Consultor Tributário

Só uma reforma tributária salvaria o pacto federativo

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20 de março de 2013, 8h03

Semana passada recebi um post com a seguinte frase em inglês: Common sense is so rare these days, it should be classified as a super power. Traduzida em português seria algo como: Bom senso é tão raro atualmente que deveria ser classificado como um superpoder.

Definitivamente vivemos tempos insensatos.

A encenação em torno da morte de Hugo Chávez foi de causar arrepios em qualquer cidadão que preze a democracia e (ainda) confie na razão. Militares de punhos cerrados gritando palavras de ordem, a espada de Bolívar nas mãos de um radical imaturo (embora se chame Maduro), a presença festejada de Lukashenko, ditador da Bielorússia, de Ahmadinejad, a “pajelança” dos líderes “bolivarianos” que se multiplicam no continente e a tentativa (frustrada) de embalsamar o corpo para veneração são sintomas de que algo vai muito mal.

Outra recente demonstração de insensatez foi a pantomina de Kim Jong-un, jovem títere norte-coreano, refém de uma cúpula militar irresponsável, desembarcando de uma pequena lancha no gélido mar coreano, com centenas de soldados em volta, para decretar o fim do armistício com a Coreia do Sul e estremecer de vez o difícil equilíbrio regional.[1]

Mas o que mais me apavorou foi ler a reportagem abaixo:

O antigo presidente do Eurogrupo e primeiro-ministro luxemburguês, Jean Claude Juncker, afirmou no fim de semana que o ressentimento contra a Alemanha nos países do Sul tem paralelos “arrepiantes” com o que aconteceu em 1913 e que conduziu à Primeira Guerra Mundial.

Juncker disse à Der Spiegel: “Quem acredite que a eterna questão da guerra e da paz na Europa já não é um risco está redondamente enganado.”

Os demônios não desapareceram, estão apenas adormecidos, como mostraram as guerras na Bósnia e no Kosovo. Fico abismado ao ver as semelhanças de muitas condições na Europa em 2013 com as de 100 anos atrás.

O contraponto à chamada de atenção de Juncker dá-se quando, no momento em que a Áustria se prepara para comemorar o 75º aniversário da sua anexação pela Alemanha nazi, uma sondagem de opinião mostra que mais de metade dos austríacos estão convencidos de que os nazis seriam eleitos se fossem autorizados como partido político.

A sondagem do jornal Standard indica que, para além disso, cerca de 42% dos austríacos acha que a vida “não era assim tão má sob o regime nazi”, e que 39% da população acredita mesmo ser provável uma nova vaga de antissemitismo na Áustria.[2]

Assustador, não? Estaremos às vésperas de um conflito como o de 1914?

Aqui no Brasil também é preocupante a falta de bom senso (e, principalmente,) de boa educação. Não há palavras para descrever o tratamento dispensado por militantes “não sei de quê” à blogueira cubana Yoani Sánchez, que apenas queria liberdade para se expressar. Se pretendermos mesmo ser uma democracia, é intolerável admitir que se cale, com urros e vaias, a palavra dissidente.

Querem melhor exemplo da total e absoluta insensatez que nos assola que a indicação e eleição do deputado-pastor Marco Feliciano (PSC-SP) para presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados? Sem fazer qualquer julgamento a respeito das convicções pessoais do deputado em questão, definitivamente é o típico caso da pessoa errada no lugar errado. O mínimo de bom senso reclamaria a indicação de outro parlamentar pelo partido agraciado com a presidência da comissão em causa.

Essa “marcha da insensatez” — tomando de empréstimo o título do clássico de Barbara Tuchman — parece ter atingido seu ápice aqui no Brasil na disputa pela repartição dos royalties do petróleo.

Nunca antes na história desse país (parafraseando Lula) se viu uma disputa tão irresponsável, perturbadora da harmonia entre os poderes e de enorme periculosidade para a estabilidade da Federação.

O novo regime de distribuição dos royalties aprovado pelo Legislativo, vetado pelo Executivo, ressuscitado pelo Legislativo e, agora, nas mãos do Judiciário (uma vez mais se apela ao Supremo)[3], fere de morte o equilíbrio de competências constitucionais que sustenta o pacto federativo. Não se bastando em repartir expectativas de receitas (ainda inexistentes) da exploração do pré-sal, em grave prejuízo aos Estados e Municípios diretamente afetados, a nova lei imposta pela maioria do Congresso avançou sobre os recursos (esses sim existentes e, em muitos casos, já comprometidos) oriundos de contratos de exploração em curso de execução.

