Contribuições e taxas

Governo desenvolverá cinema à custa dos celulares

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6 de março de 2013, 15h00

O Supremo Tribunal Federal concluiu, na última semana, a audiência pública sobre o marco regulatório da televisão por assinatura. A tônica central envolvia a proporcionalidade da sistemática de cotas, como meio de potencializar os benefícios dos investimentos na Indústria Cinematográfica Nacional, garantidos pela Lei 12.485/11.

Contudo, não se discutiu, por não ser objeto das ADIs 4.679, 4.747 e 4.756, um ponto importante: de onde vem o dinheiro para esses importantes investimentos do Governo?

A pista é dada já em 1999, pelo voto vencido do Deputado Maluly Netto no Projeto de Lei 3.939/97, que denunciava: “O forte ruído que o setor tem causado no mercado deve ter levado o Ilustre Relator ao equívoco de que se trata do novo "Eldorado" e que por isso o setor das telecomunicações deveria dar uma contribuição adicional à sociedade”[1].

Sua Excelência discutia a criação da contribuição ao Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações (Funttel) — a lei orçamentária de 2012 contingenciou 79% dos R$ 250.489.760 estimados para o fundo[2] — e se referia à contribuição para o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) — nesse caso, o contingencimento foi 99,8% dos R$ 1,5 bilhão estimados[3] — e às taxas que inflam o Fundo de Fiscalização das Telecomunicações (Fistel), que é o fundo que nos interessa.

O Fistel se destina a cobrir as despesas da Anatel com fiscalização e tem 11 fontes de receitas, dentre elas as taxas de fiscalização das estações de telecomunicação, que, curiosamente, arrecadam mais de 10 vezes o orçamento da Anatel[4]. Mais de 90% desse valor é pago pelas empresas de telefonia móvel[5], e uma agressiva maioria disso vem das estações móveis do Serviço Móvel Pessoal (generalizando: os celulares), cuja quantidade está em explosiva ascensão há 14 anos.

O parlamento conhece esses números, e acha que é inconcebível cobrar uma taxa para gerar superávit primário! Entende, ao contrário, que essa receita deve ser vinculada à educação básica (PL 6.438/02), desenvolvimento do setor espacial (PL 3.151/04), construção e aparelhamento de estabelecimentos penitenciários (PL 1.993/07 e PL 1.808/07), proteção à criança e ao adolescente (PLS 494/08), educação no trânsito (PL 2.482/11), dentre muitos outros.

Por essa razão, quando chegou à Câmara dos Deputados a medida provisória da televisão pública (MP 398/07), a conclusão sobre a forma de custeio foi inevitável:

“(…) o que faremos será transferir parte do que é recolhido pelo Fundo de Fiscalização das Telecomunicações – pelo modelo adotado pelo Governo, em boa ou má parte, o Fistel é esterilizado para fazer superávit primário – para a comunicação pública (…). Tirar dinheiro do superávit primário para colocar 150 milhões de mais de 1 bilhão e 500 mil e aplicar esse montante em comunicação pública, educação, informação e cultura é um dever patriótico de todos nós.”[6]

A proposta, porém, não era compatível com o propósito institucional da taxa. Por isso, criou-se uma “contribuição” com os mesmos aspectos material[7], quantitativo[8], temporal, espacial e pessoal (sim, é a Anatel que recolhe a “contribuição”) da taxa, que foi simultaneamente reduzida:

Sendo, assim, procurei instituir uma contribuição não prevista no texto da MP 398/07 destinada ao fomento da radiodifusão pública. Na prática, a nova contribuição terá como valor dez por cento dos valores da Taxa de Fiscalização de Funcionamento (TFF), devida ao Fistel (…), alteramos o artigo 8º da Lei do Fistel, que trata da TFF, reduzindo seus valores para 45%, ao invés de 50%, dos fixados para a Taxa de Fiscalização de Instalação.[9]

O próximo passo foi contornar o fato de que os celulares não têm relação com a radiodifusão pública:

