Ideias do Milênio

Brasil e Rússia são parceiros com interesses em comum

Autor

8 de março de 2013, 9h25

Entrevista concedida pelo primeiro-ministro Dmitri Medvedev ao jornalista William Waack, para o programa Milênio, da Globo News. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30.

Reprodução
Se países passassem por crises de identidade, a Rússia seria a primeira candidata ao divã. Ex-super potência, perdeu território, população, importância, peso e influência na turbulenta fase do desaparecimento do império que comandava via União Soviética. Mas os preços do petróleo, a subida da China, o fim do mundo dominado por uma só potência, puseram de novo a Rússia em grande evidência. Muito bem explorada por Vladimir Putin e seu principal homem de confiança Dmitri Medvedev. Ambos trocaram entre si presidência e chefia de governo num país, incrivelmente, ainda em busca de afirmação. Medvedev é a cara, digamos, branda de um regime que adotou um virulento discurso nacionalista, medidas duras, repressivas, contra a oposição, posturas autoritárias e entrou numa nova fase de confronto com potências ocidentais. Em uma entrevista exclusiva para o Milênio, Dmitri Medvedev falou da Rússia do futuro, e dos negócios com o Brasil no presente.

William Waack — O senhor recentemente escreveu um artigo num jornal internacional de muita repercussão, o “Financial Times”, dizendo que a Rússia devia olhar para o leste, para o oceano Pacífico, para a Ásia. Como é que o senhor chegou ao Brasil, fazendo o contrário do Colombo? O senhor viajou pra leste e chegou até o Brasil? Ou o que o fez olhar para oeste, para o Brasil?
Dmitri Medvedev — O planeta é redondo. Então, mesmo se eu me mover na direção oriental uma hora ou outra eu vou chegar no Brasil. Como um dos seus governantes disse uma vez, o Brasil é uma Rússia tropical. Somos países muito parecidos, temos uma história longa e complexa, uma composição étnica e confessional bastante diversa, um território muito grande com diversos níveis e condições de vida e, por outro lado, com certos aspectos muito parecidos. Somos dois grandes mercados em desenvolvimento, naquilo que se chama de emerging market, em inglês. Hoje, dependendo de como nossas economias se desenvolverão, isso influenciará o mundo inteiro. Apesar de termos nos tornado participantes ativos da economia mundial, há relativamente pouco tempo, o Brasil um pouco antes, a Rússia só entrou na OMC no ano passado. Mas eu creio que somos parceiros muito naturais sem mencionar o fato dos nossos povos e das nossas pessoas sentirem simpatias mútuas tradicionalmente desde sempre, apesar da distância muito grande entre o Brasil e a Rússia

William Waack — Em que Brasil e Rússia podem se ajudar no sistema internacional?
Dmitri Medvedev — Nunca existem potências militares eternas. Aqueles que acham que receberam seu lugar ao sol para sempre se enganam. A Rússia realmente tem uma história rica. Em diferentes períodos, ocupou posições de muita responsabilidade no sistema mundial, hoje também, mas todos devemos provar que somos capazes de competir. Nós, o Brasil, a China, todos. Quando os estados param de fazer isso, acabam perdendo as suas próprias posições. Por isso eu creio que o objetivo da Rússia hoje consiste em não pensar sobre nossas posições geopolíticas antigas, mas pensar na atualidade, ser um Estado moderno. Começamos a caminhar no sentido de criar um mercado aberto, de economia aberta, só há 20 anos, então temos ainda muitos desafios. Como podemos ajudar uns aos outros? Na minha opinião, além da parceria estratégica e econômica que existem hoje – temos vários projetos interessantes em curso – acho que temos posições muito parecidas sobre várias questões. São posições que nós já colaboramos durante muito tempo. Brasil e Rússia são países grandes geograficamente, com populações grandes, as economias são grandes, mas acho que os dois países concordam que o sistema de divisão de trabalho, o sistema econômico internacional, é injusto. Nos últimos anos, nós nos dedicamos – e eu cuidei disso particularmente com meus colegas e com o presidente Lula e com a presidente Dilma Rousseff – para conseguir a alteração das cotas no FMI, porque há muito tempo o FMI não contava com a nossa posição e nós tomamos uma posição no sentido de exigir uma distribuição mais justa no FMI. Acho que isso é um dos elementos de cooperação nas condições atuais. Existem vários problemas políticos que necessitam da consolidação de nossos esforços. Posso mencionar, por exemplo, o BRIC, uma plataforma de bastante autoridade, onde nós com nossos parceiros, com China, Índia e África do Sul discutimos os mais diversos problemas econômicos, elaboramos abordagens conjuntas e tomamos posições conjuntas e consolidadas. Isso, na verdade, é um peso na economia mundial. Muitas pessoas moram em nossos países. Creio que temos muitos pontos de interseção hoje em dia.

