, da Constituição. É para de-co-rar. É escandaloso. Se isso acontecesse na área da Medicina ou da Física Nuclear, todos diriam: acabou a medicina; seremos todos vitimados pela primeira gripe ou infecção; os médicos estão estroinando com Hipócrates, a Física Nuclear virou Educação Física e estão fazendo prova de natação oral. Mas, como é no Direito, tout va très bien… a malta acha bonito.

Impunidade significativa
Vivemos em uma impunidade semântico-significativa. É talvez a pior das impunidades, porque ela é decorrente de um longo processo de expropriações de sentidos. Nesse universo expropriativo, já não há DNA de palavras e de coisas. Diz-se qualquer coisa sobre qualquer coisa. Como em um “estado de natureza de sentidos”, cada indivíduo dá os sentidos que quer. Ao invés de um monastério de sábios — que por si, na alegoria criada por Warat, já se constitui na institucionalização de um tirania de sentidos —, constroem um “monastério de néscios”, pior forma de ascensão da insignificância (homenageio Castoriadis). Assim, tornar público, em livros e outras formas de comunicação, as mais diversas bizarrices, tornou-se uma coisa aceita nestes tempos de fragmentação de sentidos.

Celebridades instantâneas, aprendizagem por drops: eis a receita. As salas de aula se torna(ra)m palcos de espetacularizações, onde o professor se desdobra para “ensinar” obviedades aos alunos, treinando-os com várias formas de jogral. É a infantilização da cultura. Sem accountabillity (necessidade de prestação de contas), os novos personagens — principalmente os do mundo jurídico — “vendem” o seu peixe a um público que cada vez mais “proletarizado culturalmente”.

Essa falta de compromisso e ausência de cobrança faz com que, por exemplo, um advogado (lembram?) publique um artigo retumbante (mais lido na ConJur) menos de 48 horas depois da tragédia da boate Kiss, de Santa Maria, dando o “veredicto” de que a prisão dos responsáveis era uma espécie de golpe na democracia (ou algo assim) e que o Estado Democrático é que “estava de luto”. Pois é. Tivesse ele esperado um pouco mais para se pronunciar… A falta de compromisso e ausência de cobrança (cuja soma corresponde à impunidade significativa) faz com que um livro sobre a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) circule explicando que a norma legal (ou lei) possui natureza de ato jurídico e que este constitui espécie de fato jurídico, que, por sua vez, subordina-se à classe dos fatos — e fato é qualquer evento ou acontecimento que se dá no mundo, na vida real. É. Pois é. Tout va très bien… A propósito: do que li, chego à conclusão que norma legal deve ser “uma senhora chamada Norma que é bem legal” ou algo desse jaez.

Eis aí o problema dos tempos pós-modernos. Sem cobranças, sem prestação de contas significantes-significativas. Trata-se de uma “humptydumptyzação” da linguagem, em que o universo jurídico é a maior vítima. Caso contrário, como se explica o sucesso de todos esses personagens que “vendem” facilidades e instantaneidades? Depois nos queixamos!

Já não há mais perguntas a serem feitas. Parece que esgotaram o estoque e agora há uma disputa para saber quem faz mais pegadinhas. Bem, tudo isso eu já denunciei. O que há de novo, então? O que há de novo é o silêncio eloquente da comunidade jurídica. Mas “tout va très bien”

Leio, agora, que o Ministério da Educação promete rigor na fiscalização das faculdades de Direito. Diz que fechará faculdades. Haverá um trabalho fiscalizatório conjunto MEC-OAB. Parece importante que providências sejam tomadas. Portanto, no mínimo é alvissareiro. Parabéns às autoridades responsáveis.

O que me preocupa, entretanto, é que as medidas sejam paliativas, apenas paracetamol em um caso de dengue, como que ministrado por um médico que passou em concurso público estudando em cursinho de preparação que pegou o know-how da área jurídica… Digo isso porque o “sistema” tem a capacidade de adaptação darwiniana. Um bom exemplo disso é a Resolução 75 do CNJ, que, tão logo “entrou em vigor” determinando a inclusão de disciplinas humanistas nos concursos para a magistratura, já fez com que aparecessem livros de baixíssima densidade teórica, em nada acrescentando no “projeto de humanização”. Na verdade, e isso já foi dito aqui em duas colunas (leia aqui e aqui), a produção “humanizadora” serviu para piorar a situação.