Para evitar eventuais questionamentos sobre a aplicação dos recursos da contribuição para o fomento da radiodifusão pública, que será devida por todos os prestadores de serviços de telecomunicações, mas cuja arrecadação deve ser aplicada apenas na radiodifusão pública, entendo conveniente alterar a redação do caput do artigo 31 de forma a ampliar os objetivos a serem alcançados com a instituição da referida contribuição (…). A palavra que acrescentamos é ferramenta que permite a chegada, a infra‑estrutura. Foi essa a alteração que fiz. Diz o artigo 31 anterior que fica instituída a Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública, com o objetivo de propiciar meios para a ampliação e melhoria dos serviços de radiodifusão púbica, de acordo com os princípios e objetivos elencados pela lei. Na nova redação, dizemos que fica instituída a Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública, com o objetivo de propiciar meios para a melhoria dos serviços de radiodifusão pública e para — esse é o acréscimo que fazemos — ampliação da sua penetração, mediante os serviços de telecomunicações. (…) Se observarmos,veremos que nenhuma das redações muda o objeto.”[10]

Obviamente houve reações na Câmara dos Deputados — “O importante é que se cria um novo tributo hoje, para o qual o povo diz “não”, e que vai estar pronto para sofrer majorações todos os dias, conforme o Governo de plantão quiser”[11] —, mas o projeto foi aprovado.

O Senado Federal concordou com o tributo, porque, “na prática, a nova contribuição terá como valor dez por cento dos valores da Taxa de Fiscalização de Funcionamento (TFF), devida ao Fistel (…). Quanto ao meio utilizado para a instituição da mencionada contribuição, já está sedimentado que a criação de nova contribuição de intervenção no domínio econômico não exige lei complementar, razão pela qual a utilização de medida provisória revela-se viável (artigo 62, § 1º, III, da Constituição Federal)[12].

Firmado o precedente, bastou repetir a dose, por ocasião da Lei 12.485/11:

A proposta de nosso Substitutivo é redirecionar parte dos recursos que seriam destinados originariamente para o Fistel, devido pelas empresas de radiodifusão e de telecomunicações, para o Fundo Nacional da Cultura (FNC). Ressalte-se, inclusive, que esse artifício já é utilizado pela Lei do Audiovisual (…). Cabe assinalar que, anteriormente à edição da Lei 11.652, de 7 de abril de 2008 (originária da Medida Provisória que criou a TV Pública), a TFF era fixada em 50% da Taxa de Fiscalização de Instalação. Pela MP da TV Pública, esse percentual foi alterado para 45%. O Substitutivo propõe redução desse índice para 33% e, na Tabela constante do Anexo A deste Projeto, os valores referentes à Condecine são ajustados de modo a propiciar arrecadação de recursos para a atividade de audiovisual em montante igual ao valor subtraído do Fistel.”[13]


E qual a relação entre os celulares e a indústria cinematográfica? O artigo 26 dessa lei responde, ao esclarecer que a contribuição é devida em razão da “prestação de serviços que se utilizem de meios que possam, efetiva ou potencialmente, distribuir conteúdos audiovisuais”! Ora, é até difícil imaginar um tipo de serviço que não se enquadre nessa definição.

Concluo a narrativa explicando que, antes mesmo dessa lei, o Tribunal de Contas da União já havia verificado a exorbitância das taxas e recomendado sua redução[14], mas, caso isso ocorra, não haverá efeito prático, porque é provável que, para cada redução haja a criação de uma nova contribuição.

Assim, as contribuições do artigo 149 da Constituição Federal desmontam a racionalidade do sistema tributário, porque canalizam a demanda reprimida de tributos inconstitucionais — como uma caixa de água hermética, na qual se faz furos —, cumprindo a previsão feita pelo Ministro Sepúlveda Pertence[15] no Recurso Extraordinário (RE) 265.721, quando reverenciava a posição solitária do ministro Marco Aurélio.

Explico: quando a Corte Suprema diz que “as Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) podem ser criadas por lei ordinária e (…) não é necessária a vinculação entre a receita da contribuição e o benefício proporcionado[16], o que chega do outro lado da linha é que, onde houver um agente econômico, basta fazer uma “intervenção no domínio econômico” para que ele financie a televisão pública, a indústria cinematográfica, ou qualquer outra coisa que não faria espontaneamente, já que a doação não é uma das “leis” da economia.

Quando a autoridade policial faz uma barreira com cones, as pessoas entendem muito rápido que não se pode chutar esses cones ou simplesmente passar entre eles. O importante ali é que há uma mensagem, cujo funtor está muito claro: “proibido”.

