Contas à Vista

Os royalties do petróleo, o STF e a Federação

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Melo Guimarães Pinheiro & Scaff – Advogados; é professor da Universidade de São Paulo e doutor em Direito pela mesma Universidade.

26 de março de 2013, 8h03

Spacca
O petróleo, bem como outros recursos naturais, pertencem à União por força da Constituição. Os royalties que são pagos pelas empresas correspondem ao preço público cobrado pela União em razão da extração desse petróleo. A União divide esta arrecadação com estados e municípios. Em que ponto está o problema colocado defronte pelos estados denominados produtores perante o Supremo Tribunal Federal neste momento? Na questão do rateio desses valores.

Melhor posicionando o debate: sendo um bem da União, embora explorado em território delimitado de certos municípios e estados, a arrecadação deve ir para estes ou para outros, cujo território não tenha nenhuma relação de pertinência com a exploração daquele petróleo? Por outras palavras: se encontrassem petróleo em Brasília, debaixo do Palácio do Planalto, os royalties arrecadados deveriam ser apenas dessa cidade e das demais que compõem o Distrito Federal ou deveriam ser rateados com os demais estados e municípios da Federação? Este é um dos pontos em debate acerca dessa matéria, com um agravante: não se trata de território de nenhum município e ou estado. Trata-se de petróleo extraído em alto mar. Claro que existe a projeção das linhas geográficas que permitem dizer que o mar pertence a este ou aquele estado e município e que, portanto, eles teriam direito àquela receita. A lógica está correta, mas o problema do rateio ainda permanece: por qual motivo só os estados e municípios praianos teriam direito a estas riquezas e não os interioranos? Registre-se que a expressão estados produtores é imprecisa, pois tais estados nada produzem — quem produz são as empresas localizadas em seu território, através da extração de um bem que é da titularidade da União.

O problema que está sobre a mesa do STF possui dois distintos âmbitos. 

Um deles é o do rateio dos valores entre todos os entes federados ou só alguns deles, o que se caracteriza como matéria eminentemente política, sendo o Congresso o lugar correto para esta definição  —  o que fez aprovando novos critérios através da rejeição dos vetos, o que consolidou o texto da nova lei. 

Outro ponto, correlato ao acima, porém diverso, diz respeito à mudança de critério para o rateio dos contratos já firmados com as empresas que extraem petróleo, que foi aprovado pelo Congresso. Argumenta-se que se trata de quebra de contrato no que tange às concessões já em curso. Não é bem assim. Os contratos de concessão estavam e permanecem em vigor, sem alteração. O argumento de quebra de contratos de concessão não tem como prosperar juridicamente, pois aquilo que as empresas extratoras pagavam de royalty continuarão pagando. Não há nenhuma alteração no que tange às incidências fiscais.

A questão está centrada no rateio dos valores arrecadados, o que gera um problema de previsibilidade e segurança orçamentária e não de quebra de contrato. Por certo, os estados já comprometeram esta receita pública com despesas em função de seu Plano Plurianual (PPA), sua Lei de Diretrizes Orçamentarias (LDO) e sua Lei Orçamentária Anual (LOA). Logo, haverá aqui uma quebra de fidúcia, de previsibilidade orçamentária, jamais de um contrato de concessão, mas de contratos administrativos em que o ente público é quem ordena a realização de despesas, no qual ele se comprometeu a pagar certa quantia e vê a previsão de sua arrecadação sumir pelo ralo. Aqui sim, poderá haver quebra de vários contratos em razão da violação da previsão e do planejamento financeiro desses entes públicos, que já empenharam estas receitas para a realização de gastos. Este é um bom caminho a ser trilhado no debate interfederativo colocado perante o STF.

Ocorre que o argumento da previsibilidade e da segurança orçamentária traz um problema para quem o argui, que é o de sua transitoriedade, pois a previsão contida no PPA é de quatro anos, no máximo, e o que se encontra em curso se encerrará em 31 de dezembro de 2015, quando passará a vigorar outro, a ser aprovado pelo governadores e deputados estaduais que vierem a ser eleitos em 2014. Logo, o horizonte de validade desta previsibilidade e segurança orçamentária é de prazo relativamente curto, o que contrasta com o caráter de perenidade que os estados produtores pretendem obter com as ações propostas perante o STF. Daí porque é arguido o “direito adquirido”, que transformaria em “clausula pétrea” a divisão dos royalties tal como primordialmente estabelecida.

Aliás, este debate federativo no STF permitirá inúmeros desdobramentos processuais no exercício da jurisdição constitucional, dentre elas a possibilidade de um enorme litisconsórcio, através da figura do amicus curiae, pois enquanto os estados produtores pleiteiam a manutenção das regras anteriores, que lhes beneficiam, os estados não produtores poderão ingressam na ação pleiteando a aplicação das novas regras, que lhes beneficiam. Logo, poderá haver uma espécie de judicialização de todos contra todos, esgarçando ainda mais o precário tecido federativo que nos une. Uma série de necessárias audiências públicas no STF devem ser agendadas para deliberar sobre este tema. 

A decisão da ministra Cármen Lúcia foi muito ponderada, como de hábito. A boutade de que no Brasil nem o passado é seguro, demonstra com clareza o problema do efeito retroativo pretendido na norma aprovada  —  as receitas estão comprometidas com gastos já previstos ou até empenhados, através de contratos firmados e em execução. A liminar manteve o rateio na forma da lei anterior, no que fez bem, em face do perigo de dano reverso, pois se as receitas fossem rateadas na forma da nova norma e a lei vier a ser julgada inconstitucional  —  com ou sem modulação de efeitos  —,  o dano ocasionado dificilmente poderia ser consertado. De outro modo, as novas receitas oriundas da nova norma, se declarada constitucional, podem passar a ser carreadas aos novos cofres estaduais na data em que esta determinação vier a ser adotada. Dinheiro novo para novos gastos, ainda não orçamentados; dinheiro velho para os gastos já em curso, previstos no orçamento:  esta foi a linha lógica e correta estabelecida na liminar. Claro que esse processo deverá ser julgado no mérito com a agilidade que o caso requer  —  não poderá ser deixado para as calendas gregas, caso em que o STF acabará por se transformar em legislador, figurino que não lhe cabe.

Outra curiosidade que não pode deixar de ser observada diz respeito à característica de alguns desses estados produtores praticarem com assiduidade a assim chamada guerra fiscal. Ou seja, não abrem mão dos royalties transferidos pela União, mas abrem mão do ICMS próprio, que deveriam arrecadar através de suas secretarias de Fazenda/Finanças. Trata-se de um aspecto interessante, pois fazem cortesia com sua máquina arrecadatória de uma receita que deve ser partilhada com os municípios e que é, em grande parte, vinculada a gastos com saúde e educação. Porém, brigam para manter as receitas decorrentes dos royalties, cujo ônus arrecadatório é da União, e que não são partilhadas nem carimbadas.

Observe-se que o debate sobre royalties é apenas a antessala de outro debate semelhante que pode ocorrer em razão da aprovação dos novos critérios de rateio federativo do Fundo de Participação dos Estados (FPE), que está em trâmite no Congresso.

O debate sobre federalismo fiscal está cada vez mais acesso e judicializado no Brasil. Se as pessoas que governam este país entenderem que é necessária uma reforma fiscal, que envolva os critérios de atribuição de competências e de rateio de recursos, quem sabe possa ser aprovada também a reforma tributária, que é seu reverso? Afinal, somos nós, contribuintes, que pagamos a conta desta guerra federativa e dos impasses que ela ocasiona.

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