O que quero dizer é que, sem o enfrentamento da crise do Direito (denunciada já há mais de 30 anos, bastando ver os livros de Warat, Tercio, Faria e outros), tudo isso cairá na mesmice. Por mais chato que isso seja, tenho que insistir. Brado: essa crise é de paradigma(s). Passados cinco lustros desde a promulgação da Constituição, ainda não conseguimos resolver a problemática relacionada aos conceitos básicos da teoria do direito (entendida lato sensu, envolvendo os diversos âmbitos da dogmática jurídica). Vendo o que se escreve por aí e o que se pergunta nos concursos públicos — e voltamos sempre a ponto de entrada —, tem-se “claramente” que Kelsen ainda é visto como aquele que queria aplicar a letra da lei, que Siches era um pós-positivista, que Dworkin fala em ponderação de princípios e por aí vai…

Fiquemos apenas com o problema do coração do Direito: o positivismo. Há que se perguntar: conseguimos, hoje, dar uma resposta satisfatória à pergunta “o que é isto, o positivismo jurídico?”. Parece-me que a resposta é negativa. Continuamos a empurrar os alunos da graduação diante do beco sem saída das falidas dicotomias “jusnaturalismo vs. juspositivismo” ou “Direito Público vs. Direito Privado”. No primeiro caso, a alternativa ao juspositivismo (geralmente identificado como uma postura jurídica que separa direito de moral e que, portanto, pretende um direito “a-valorativo” sic) é sempre o jusnaturalismo. Assim, mesmo na contemporaneidade, em uma sociedade altamente secularizada, todos autores que são críticos do positivismo e que defendem um tipo positivo de relação do direito com a moral são logo de pronto rotulados de jusnaturalistas. Ouvi em um grande congresso de Filosofia do Direito uma conferência inteira que dizia que Dworkin era um jusnaturalista. E a velha questão Direito Público vs. Direito Privado também deixa marcas nessa discussão. Na verdade, temos que aprofundar o estudo do Direito. Temos que entender que as raízes do positivismo jurídico estão no direito privado. Os grandes tratadistas do direito público novecentista — de Gerber a Jellinek — tinham muito débito com o conceitualismo da pandectistica. E hoje, em pleno constitucionalismo contemporâneo ainda estamos repristinando este tipo de discussão. Não se avança. Os livros didáticos tratam as coisas assim, os currículos da faculdade de direito incorporam a discussão da mesma forma e tudo desagua em um grande círculo vicioso. Enfim, não quero cansar mais os leitores.

A crise paradigmática
Como dizia já de há muito José Eduardo Faria, preparado para resolver conflitos inter-individuais, o direito não está preparado para as pendengas de cariz supraindividual. Passados 25 anos, ainda não aprovamos um novo Código Penal. Nossa dogmática jurídica ainda aceita que delitos como furto (propriedade individual) sejam mais graves ou tenham tratamento mais duro do que delitos de índole metaindividual, mormente os praticados contra o Estado. Com isso, não causa surpresa — e refiro aqui o leitor Luis Alberto da Costa —, em comentário à coluna da semana passada, mostrando que o próprio Supremo Tribunal aplica o princípio da insignificância para descaminho em valores até R$ 10 mil e nega para um furto de seis barras de chocolate avaliadas em R$ 31,80.

Querem ver algo que, simbolicamente, denuncia a crise e a demonstração de que não há qualquer accountabillity no mundo jurídico? Explico. Há muito denuncio o pan-principiologismo, essa bolha especulativa que ainda vai causar uma espécie de subprime hermenêutico. Pois depois daquela longa lista que publico em Verdade e Consenso, apareceu, agora, um novo. Trata-se do “princípio da operabilidade” — sim, tem um livro que fala desse “princípio” —, que serve, segundo seu inventor, para dar a concretude e a efetividade idealizadas mediante operações feitas pelo aplicador do direito, o juiz da causa, visando ao direito prático, factício, concreto, visando a facilitar a interpretação e a aplicação dos institutos. Ah, bom.

