Direitos morais

O copyright não cabe na ordem jurídica do Brasil

Autor

  • Roberto Corrêa de Mello

    é advogado Graduado pela Faculdade de Direito da USP turma 1977; foi Conselheiro do Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA); integra o Comitê Técnico de Literatura Dramaturgia e Audiovisual (CTDLV) e o Comitê Técnico de Artes Gráficas e Plásticas (CIAGP) ambos da CISAC. É presidente da ABRAMUS (Associação Brasileira de Música e Artes); é diretor da ABDA (Associação Brasileira de Direitos Autorais); é Sócio da Mello Advogados Associados S. C. constituída em 1952.

29 de maio de 2013, 8h15

Cumprindo sua destinação histórica e honrando sua tradição constitucional, o Brasil adota o regime legal de Direito do autor (Droit d’ Auteur), consagrado na Constituição da República, em seu artigo 5º, incisos XXVII e XXVIII, que cuida dos direitos e garantias individuais. Assim, extirpa qualquer analogia com o sistema de “copyright” (direito de cópia) adotado por países anglo-saxões e os Estados Unidos da América do Norte que decidiram pela adoção de um regime jurídico de natureza utilitária.

Pelos ditames constitucionais, compete ao autor a decisão absoluta pela utilização de suas criações, segundo critérios personalíssimos, subjetivo — materiais, que pautam-se por decisões de conveniência, oportunidade, vinculação de sua imagem, por todo um conjunto de motivos de caráter individual, que facultam ao criador fazer uso de suas obras como melhor lhe convier.

Estão explicitadas na Carta Constitucional tais direitos personalíssimos, em caráter de exclusividade, assim retratados:

“XXVII – aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissíveis aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar;
XXVIII – são assegurados, nos termos da lei:
A proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas;
O direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas;”

O conceito de autor e, por consequência, titular dos direitos autorais, congrega em seu acervo individual as duas esferas viscerais de seus direitos sobre as criações — morais e patrimoniais. Como deflui do texto, o criador é o epicentro do direito e, como reflexo, a ele cabe, com exclusividade, a gestão moral e patrimonial de seu acervo autoral.

A lei 9.610 de 1998, cuidou de exarar que o autor é a pessoa física criadora da obra literária, artística ou científica, retratando o antropocentrismo da Carta Constitucional em seus artigos 11, 22, 24, 27, 28, 29 e 30, sempre pautando as normas jurídicas pelo personalismo na decisão de uso da criação intelectual.

Criador e criatura, segundo o ordenamento jurídico nacional, estão umbilicalmente vinculados e a soberania da vontade do titular está inderrogavelmente expressada como extensão de sua pessoa, cuidando de um analógico direito de personalidade.

E tais direitos personalíssimos, tanto os morais (mandatório mandamento que determina que o autor seja sempre declarado quando da utilização da criação), quanto os patrimoniais (o direito de decisão para usar, fruir e gozar do bem imaterial) concretiza-se no plano material para absolutamente todas as modalidades de utilização — plásticas, fônicas, audiovisuais, o que determina que remunere-se o titular (seus herdeiros e sucessores a qualquer título), ao invés de remunerar-se a obra “per si”, mas sim em decorrência da autoria.

Trata-se do sistema dualístico não utilitário, posto que circunscrevem-se ambos os universos (moral e patrimonial) à pessoa do criador.

Em minhas manifestações, ao longo de minha vida profissional, reafirmei que talvez melhor nominação pudesse ser atribuída a tal direito subjetivo material. Deveríamos denominá-lo direito do autor e não direito autoral, pois que os titulares congregam em seus acervos pessoais todo o direito, em suas duas ordens jurídicas.

O regime jurídico nacional extirpa quaisquer possibilidades de abstrair a figura do criador pela natureza do direito concentrativo. No momento em que a lei brasileira centraliza na pessoa do criador as duas esferas do direito, distancia qualquer analogia ao sistema de copyright.

Demais disto, sendo os direitos morais irrenunciáveis e inalienáveis, não há nenhuma possibilidade de trazer o sistema de copyright para a ordem jurídica do Brasil. E disto tratamos neste texto.

Tal diferença essencial faz com que figuras teratológicas originadas nos países que adotam o copyright, tais como, criações sucessivas sem titulação, flexibilizações de direitos para abstrair a pessoa do titular e outras tais como figuras derivadas, coloquialmente denominadas copyleft, creative commons e outras não tenham qualquer possibilidade jurídica de coadunarem-se com o regime adotado em nosso país.

Os países que adotaram o sistema de copyright jamais, em tempo algum, abrigaram em seus ordenamentos jurídicos os direitos morais dos autores. Claro que não o fizeram, exatamente porque o sistema utilitário abstrai a pessoa do criador e, em seu viés materializante, protege a criatura (a obra), ou melhor dizendo, o direito de reproduzir a obra (direito de cópia).