O direito dos Estados e Municípios produtores aos royalties radica no art. 20, § 1º da CF/88, segundo o qual:

§ 1º – É assegurada, nos termos da lei, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, bem como a órgãos da administração direta da União, participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais no respectivo território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, ou compensação financeira por essa exploração.

O Supremo Tribunal Federal, chamado a pronunciar-se sobre se referida “compensação financeira” teria natureza ou não de tributo, decidiu no leading case (RE 228.800/DF[4]) que se trata de receita patrimonial de cunho indenizatório. Essa finalidade “reparadora” foi assim apontada no voto do relator ministro Sepúlveda Pertence:

(…) compensação financeira se vincula (…) não à exploração em si, mas aos problemas que gera.

(…) a exploração de recursos minerais e de potenciais de energia elétrica é atividade potencialmente geradora de um sem número de problemas para os entes públicos, especialmente ambientais (…), sociais e econômicos, advindos do crescimento da população e da demanda por serviços públicos.

O caráter indenizatório prosseguiu sendo afirmado em outros julgados, como se lê na passagem abaixo transcrita da ementa do acórdão proferido no RE 381.830/DF, de Relatoria do Ministro Marco Aurélio:

COMPENSAÇÃO FINANCEIRA – EXPLORAÇÃO DE PETRÓLEO, GÁS NATURAL, RECURSOS HÍDRICOS E MINERAIS – NATUREZA. O que previsto no artigo 20, § 1º, da Constituição Federal não consubstancia tributo, estando alcançado pelo gênero indenização.[5]

Sendo a compensação pela exploração de petróleo e gás natural, de recursos hídricos para geração de energia elétrica e de outros recursos minerais aos Estados e Municípios produtores prevista no art. 20, § 1º da CF/88 uma indenização pelos danos causados é natural que a mesma se destine (ao menos preponderantemente) aos estados e municípios que sofreram os danos. O bom senso reclama que só faça jus à indenização aquele que sofre o dano.

Aliás, parece ter sido o bom senso que presidiu a gênese do art. 20, § 1º da CF/88, solução encontrada para o reequilíbrio de forças estatais no pacto federativo em razão do sistema de tributação do ICMS, conforme revela o depoimento do ministro Nelson Jobim no MS 24.312/DF, ação que versava sobre o poder de fiscalização da aplicação dos royalties (Tribunal de Contas da União ou Tribunais de Contas dos Estados[6]):

Em 1988, quando se discutiu a questão do ICMS, o que tínhamos? Houve uma grande discussão na constituinte sobre se o ICMS tinha que ser na origem ou no destino.

A decisão foi que o ICMS tinha que ser na origem, ou seja, os Estados do Sul continuavam gratuitamente tributando as poupanças consumidas nos Estados do Norte e do Nordeste.

Aí surgiu um problema envolvendo dois grandes assuntos: energia elétrica — recursos hídricos — e petróleo.

Ocorreu o seguinte: os estados onde ficasse sediada a produção de petróleo e a produção de energia elétrica acabariam recebendo ICMS incidente sobre o petróleo e energia elétrica.

O que se fez? Participei disso diretamente, lembro-me que era, na época, o senador Richard quem defendia os interesses do estado do Paraná e o senador Almir Gabriel quem defendia os interesses do Estado do Pará, além do Rio de Janeiro e Sergipe, em relação às plataformas de petróleo.

Então, qual foi o entendimento político naquela época que deu origem a dois dispositivos na Constituição? Daí porque preciso ler o § 1º do Art. 20, em combinação com o inciso X do art. 155, ambos da Constituição Federal.

O que se fez? Estabeleceu-se que o ICMS não incidiria sobre operações que se destinassem a outros estados — petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos, gasosos e derivados e energia elétrica — ou seja, tirou-se da origem a incidência do ICMS. (….)

Assim, decidiu-se da seguinte forma: tira-se o ICMS da origem e se dá aos Estados uma compensação financeira pela perda dessa receita. Aí criou-se o § 1º do artigo 20”.