William Waack — Eu gostaria de destacar um dos pontos que chamou a atenção na imprensa internacional nas últimas semanas, que se refere a aspectos militares e de defesa. O Brasil recentemente enviou à Rússia o chefe de estado maior, e manifestou abertamente interesse na compra de sistemas de armamento na Rússia. Especificamente nesse ponto, o que a Rússia está disposta a oferecer ao Brasil?
Dmitri Medvedev — Estamos com um relacionamento bem avançado em áreas como a cooperação técnico-militar e se os nossos parceiros brasileiros trouxerem esse assunto, eu já discuti isso com a presidente e com o vice-presidente, vamos pensar em como ajudar os nossos parceiros. Realmente somos um dos principais países no mercado de armamentos. Nós temos bom armamento, moderno, com bom preço. Então estamos prontos para desenvolver cooperação nessa área.

William Waack — Uma pequena pergunta ainda nesse sentido e depois eu gostaria de falar de outros temas. O Brasil insiste muito na transferência de tecnologia americana militar e no treinamento. A Rússia está disposta a fornecer transferência de tecnologia bélico?
Dmitri Medvedev — Acho que as coisas estão progredindo neste sentido. Se nós desenvolvermos nossa cooperação de uma forma plena, em qualquer área, inclusive na área técnico-militar, nós estamos prontos para compartilhar as tecnologias, mas isso tem que ser um movimento recíproco, com vantagens para todo mundo. Não tem sentido entregar as tecnologias e perder dinheiro, mas se forem joint-ventures que trarão lucro tanto para a Rússia quanto para o Brasil e como resultado do uso conjunto de tecnologias recebermos algum dinheiro. Isso é normal.

William Waack — O senhor fala muito de economia, é um dos assuntos que o senhor se refere com muita propriedade, a imprensa internacional, particularmente a imprensa britânica diz que o senhor é a cara da reforma econômica da Rússia. O seu rosto, a sua fotografia, é a fotografia do reformismo. Como o senhor mesmo disse anteriormente, o senhor está empenhado em modernizar a economia da Rússia. A imprensa internacional hoje, com ironia, diz que se vê pouco a sua fotografia. Em que medida o senhor esbarrou em problemas políticos nas reformas econômicas que o senhor pretende?
Dmitri Medvedev — Quanto à quantidade de fotografias, acho difícil dizer alguma coisa. Não penso que é a quantidade de fotos que mostra a eficiência de um líder ou de um político, mas eu acho que tenho o suficiente. Talvez preferisse que houvesse menos fotografias minhas. Quanto às minhas convicções, elas continuam as mesmas. Eu realmente acho que a modernização e a reforma da nossa economia são necessárias para nós. Além disso, a modernização, mais do que isso, as relações econômicas internacionais também precisam ser modernizadas. As reformas do FMI ou do Banco Mundial estão ligadas a essa ideia de modernização. Tudo tem que ser alterado porque as condições econômicas estão em mudança o tempo inteiro. Nós, na Rússia, precisamos atingir um outro nível de estrutura econômica. Sim, temos um país rico com muitos recursos naturais, gás, petróleo, uma boa educação, temos especialistas de alto nível, mas, infelizmente, em algum momento, em algumas áreas, perdemos o papel de líder, de liderança. Em algumas áreas continuamos à frente: indústria espacial, indústria atômica, mas em outros setores não é assim. Temos que preencher essas lacunas que surgiram, diminuir as distâncias com os líderes e poder ser competitivos. Competitividade é um dos motores da economia moderna. Por isso falo da necessidade de modernização. Não vem do desejo de mudar tudo simplesmente por não ter o que fazer, mas isso é começar um processo natural em que o movimento é mais importante do que o objetivo. Temos que chegar a um nível alto de competitividade em vários setores e essa é a ideia da modernização que eu tenho em mente e cuido disso tanto agora quanto quando era presidente do país.

