Constituição e Poder

O juiz entre o herói e o burocrata

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4 de março de 2013, 21h32

Spacca
O brasileiro adora heróis e detesta o Estado, especialmente, os tributos, processos e atores que ele evoca. Ao julgamento do homem comum, estimulado pela grande mídia, também o Poder Judiciário revela-se excessivamente pesado, traduzindo procedimentos desnecessários, no mais das vezes, compostos de prazos e desarrazoadas filigranas normativas. Segundo esse modo de ver, não admira, pois, que não consiga perseguir e punir adequadamente os culpados, pois se desvia dos seus mais elevados fins para enredar-se em meios e caminhos de formalismos intermináveis. Heróis, ao contrário, são rápidos e desenvoltos; buscando realizar a justiça, não mantêm compromissos subalternos com procedimentos inúteis e dispensáveis; promovem os fins sociais, sem se deixar emaranhar em exigências processuais descabidas; conhecem e punem os culpados, pois não sucumbem a regras e princípios de tenebrosa interpretação.

Infelizmente, para minha própria sorte, seja como membro do Ministério Público, seja como magistrado, devo confessar que acabei optando pelo modelo mais modesto de agente público — aquele sem poderes mágicos. Ao aplicar a lei, o magistrado, pelo menos como o imagino — não o herói, mas o servidor público — deve ser guiado mais por normas e procedimentos prévios do que por surpresas e heroísmos inerentes às soluções ad hoc.

O magistrado e mesmo o membro do Ministério Público — o “moderno burocrata” de Weber — não podem permitir que sua ânsia de Justiça — vingança ou benevolência — tenha preferência sobre o seu compromisso permanente com o devido processo legal e o primado do Direito (rule of law), que, sabe-se, é a supremacia dos poderes ordinários da lei sobre os poderes arbitrários e extraordinários do agente público. Assim, o juiz tem que admitir que nem sempre uma interpretação honesta da Lei, ou do sistema de Direito, alcançará a resposta que a chamada opinião pública ou os diversos e muitas vezes contraditórios ideais de justiça gostariam de encontrar.

Segundo o meu modo de ver, portanto, a maioria dos magistrados e dos servidores públicos brasileiros, se tudo funciona bem no Estado de Direito, infelizmente, jamais poderão se dar o luxo de ser chamados de “Heróis”. Sem floreios de estilo, para aqueles que buscam Heróis, nós, os magistrados, não devemos passar de simples e previsíveis (eu quase disse “entediantes”) servidores do Estado, pois, para quem clama por heróis, acordamos todos os dias para uma das mais enfadonhas atividades a que se pode dedicar um ser humano, isto é, atender a uma vontade que não é sua, consistente, precisamente, em aplicar normas e regras predispostas por outros órgãos do Estado.

Como profetizara Weber, no moderno Estado Democrático e nas sociedades contemporâneas, desencantando-se o mundo dos poderes mágicos de líderes e heróis que falavam diretamente com Deus, o compromisso da burocracia e do servidor público é, antes e sobretudo, com a mais ordinária “previsibilidade” de condutas humanas, abstrata e antecipadamente, impostas por normas legais. Nesse quadro, só resta ao Judiciário e aos seus magistrados uma permanente confirmação e obediência ao princípio da separação de poderes, segundo o qual juízes aceitam aplicar normas predispostas por outros poderes e, com isso, eximem-se de fazer justiça pessoal e a qualquer preço.

Contudo, ao contrário do que parece, com isso, já se faz muito.

Todos conhecem a terrível visão conformada por Thomas Hobbes de uma sociedade sem a segurança e previsibilidade do Estado e do Direito. Em célebre analogia, imaginava ele que tudo o que enxergamos em tempo de guerra, “em que todo homem é inimigo de todo homem”, teria validade e consequência para a época em que os homens vivam “sem outra segurança senão aquela que pode ser oferecida por sua própria força e invenção” (own strength, and their own invention). Na apocalíptica visão hobbesiana, diante da ausência do Estado e da segurança de suas leis, o homem se converteria em lobo do homem (Homo homini lupus).

Em sua obra Legality, Scott J. Shapiro, entretanto, expõe algumas críticas ao modelo hobbesiano[1]. Segundo o autor, estudos antropológicos demonstrariam que o homem, há cerca de 12 mil anos, foi capaz de viver em pequenos bandos, caçando e coletando alimentos, sem carecer de algo como o que hoje chamamos de Direito. Sistemas jurídicos seriam, então, uma descoberta humana relativamente recente. Não obstante a ausência de um sistema normativo minimamente complexo, o ser humano vivia em harmonia uns com os outros, pelo menos dentro de pequenos bandos, cuidando de suas famílias e protegendo-se uns aos outros contra a natureza e contra outros predadores. Sua economia seria à base de caça e de coleta de alimentos (hunting and gathering)[2].

De qualquer sorte, mesmo discordando de Hobbes quanto a necessária “guerra de todos contra todos” em que se transformaria a sociedade na ausência de um sistema jurídico ou do Estado, Shapiro irá concordar com Hobbes quando afirma que, num ambiente tão hostil como aquele, ainda que de pequenos bandos, não haveria, lugar para o comércio ou a indústria, “pois o lucro ou produto de seu trabalho seria absolutamente incerto”. Também não haveria, como previra Hobbes, como cultivar a terra (Culture of the Earth), “nem se poderia pensar em navegação nem na utilização das mercadorias que são trazidas pelo mar”. Por outro lado, sem a segurança e a previsibilidade do Direito e do Estado, não se poderia pensar em construções confortáveis, nem como produzir instrumentos de que necessitamos para mover e remover as coisas que exigem grande força. Não haveria conhecimento na face da terra nem como medir o tempo (no account of Time). “Nem artes, nem letras, nem sociedade”. E o que é pior, acrescentava Hobbes, num tempo sem a segurança do Direito e do Estado, o ser humano viveria “em constante temor e sob o perigo permanente de uma morte violenta”. E a vida do homem seria “solitária, pobre, detestável, brutal e curta” (solitary, poore, nasty, brutish, and short).

Não deixa, pois, de ser irônico que a sociedade venha cobrar do magistrado que ele seja algo mais que um burocrata vocacionado a aplicar normas predispostas (no melhor sentido Weberiano), para se tornar um Herói autorizado a realizar o seu próprio senso de justiça.

De fato, o Estado moderno surge precisamente de uma interminável luta do ser humano para impor aos homens públicos a submissão a uma entediante tarefa de simplesmente aplicar normas legalmente predispostas por outros órgãos do Estado. É certo que nem sempre a norma abstrata considerará o desejo momentâneo de justiça ou as circunstâncias especialíssimas do caso concreto. Mas a justiça dos homens, evidentemente, não pode se sustentar em casuísticos presságios e oráculos de magistrados convertidos em Heróis ou Profetas.

Por tudo isso, o magistrado sob a égide de uma Constituição democrática não terá vergonha de renunciar ao desejo absolutamente humano de promover o seu senso de Justiça em cada processo posto à sua consideração, para submeter-se a burocrática tarefa de — previsivelmente — concretizar a vontade externalizada nas leis aprovadas pelo Parlamento. Com isso, certamente, não teremos Heróis, mas, com a mesma certeza, não sacrificaremos a segurança e as bases de nossa tão recente Democracia.


[1] Scott J. Shapiro. Legality, Kindle Ed., location 497-505.
[2] Scott J. Shapiro. Legality, Kindle Ed., location 497-505.

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