Sensata a solução de tributação pelo ICMS no destino — como exceção à regra geral de tributação na origem — da energia elétrica e do petróleo. Reconheceu-se a necessidade de se assegurar a todos os Estados poderes tributários sobre tais operações, sem privilegiar apenas aqueles (poucos) Estados que concentram a produção de petróleo e a geração de energia elétrica.

Também sensata a contrapartida de uma compensação financeira (royalties) aos Estados e Municípios afetados pela exploração dos recursos naturais em questão.

A mudança do sistema de concessão para partilha como pretexto para revolucionar as regras de repartição revela uma grande insensatez da classe política. Insensatez esta tanto mais grave porque se pretende aplicar as novas regras a contratos em vigor sob a sistemática anterior.

Os orçamentos dos estados e municípios produtores foram construídos contando com tais receitas, os compromissos foram assumidos sob essa perspectiva e devem ser honrados. A subtração abrupta e insensata daquilo que se receberia repugna qualquer cidadão racional.

Mas momentos de crise são oportunidades de renovação. Está mais do que evidente que urge uma reforma tributária que adeque e aprimore o Sistema Tributário Nacional arquitetado na Carta de 1988 aos tempos atuais, que identifique os desvios e corrija os rumos.

Bem que poderia ser desengavetada a Proposta de Sistema Tributário, elaborada pela Subcomissão Temporária da Reforma Tributária do Senado Federal[7]. Presidida pelo senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), tendo como vice-presidente o senador Neuto de Conto (PMDB-SC) e como relator o senador Francisco Dornelles (PP-RJ). A subcomissão produziu um projeto racional e equilibrado, verdadeiramente revolucionário e moderno, que poderia reequilibrar as relações entre estados, municípios e União, reforçando e renovando o pacto federativo.

O trabalho está pronto e seria um excelente ponto de partida para começar a corrigir os rumos do nosso sistema tributário e reequilibrar as forças do pacto federativo.


[1] Não posso deixar de recomendar a leitura de “Fuga do Campo 14”, de Blaine Harden. O jornalista faz um impactante relato da saga verídica de um filho de presos políticos norte-coreanos que nasce e cresce em um campo de concentração e consegue escapar.
[2] http://www.ionline.pt/mundo/austria-vida-nao-era-assim-tao-ma-no-tempo-hitler.
[3] Os Estados do Rio de Janeiro (ADI 4917), São Paulo (ADI 4920) e Espírito Santo (ADI 4916) e a Mesa Diretora da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ADI 4918) ajuizaram ações direta de inconstitucionalidade no último dia 15 de março.
[4] É a seguinte a ementa do acórdão: “Bens da União: (recursos minerais e potenciais hídricos de energia elétrica): participação dos entes federados no produto ou compensação financeira por sua exploração (CF, art. 20, e § 1º): natureza jurídica: constitucionalidade da legislação de regência (L. 7.990/89, arts. 1º e 6º e L. 8.001/90). 1. O tratar-se de prestação pecuniária compulsória instituída por lei não faz necessariamente um tributo da participação nos resultados ou da compensação financeira previstas no art. 20, § 1º, CF, que configuram receita patrimonial. 2. A obrigação instituída na L. 7.990/89, sob o título de "compensação financeira pela exploração de recursos minerais" (CFEM) não corresponde ao modelo constitucional respectivo, que não comportaria, como tal, a sua incidência sobre o faturamento da empresa; não obstante, é constitucional, por amoldar-se à alternativa de "participação no produto da exploração" dos aludidos recursos minerais, igualmente prevista no art. 20, § 1º, da Constituição”. A discussão jurídica no STF, como se vê, envolvia a caracterização da prestação em questão como tributo, conforme era opinião de certos setores da doutrina. Cfr. Alberto Xavier, “Natureza Jurídica e Âmbito de Incidência da Compensação Financeira por Exploração de Recursos Minerais”, in Revista Dialética de Direito Tributário n.º 29, p. 10 e ss.
[5] Cfr. Ainda o AI 453.025 AgRg/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes e o AI 708.398 AgRg/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia.
[6] O STF decidiu serem os royalties receitas originárias dos Estados e Municípios, cabendo a fiscalização da sua aplicação aos Tribunais Estaduais (MS 24.312, Rel. Min. Ellen Gracie).
[7] Cfr. Proposta de Sistema Tributário – Brasília, Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2010.

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