William Waack — Nós temos a impressão, olhando a Rússia de fora, de um excesso de dependência na exportação de energia, tanto o gás quanto o petróleo. Que muitas críticas que se fazem ao sistema econômico russo se dão ao excesso de burocracia e de interferência de instâncias políticas quanto à atividade de investidores. Como o senhor comenta essas críticas?
Dmitri Medvedev — Essa crítica é justa em muitos sentidos, mas, realmente, temos uma grande dependência da exportação de matérias-primas, inclusive de petróleo e gás. Não é uma situação crítica, mas é muito complexa para nós. Hoje em dia, um pouco menos de 50% do orçamento estatal estão baseados na venda de gás e petróleo. Isso é uma percentagem muito alta. Se lembrarmos o que aconteceu em 2008, o preço do petróleo caiu, começamos a sofrer problemas imediatamente com o nosso orçamento e precisamos fazer cortes em diversos setores. Nós não fizemos isso com as garantias sociais, mas acabamos fechando vários programas. Precisamos, realmente, abandonar essa dependência e chegar a um nível em que apenas 25% do orçamento sejam formados por gás e petróleo. Acho que isso seria um bom nível de diversificação da economia russa. Quanto à burocracia, o que eu posso dizer? A burocracia não é só um problema nosso, mas temos realmente dificuldades. Infelizmente o nível da burocracia para tomada de decisões é muito alta, por isso temos que adotar medidas extraordinárias. Por exemplo, temos alguns guias especiais para empresários sobre como eles devem lidar com a alfândega, como tomar decisões corretas na área de pequeno e médio negócio. Em outras palavras, é um problema que existe, mas não quer dizer que não possa ser resolvido. Nos últimos anos, realmente, isso diminui um pouco, todos reconhecem isso, mas continua um problema sério. Aqueles que mais criticam, eu diria que têm razão em muitos aspectos, mas isso não é razão para ficar magoado e dizer que não gostamos de vocês. Quando alguém te critica, você tem que pensar e tentar mudar a si mesmo e não tentar brigar com aquele que te critica. Essa é a nossa posição.

