Multiplicidade de fiscalizadores

Procon não pode fiscalizar o que está regulado pela ANS

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13 de março de 2013, 7h07

No último dia 22 de fevereiro, o Procon do Município do Rio de Janeiro fez publicar um comunicado,estabelecendo uma orientação altamente preocupante que diz respeito diretamente à atividade de planos e seguro-saúde. Eis o seu inteiro teor:

“A partir do dia 1º de março, o Procon Carioca, coordenado pela Secretaria Municipal de Defesa do Consumidor, passará a monitorar os prazos das operadoras de planos de saúde para marcação de consultas, exames e internação, determinados pela ANS (Agência Nacional de Saúde).

As empresas que não cumprirem a legislação que estabelece os prazos máximos para atendimento estarão sujeitas a multas previstas no Código de Defesa do Consumidor, que podem chegar a 6 milhões de reais.

O consumidor poderá registrar sua queixa pela Central 1746, da Prefeitura do Rio, e as empresas terão até cinco dias para solucionar o problema. “

Ou seja, supostamente amparada na legislação consumeirista, o Procon Municipal se autoconcedeu um direito de “monitorar os prazos das operadoras de planos de saúde para marcação de consultas, exames e internação, determinadas pela ANS” e, caso descumprida a legislação que “estabelece os prazos máximos para atendimento”, ficarão as operadoras “sujeitas a multas previstas no Código de Defesa do Consumidor, que podem chegar a 6 milhões de reais”.

O tema, aliás, traz novamente à tona um problema bastante delicado,relacionado à multiplicidade de órgãos fiscalizadores e sancionadores no campo das atividades reguladas pelo estado.

Não se desconhece o fato de que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, presente, por exemplo, supostas irregularidades praticadas por empresas de capitalização, se orienta no sentido de que “o Procon possui legitimidade para a aplicação de sanção às seguradoras privadas, em sede de reclamação movida por consumidor versando proposta de subscrição de título de capitalização, uma vez que as mesmas encontram-se na posição de fornecedores” (RMS 24.711/BA, relator o ministro Luiz Fux). Ocorre que, em momento algum, essa jurisprudência permite concluir que haja um cheque em branco a favor dos órgãos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, para impor penalidades a empresas integrantes de mercados regulados.

O que há de ser perquirido, neste particular, é a existência de alguma omissão nas normas de proteção das agências reguladoras, que justifique a atuação dos órgãos de defesa do consumidor. A não ser assim, teremos, sempre e sempre, sem qualquer critério lógico ou razoável, múltiplas atuações por parte dos Procons. Tanto assim o é, que o próprio Decreto 2.181/97, que “dispõe sobre a organização do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC)”, estabelece mecanismo de solução de conflitos de competência entre os órgãos das pessoas jurídicas de direito público[1].

Ilustrando essa necessidade de um espaço a ser preenchido pelos órgãos de defesa do consumidor para que ele possa atuar, foi a decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, no sentido que “nenhum vício se vislumbra na fixação de multa administrativa pelo Procon, em virtude da burla a direito previsto na Lei Consumeirista, afastando-se, ainda, a alegação de bis in idem, já que a Aneel tem a função de fiscalizar o escorreito cumprimento do contrato de concessão de fornecimento de energia elétrica e não as relações entre consumidor e fornecedor.” (Remessa Necessária 0010874-90.2006.8.19.0014, relator o desembargador Reinaldo Alberto Pinto Filho). Aqui é de ser lembrado que, a despeito de uma das funções da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) seja a de articular-se com os órgãos de defesa do consumidor visando a eficácia da proteção e defesa do consumidor de serviços privados de assistência à saúde, no caso, o tema a que alude o Comunicado do Procon Municipal está regulado de forma exaustiva pela ANS.

Nunca é demais perder de perspectiva o princípio básico da razoabilidade e da proporcionalidade no direito sancionador. Não é razoável que, ainda que sob uma perspectiva do direito do consumidor, uma determinada empresa fique sujeita a punições diversas por ter supostamente incorrido na mesmíssima falta.