Quando é a Constituição Federal que impõe barreiras, os Poderes Legislativo e Executivo nem sempre têm essa preocupação institucional, e aí o Poder Judiciário precisa consolidar a mensagem e reprimir os abusos, ora afirmando que, “o que a Constituição proíbe obter diretamente, não se pode obter por meios transversos”[17], ora que “bola de futebol não é segurança nacional. Batom de moça não é segurança nacional, cigarro de maconha não é segurança nacional”[18].

Acontece que não se pode aguardar que o legislador declare de forma tão explícita que “batom de moça é intervenção no domínio econômico”, como nos casos narrados, sobretudo porque a nossa experiência democrática pós-ditadura tem provado que Maquiavel estava errado: o mal não deve ser feito de uma vez, mas em doses tão homeopáticas que a preocupação das pessoas em conseguir pagar as contas iniba as pretensões de sair do cotidiano e tentar fazer alguma coisa.

Serei mais específico: no nosso Direito Público, a premissa é “quem tem o poder tende a abusar dele”, e a técnica é o estabelecimento de restrições que inibam caminhos do estado (às vezes justos), dentro do que é suportável para prevenir os abusos, como medida de segurança para todos.

Exemplifico: houve época em que uma taxa cuja base de cálculo mensurasse capacidade econômica infalivelmente seria um imposto disfarçado. Posteriormente, esse deixou de ser um indicador tão bom, e a edição da Súmula Vinculante 29 e a prevalência do critério da razoável equivalência são uma consequência da necessidade de um critério mais ligado ao “não-confisco”.

Nas contribuições do artigo 149 da Constituição Federal, o problema é que ainda não houve a consolidação de um critério bom ou ruim, forte ou fraco, mas apenas desconstrução daqueles sugeridos pela doutrina (tratarei deles em outra oportunidade), o que tem gerado uma carência nesse sentido. A consequência é que, o que a Constituição impede de fazer diretamente, pode ser feito por meio dessas contribuições, e então, ficamos reféns de maiorias eventuais no parlamento, aguardando para saber para quem elas vão apontar o dedo.

Creio que respondi a pergunta inicial: hoje as contribuições são o segredo da multiplicação dos pães e, no caso particular, da transformação da água em vinho. Esses milagres não têm se abalado com os estudos sobre a desproporcionalidade e nocividade da atual tributação sobre as telecomunicações, reiteradamente apresentados em audiências públicas[19], e não creio que o Poder Legislativo esteja disposto a convocar referendos em matéria tributária. Portanto, se o Supremo Tribunal Federal lavar as mãos, é a sociedade que será crucificada, porque já não se pode recorrer a mais ninguém. Nem ao Papa. 


[1] Diário da Câmara dos Deputados de 28/09/1999, páginas 45339 e 45340.

[2] Trata-se do Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações – Funttel, instituído pela Lei nº 10.052/00. O cálculo mencionado é o seguinte: R$ 197.936.760 / R$ 250.489.760 = 0,970. Os dados encontram-se no volume IV da Lei 12.595, página 581.

[3] Trata-se do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações, criado pela Lei 9.998/00. O cálculo mencionado é o seguinte: R$ 1.584.666.810 / R$ 1.587.266.810 = 0,9983.  Os dados encontram-se no volume IV da Lei 12.595, página 579.

[4] A título de exemplo, em 2012, a arrecadação com as taxas foi de R$ 3.022.075.721,72 e as despesas liquidadas da ANATEL somaram R$ 285.072.258,23. Os dados necessários ao cotejo estão registrados no SIAFI e podem ser obtidos nos seguintes endereços:http://www3.tesouro.gov.br/estatistica/est_contabil.asp e

http://www3.transparencia.gov.br/TransparenciaPublica/jsp/execucao/execucaoPorProgGoverno.jsf?consulta2=1&CodigoOrgao=41231

[5] Esse dado foi apresentado na Audiência Pública n°: 1457/08, realizada pela Câmara dos Deputados em  06/11/2008. A informação é do Sr.Ércio Alberto Zilli. As notas taquigráficas estão disponíveis no seguinte endereço: http://www2.camara.leg.br/deputados/discursos-e-notas-taquigraficas .

[6] (Diário da Câmara dos Deputados de 27/02/2008, página 05416)


[7]  Nem os dispositivos que preveem isenção e tributação provisória das modalidades de serviços de telecomunicações ainda não previstas escaparam. Compare-se os arts. 10 e da Lei 5.070/66 com os §§ 4º e 6º do art. 32 da Lei 11.652/08:

Lei 5.070/66

Art. 10. Na ocorrência de novas modalidades de serviços de telecomunicações, sujeitas a taxas de fiscalização não estabelecidas nesta Lei, será aplicada em caráter provisório a taxa do item 1 da Tabela Anexa, até que a lei fixe seu valor.