Por outro lado, os países que adotaram o “droit d’ auteur”, como o Brasil, sempre vincularam o autor à obra, personalizando-a e ligando-a ao titular. O direito positivo explicitado nas normas constitucionais e infraconstitucionais, expressa em sua hexegese a teoria dualista francesa que reconhece elementos de dois universos distintos (moral e patrimonial) no acerco de direitos pessoais do criador da obra intelectual.

O artigo 6º da convenção de Berna (1886), ratificado e adotado no regime nacional como norma positiva, as duas faces do direito — moral e patrimonial — assim exarando: “Independentemente dos direitos patrimoniais de autor, e mesmo depois da cessão dos citados direitos, o autor conserva o direito de reivindicar a paternidade da obra e de se opor a toda deformação, mutilação ou outra modificação dessa obra, ou a qualquer dano à mesma, prejudiciais à sua honra ou à sua reputação.”

Ora, se o sistema de copyright jamais asseverou a protetividade dos direitos morais, buscando um utilitarismo material que abstrai a pessoa do criador, já, de pronto, conclui-se que são ordenamentos jurídicos fundamentalmente diversos.

Fato é que por mais de um século, os Estados Unidos recusara-se a assinar a Convenção de Berna, só vindo a fazê-lo em 1º de mais de 1989, exatamente porque o direito norte americano não a recepcionava em sua plenitude.

Em suma, direito de autor e copyright não são o mesmo direito. Veremos por que.

Direitos Conexos
Como a denominação expressa, os direitos chamados conexos guardam conectividade com os direitos autorais. Melhor designá-los “direitos conexos autorais”, pois vinculados estão à existência prévia dos direitos inerentes à criação da obra artística, literária ou cientifica. Sempre existiram e, muitas vezes, foram reconhecidos de maneira esparsa, não organizada e tratados informalmente.

Decorrem de atividades que expressam as obras artísticas com peculiaridade, singeleza e singularidade. São direitos dos intérpretes, dos músicos, dos roteiristas, dos atores, dos produtores, inclusive os produtores fonográficos e outros, que materializam as obras com suas adições. Expressam-se em relação a criação pré-existente e a ela impõem sua criação derivada.

Em 26 de outubro de 1961, em Roma, na Itália, os estados que ali compareceram, na condição de membros da Organização das Nações Unidas, aderiram à “Convenção Internacional para a proteção dos artistas intérpretes ou executantes, dos produtores de fonogramas e dos organismos de radiodifusão”. A denominada Convenção de Roma cuida exatamente da protetividade dos direitos conexos dos titulares já mencionados e conceitua as fisionomias jurídicas, explicitando definições precisas sobre os direitos que tocam aos intérpretes (atores, cantores, músicos, dançarinos, entre outros). Delimita a natureza jurídica dos fonogramas, trata do produtor fonográfico (a pessoa física ou jurídica que, pela primeira vez fixou os sons de uma execução), e define o que seja publicação, reprodução, emissão de radiodifusão e retransmição.

A ratificação da Convenção de Roma pelo Brasil ocorreu pelo Decreto Legislativo nº 26, em 05 de agosto de 1964 e promulgada pelo Decreto 57.125, de 19 de outubro de 1965.

Estes direitos conexos, como derivados e decorrentes das materializações das obras intelectuais, são tratados pelo ordenamento jurídico brasileiro em configuração analógica àqueles dos quais deriva. São exclusivos , o que determina que os titulares têm a prerrogativa de decidir o que fazer com suas criações derivadas.

Nossos direitos conexos têm também origem nos direitos vizinhos do Direito Francês (“droits voisins”). Tal direito exclusivo leva ao conceito de licença prévia (como ocorre com os direitos autorais) e, por tal configuração, permitem igualmente que os titulares considerem suas conveniências subjetivas para concederem ou não autorizações para uso de suas interpretações ou criações derivadas.

Os EUA, ao contrário do Brasil, jamais aderiram plenamente à Convenção de Roma. Por que não o fizeram? Exatamente porque, no regime de copyright os direitos não tem como ser reconhecidos plenamente, ou pelo menos com a amplitude que se verifica nos países que aderiram à Convenção de Roma.

Copyright
No sistema do copyright busca-se a protetividade da criação intelectual. Em resumidas palavras, protege-se a obra, a criação intelectual, não o seu criador.Isto tem consequências importantes.

Por exemplo, no sistema de copyright o autor detém os direitos sobre sua obra tão logo a cria. Com o sistema de copyright e registrário (obrigacional e não facultativo), seus direitos estarão protegidos contra terceiros (“erga omnes”) tão logo proceda ao ato registrário.

Entretanto diferentemente do sistema de direitos do autor, se o autor ceder seu copyright, perde imediatamente seu vínculo com a obra.