William Waack — O que o senhor diria pro empresário brasileiro interessado em investir, por exemplo, na sua economia diante do noticiário da imprensa americana e britânica em especial. Por exemplo, uma lei aprovada nos Estados Unidos chamada Act Magnitsky. O senhor acha que há uma ofensiva que torna difícil fazer negócios com a Rússia por uma questão como essa que o senhor mesmo disse que precisava de uma investigação profunda ou esta é uma questão russa que não interessa a estrangeiros?
Dmitri Medvedev — Eu vou começar pelo que eu diria aos empresários brasileiros. Venham e trabalhem no mercado russo, ficaremos felizes em receber vocês. Temos um mercado grande, assim como vocês. Não precisamos apenas vender produtos um para o outro. Hoje em dia vendemos fertilizantes, vocês mandam carne bovina e suína, mas, sim, precisamos encontrar outras formas de cooperação, investir um no outro. Nós falamos muito — e o Brasil também fala muito disso — sobre o que podemos vender um para o outro. Existem as condições para produtos agrícolas serem vendidos para a Rússia. Temos que pensar, mudar esse tipo de relacionamento. O Brasil é uma potência agrícola. A Rússia também é uma potência agrícola. A princípio, nós poderíamos viver um sem o outro. Nós dois conseguimos alimentar outros países inclusive. Nós temos muito interesse nas suas tecnologias agropecuárias, porque a pecuária no Brasil está em altíssimo nível. Por que não criar empresas na Rússia que seriam do Brasil e da Rússia, joint-ventures para utilização de novas tecnologias na pecuária ou na agricultura? Isso poderia proporcionar lucros para os dois países e seria um nível mais alto de cooperação, mais do que uma venda simples de produtos que hoje são necessários e amanhã não. Quanto aos outros países, eu poderia nem falar sobre isso, mas já que essa pergunta surgiu, eu vou respondê-la. Eu creio que isso seja algo altamente politizado e, como se diz na Rússia, chupado do dedo, tirado da cabeça. Um documento antissoviético existia nos Estados Unidos e foi substituído por um documento de caráter antirrusso. Eu não acredito nesse documento. Não tem nenhum fundamento. Infelizmente, alguns oportunistas que ficam girando em torno desse tema usam uma situação bastante complexa de determinada pessoa para, digamos, atingir seus objetivos comerciais e políticos. Creio que para as relações entre Rússia e Brasil esse assunto não tem nenhuma relevância, mas isso torna nossos relacionamentos com os Estados Unidos um pouco mais difíceis. Não gostamos disso, mas termos que responder de alguma forma.

William Waack — Existe, na sua opinião, uma nova Guerra Fria?
Dmitri Medvedev — Não. Claro que não. Não há nenhuma Guerra Fria nem condições para isso. Os relacionamentos entre os países volta e meia se esquentam. Isso também depende das administrações no poder, da posição dos legisladores de cada país. Sobre o documento que você mencionou não é só uma posição do presidente Obama, mas sim uma posição do Senado norte-americano. Isso é um outro tipo de poder, é o poder legislativo. Tudo está entrelaçado nessa vida. Também temos situações na Rússia onde a posição do poder legislativo e executivo não converge. Isso acontece também aqui, é algo normal. Mas creio que não existem fundamentos suficientes para uma Guerra Fria. Pelo contrário, hoje em dia conseguimos solucionar vários desafios em conjunto que não resolvíamos.

William Waack — Como o senhor mesmo disse no começo desta entrevista, o Brasil vê a Rússia com imensa simpatia. É uma tradição histórica dos brasileiros olhar pra sociedade russa e pra cultura russa com imensa admiração e curiosidade. Eu fiquei muito satisfeito com a sua imagem do Brasil como uma Rússia tropical que o senhor adaptou de um presidente brasileiro. Como é que o senhor explicaria pra sua audiência brasileira o momento atual da Rússia? Os brasileiros viram com certa surpresa um conjunto punk de mulheres ir para a cadeia por algo que no Brasil ninguém iria pra cadeia. Da mesma maneira, os brasileiros viram as tentativas no parlamento russo de proibir legislação que possa incitar o homossexualismo, qualquer que seja ou que se entenda disso. A Rússia vive de novo uma fase muito autoritária? O que o senhor diria pro público brasileiro?
Dmitri Medvedev — Eu diria o seguinte: prezados amigos brasileiros, não é possível julgar os acontecimentos da Rússia somente pelo jornal, vendo uma reportagem na TV ou vendo a internet. Há uma grande distância entre nós, mas vocês podem vir para a Rússia ver o que está acontecendo, quais são as tendências, se é possível falar sobre qualquer assunto e se existe ou não problemas com liberdade de expressão. Acho que vocês têm que visitar e conhecer o país. Acho que o mundo moderno é algo tão fantástico que com vontade e um nível mínimo de dinheiro dá para conhecer tudo com os próprios olhos.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!