(…)

Art. 13. São isentos do pagamento das taxas do FISTEL a Agência Nacional de Telecomunicações, as Forças Armadas, a Polícia Federal, as Polícias Militares, a Polícia Rodoviária Federal, as Polícias Civis e os Corpos de Bombeiros Militares.

Lei 11.652/08

Art. 32, § 4o  São isentos do pagamento da Contribuição o órgão regulador das telecomunicações, as Forças Armadas, a Polícia Federal, as Polícias Militares, a Polícia Rodoviária Federal, as Polícias Civis e os Corpos de Bombeiros Militares.

(…)§ 6o – Na ocorrência de nova modalidade de serviço de telecomunicações, será devido pela prestadora, em caráter provisório, o valor da contribuição prevista no item 1 da Tabela constante do Anexo desta Lei, até que lei fixe seu valor.”

[8] A TFF incidia à alíquota de 50% sobre o valor da TFI. A Lei 11.652/08 reduziu esse percentual para 45 %, e criou contribuição no valor de 5% sobre a TFI. Não houve alteração no valor recolhido. Apenas parte do que era taxa se tornou contribuição.

[9] Parecer proferido em sessão plenária da Câmara dos Deputados. As transcrições foram retiradas do Diário da Câmara dos Deputados de 15/02/2008, página 2309.

[10] Aditivo ao parecer e esclarecimentos do Relator, proferidos no Plenário da Câmara dos Deputados. As transcrições foram retiradas dos Diário da Câmara dos Deputados de 20/02/2008, sessão de 19/02/2008, p. 3123/3124.

[11] Trecho da votação do art. 31 do Projeto de Conversão da Medida Provisória. Transcrições retiradas do Diário da Câmara dos Deputados de 27/02/2008, página 5417.

[12] Parecer nº 173/2008, exposto no Plenário do Senado Federal. Transcrições retiradas do Diário do Senado Federal de 12/03/2008, página 5273.

[13] (Parecer do Deputado Paulo Henrique Lustosa, aprovado pela Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática).

[14] Transcrevo o dispositivo do acórdão:

ACORDAM os Ministros do Tribunal, reunidos em Sessão do Plenário, diante das razões expostas pelo Relator, em (…)

9.6. Recomendar à Casa Civil que (…)

9.6.2. adote providências no sentido de promover o incremento das receitas próprias das agências reguladoras deficitárias e, no caso da Aneel e Anatel, superavitárias, realize análises acerca dos valores das taxas de fiscalização praticadas e das sanções impostas, de modo a que as taxas de fiscalização sejam diminuídas para não onerar em demasia aqueles que pagam para ser fiscalizados, mantendo-se o caráter punitivo das sanções impostas no exercício das suas atividades regulatórias;” (TCU, Processo nº TC 012.693/2009-9, Acórdão nº 2661/2011, Plenário, sessão de 24/08/2011)

[15]E sigo convencido da necessidade de mais detida reflexão sobre o tema, a evitar que a definição extremamente flexível da contribuição de intervenção no domínio econômico, da qual se partiu, se converta em desaguadouro cômodo às derramas imaginadas pela voracidade fiscal da União, à custa da dinamitação do sistema tributário da Federação.” (Voto do Ministro Relator Sepúlveda Pertence no RE 265721, Primeira Turma, publicação em 09/06/2000)

[16] RE 546.901/RJ, Rel. Min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, publicado em 21/02/2011.

[17] Voto vencedor do Min. Sepúlveda Pertence na ADI 2.984-MC/DF, DJ: 04/09/2003.

[18] RE 62731, Relator  Ministro ALIOMAR BALEEIRO, TRIBUNAL PLENO, publicado em 28/06/1968.

[19] Mesmo a recente Lei 12.715/12 não representou efetiva redução da tributação sobre os celulares, mas apenas uma forma de possibilitar o cumprimento de projetos específicos do Governo.

Quanto às audiências públicas, a Câmara dos Deputados fornece as notas taquigráficas no seguinte endereço eletrônico (Recomendo a utilização do termo “FISTEL” como critério de pesquisa): http://www2.camara.leg.br/deputados/discursos-e-notas-taquigraficas.

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