E mais. No sistema registrário, mandatório, a cessão dos direitos leva a questões que alteram figuras jurídicas como a prescrição (ou decadência), pois que não se obedecem preceitos relativos à sucessão, mas sim tudo quanto decorre do ato registrário. Assim, impõe-se que quaisquer atos de cessão sejam registrados no Copyright Bureau de Washington, porquanto a fluidez do prazo protetivo do copyright tem início com o registro das cessões, inclusive.

Enquanto o direito de autor (droit d’ auteur) origina-se em atos revolucionários (Revolução Francesa 1789), que têm lastro na irresignação do povo francês, que reverberou e protagonizou na rebeldia pessoal dos cidadãos (citoyen) em busca da realização pessoal (Legalité, Egalité et Fraternité), o copyright surgiu com o estatuto da Rainha Ana, na Inglaterra, com a edição do Rights of Copy (o direito de cópia), que objetivava, pelo menos no início, a proteção aos editores de obras literárias.

Nascem diferentes e assim até hoje remanescem.

Assim explicita a diferença o Professor Carlos Fernando Mathias de Souza, em douto parecer que lhe solicitou a Associação Brasileira de Música e Artes (Abramus), para lastrear sua demanda em face da dantesca decisão proferida pelo CADE, publicada em 26 de Abril de 2013.

“Sobre a questão, em si, desde logo, registre-se que se pode falar, no âmbito da proteção em destaque, em dois sistemas básicos: 1) o de “droit d’ auteur” (direito do autor), de inspiração francesa, e 2) o de copyright, que é o do sistema jurídico anglo-americano.

Anote-se, de início, que no sistema de droit d’ auteur (no que o ordenamento jurídico brasileiro, mesmo com as suas particularidades, está tão próximo) o escopo fundamental é a proteção ao criador da obra intelectual, ao contrário do sistema de copyright, que se centra na proteção à obra, com ênfase nos aspectos econômicos ou da sua exploração, por meio do direito de reprodução.

Não parece ocioso aqui registrar-se uma brevíssima notícia histórica sobre esses dois sistemas básicos de proteção à criação intelectual.

Enquanto o direito de autor (ou autoral) funda-se como uma conquista de direito, advinda com a revolução francesa, no que ela aboliu os privilégios por incompatíveis com a liberdade e a igualdade (veja-se o Decreto da França revolucionária, de 19-24 de julho de 1793 que é um marco para o droit d’ auteur), na Inglaterra, em 1710, conheceu-se o Estatuto da rainha Ana sobre RIGHTS OF COPY (é dizer-se, sobre os direitos de cópia), de início em proteção tão só aos editores.”

Pois bem, enquanto o ordenamento brasileiro segue o regimento das Convenções de Berna, de Genebra e de Roma, buscando sempre salvaguardar os direitos dos autores (droit d’ auteur) e os direitos conexos (droits voisins), o sistema legal de copyright (direito de cópia) não tem os titulares como epicentro da universalidade de direitos.

Em síntese, o sistema de Copyright não tem nenhuma relação com o sistema antropocêntrico, personalíssimo de que cuida o direito do autor. Não se destina à protetividade do criador, mas, ao contrário, cuida da proteção para a reprodução da obra, pertença ela a quem for, buscando assim dar efetividade ao principio remuneratório do direito da cópia (royalties).

Por isso que a designação genérica “copyright” refere-se, pelo menos nos países que o adotam a abrigar ramos absolutamente distintos do direito. Copyright cuida tanto da propriedade intelectual quanto da propriedade industrial (que cuida das marcas, patentes, modelos de utilidade, entre outros). Todo sistema é registrário, mandatório e permite, por ilação lógica, o deslocamento do direito, sendo que compete ao estado outorgar a palavra final quanto ao uso da obra (pertença ela a quem for), impondo-se sobra a vontade do titular, que não detém o ato império de dispor, fruir e gozar de sua criação como melhor lhe aprouver.

Nosso sistema tem foco na pessoa humana, no titular de direito de autor (droit d’ auteur) e no titular dos direitos conexos (droits voisins). Não é registrário, permitindo ao criador fazê-lo se tiver interesse (“facultas agendi”).

Nosso país segue os ditames das Convenções Internacionais que cuida da matéria e obedece as regras de não redutibilidade (“regra dos três passos”) das faculdades autorais, em sua plenitude, em prol da permanente criação intelectual e não dando margem a figuras teratológicas que só podem prosperar quando se desprezar o direito humano, os direitos dos criadores, únicos responsáveis pela evolução da cultura mundial.

Autores

  • é advogado, Graduado pela Faculdade de Direito da USP, turma 1977; foi Conselheiro do Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA); integra o Comitê Técnico de Literatura, Dramaturgia e Audiovisual (CTDLV), e o Comitê Técnico de Artes Gráficas e Plásticas (CIAGP), ambos da CISAC. É presidente da ABRAMUS (Associação Brasileira de Música e Artes); é diretor da ABDA (Associação Brasileira de Direitos Autorais); é Sócio da Mello Advogados Associados S. C., constituída em 1952.

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