Na hipótese específica do Comunicado do Procon Municipal (RJ), a Agência Nacional de Saúde Suplementar fez editar a Resolução Normativa 259, de 17 de junho de 2011, prevendo, de forma exaustiva, os prazos a serem observados para os atendimentos de saúde e, mais do que isso, estabelecendo punições severas pelo descumprimento[2]. É absolutamente necessário, imprescindível mesmo, fixar a premissa de que estamos tratando de um serviço de alta relevância pública e não de um serviço qualquer posto à disposição do consumidor. Por isso, entre outras razões, é que a atividade é fortemente regulada e fiscalizada por uma agência reguladora própria. Se a autarquia específica delimita os aspectos técnicos inerentes à atividade e, como é aqui, esgota o tratamento do assunto, o órgão de defesa do consumidor não pode se arvorar no direito de fiscalizar algo que, pela própria agência responsável e a tanto competente, já está mais do que assegurado em favor do consumidor.

O acúmulo de tais penalidades ao longo do tempo certamente irá ocasionar efeito inverso, na medida em que recursos que poderiam ser utilizados no aumento da rede de credenciados são direcionados ao Fundo Municipal de Proteção e Defesa do Consumidor (FUMDC) que, por disposição contida no artigo 8º da lei 5.302 de 2011, será aplicado em programas e serviços relacionados a defesa do consumidor, incluindo, dentre outros, a manutenção e aparelhamento do aludido órgão.

Há ainda que se levar em conta que algumas penalidades aplicadas pela ANS são superiores ao lucro de algumas pequenas e médias operadoras de saúde, colocando em risco sua sobrevivência. Diante disso há que se refletir se a potencialização das punições acarretará a tão sonhada eficiênciado serviço prestado pelas operadoras ou se, ao contrário, acarretará a ruína do sistema, levando grande parte da população de volta aos hospitais públicos.

Por fim, resta a questão: a quem interessa o completo aniquilamento de um setor que tem se mostrado como vital ao país, como é o dos planos de saúde? O sistema público de saúde não comporta o atendimento de milhões de pacientes. Os planos de saúde surgem como a única solução viável para o caos da saúde pública.

É necessário repensar, bem por isso, essa aparente aceitação a uma multiplicidade de órgãos sancionadores em se tratando de atividades reguladas pelo estado. A razoabilidade há de imperar nessa avaliação.


[1]Art. 5º Qualquer entidade ou órgão da Administração Pública, federal, estadual e municipal, destinado à defesa dos interesses e direitos do consumidor, tem, no âmbito de suas respectivas competências, atribuição para apurar e punir infrações a este Decreto e à legislação das relações de consumo.

Parágrafo único. Se instaurado mais de um processo administrativo por pessoas jurídicas de direito público distintas, para apuração de infração decorrente de um mesmo fato imputado ao mesmo fornecedor, eventual conflito de competência será dirimido pelo DPDC, que poderá ouvir a Comissão Nacional Permanente de Defesa do Consumidor – CNPDC, levando sempre em consideração a competência federativa para legislar sobre a respectiva atividade econômica.

[2]Art. 12 O descumprimento do disposto nesta RN sujeitará a operadora às sanções administrativas cabíveis previstas na regulamentação em vigor.

Art. 12-A. Ao constatar o descumprimento reiterado das regras dispostas nesta Resolução Normativa, que possa constituir risco à qualidade ou à continuidade do atendimento à saúde dos beneficiários, a ANS poderá adotar as seguintes medidas:

I – suspensão da comercialização de parte ou de todos os produtos da operadora de planos privados de assistência à saúde; e

II – decretação do regime especial de direção técnica, respeitando o disposto na RN nº 256, de 18 de maio de 2011.

§ 1º Na hipótese de adoção da medida prevista no inciso II, a ANS poderá determinar o afastamento dos dirigentes da operadora, na forma do disposto no § 2º do art. 24, da Lei 9.656, de 3 de junho de 1998.

§ 2º O disposto neste artigo não exclui a aplicação das penalidades cabíveis, conforme previsto no art. 12 da presente resolução.

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