Diz-se, ainda, que o tal princípio da operabilidade tem o condão de fazer o Código Civil funcionar de modo simples. Com o uso do tal “princípio”, seria mais fácil operar o Código, longe dos tecnicismos fundados em teorias que “mais complicam do que facilitam a vida do operador". Operador, no caso, deve ser do “tipo telemarketing”, é claro. Algo como “vou estar interpretando”. Ou seja, segundo o autor que trata do aludido “princípio da operabilidade”, teorizar o Direito complica a vida do operador! Pois é. Talvez o melhor mesmo é simplificar.

A propósito, vai uma pergunta: por que, se o tal princípio da operabilidade é um princípio, ele só se aplica(ria) ao Código Civil? Indubitavelmente, essa criação quase artística de princípios põe à lume, de forma escancarada, a crise da Teoria do Direito. Lendo essas coisas todas, tenho a nítida impressão de que não conseguimos sequer dar um passo adiante da problemática envolvendo o direito privado do século passado. Diante disso, pergunto: como fazer concursos sofisticados, envolvendo questões reflexivas? Como fazer exames de Ordem complexos, se, assim como está, já dá chumbamento de quase 90%?

Ainda sobre a bolha especulativa de princípios: esse “princípio” (da operabilidade) era o que estava faltando. Como o direito sobreviveu até hoje sem ele? Baixemos as prateleiras. Investiguemos. É um gap na história. Isso dá tese de doutorado, algo do tipo “Como o direito era antes do princípio da operabilidade”. Ou seja, agora estamos salvos, pois dispomos de mais um macete para que o magistrado possa dar cabo dos hard cases que enfrentará, especialmente após passar pela deformação proporcionada pelos concursos que tiver feito e, consequentemente pelo "ensino" estandardizado e simplificado a que deverá submeter-se para descobrir o "caminho das pedras" para a prova que teve de fazer, qual engloba inclusive novas searas jurídicas, como direito sumular (que deve ser algo como o direito brotado dos tribunais, legitimamente produzido pelo Judiciário e traduzido por meio de enunciados normativos, imagino eu, pois não?!) que também já está esquematizado e apartado dos fundamentos que poderiam sustentá-lo, é claro! No apagar das luzes, fechando esta coluna, um aluno me trouxe a seguinte sacada, tirada de um livro (ou artigo) que trata de direito ambiental. Consta, ali, que a ponderação, sempre ela (entre outros artifícios), é um ás na manga do intérprete ecológico. E que um dos critérios para resolver problemas hermenêuticos no direito ambiental é utilizar o princípio in dúbio pro ambiente. “Ás na manga” quereria dizer uma espécie de “Katchanga Real”? Uma espécie de “pedra filosofal”? De todo modo, pensei: como ninguém tinha pensando nisso antes? Mais: e seria, em um país em que o ativismo corre frouxo, apenas um ás na magna no direito ecológico?

Tudo vai bem…
Ao final, voltando ao livro “Paris, a Festa Continuou”, lembro a passagem em que o autor diz que, quando a Alemanha engoliu o restante da Tchecoslováquia, em marco de 1939, o consenso em Paris era de que não fazia sentido pedir aos cidadãos franceses que morressem em defesa dos tchecos. Mas esse acontecimento abalou os governos da Grã-Bretanha e da França, que finalmente se comprometeram a garantir a independência da Polônia, o próximo alvo da mira de Hitler. Mas também, esse gesto teve pouco apoio popular. No artigo To die for Danzig (Morrer por Danzig), publicado em L’Oeuvre em maio de 1939, Marcel Déat afirmava que ninguém poderia impedir Hitler de se apoderar do enclave báltico. “Começar uma guerra na Europa por causa de Danzig seria um certo exagero”, disse ele, acrescentando: “Não morreremos por Danzig”. Mesmo a essa altura, poucos franceses acreditavam que a sobrevivência de seu país se encontrava em risco. Obviamente, não havia nada na vida social e cultural da França na primavera e no verão de 1939 que pudesse ter convencido aos franceses que o país poderia ser invadido e tomado.

Pois é. Naquela Paris, véspera de ser tomada e humilhada pelos alemães, “as festas à fantasia e os bailes de máscaras continuavam a ocorrer, luxuosos como sempre”.

Afinal, não nos preocupemos: Tout va trés bien, Madame La Marquise. É: tudo vai bem nos concursos, na dogmática jurídica e no ensino do direito. Tudo vai bem… afinal, quem quer morrer por Danzig? Quem quer se sacrificar enfrentando esse “monde juridique” que, afinal, vai “tão” trés bien?

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