Ente anômalo

Privilégios do DF não viram serviços de qualidade

Autor

  • Luciano Coelho Ávila

    é professor de Direito Constitucional da Fundação Escola Superior do MPDFT (FESMPDFT) em Brasília; especialista em Direito Processual Civil pela FESMPDFT/UFSC; mestrando em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB); promotor de Justiça do Distrito Federal e Territórios.

29 de maio de 2013, 7h00

A questionável opção política do governo do Distrito Federal por construir um estádio de futebol de padrão internacional com recursos integralmente públicos e capacidade para 71 mil espectadores, destinado a abrigar alguns poucos jogos da Copa do Mundo de 2014, em uma capital que não possui nenhuma tradição ou projeção no cenário do futebol nacional e em cujo campeonato local o público presente à grande final de 2012 foi de somente 970 torcedores, instigou-nos a desenvolver as linhas que se seguem, em ordem a permitir uma maior reflexão crítica sobre a “qualidade“ dos gastos públicos no DF, conduzindo-nos a investigar sobre até que ponto ou medida o administrador de interesses públicos, legitimamente eleito através da pia batismal do voto popular, pode valer-se do escudo pretensamente impenetrável do mandato que lhe foi conferido para definir, unilateral e discricionariamente, as políticas públicas governamentais. 

Para mais que isso, almeja-se decompor os limites desse pseudo manto protetor representado pela invocação indiscriminada da “discricionaridade administrativa“ a partir do necessário confronto com o princípio da democracia participativa, que fortemente embalou o projeto constitucional de 88, na perspectiva de melhor averiguar a validade e a legitimidade social das escolhas governamentais não precedidas de ampla consulta ou participação popular para a ordenação de grandes despesas em setores manifestamente não prioritários para o bem estar de uma coletividade, tendo por parâmetro maior o fundamento constitucional republicano que impõe ao Poder Público e a todos os cidadãos brasileiros o primado do respeito à dignidade da pessoa humana, seja na sua dimensão individual, seja na coletiva.

Nossa análise se inicia pela constatação de que o Distrito Federal, ente político anômalo na federação brasileira por acumular competências legislativas e administrativas de estados e municípios, constitui-se em unidade contemplada com certos "privilégios" em matéria de autonomia financeira (arrecadação e receitas financeiras), circunstância que pode ser facilmente justificada pelas explícitas previsões constitucionais que, diferentemente do que ocorre com os estados membros, desoneram o DF das despesas para com a organização administrativa e pessoal do Poder Judiciário do DF e Territórios, do Ministério Público do DF e Territórios[1], da Polícia Civil, da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal. A organização administrativa e a manutenção de referidos órgãos situados no DF são da alçada exclusiva da União, a teor do que dispõe a Constituição de 88 em seu artigo 21, incisos XIII e XIV. Inegavelmente, a economia com referidos gastos, que são suportados pela União (e nos mesmos órgãos estaduais são suportados pelos próprios estados), deveria, em tese, reverter-se na melhor qualidade dos serviços públicos prestados pelo DF à sua população, comparativamente aos serviços ofertados pelos estados membros da federação brasileira.

Para maior clareza desta última assertiva, basta assinalar que, para prover o custeio de suas Polícias e Corpo de Bombeiros Militar, bem como para a execução de serviços públicos de saúde e educação, o DF conta com os repasses dos recursos federais provenientes do Fundo Constitucional do DF (instituído pela Lei Federal 10.633/2002), que, somente no ano de 2013, renderão ao governo local a cifra bilionária de R$ 10.694.936.470. O DF também é contemplado com o Fundo de Participação que compete aos estados/DF, modalidade de assistência financeira prevista pela Constituição Federal para equalizar a capacidade fiscal das unidades federativas (artsigos 159 e 160 — CF/88), pela qual já recebeu, até abril/2013, o repasse de R$ 145.551.342,51. Em 2012 foram repassados ao DF, ao todo, R$ 427.617.601,28 de recursos através do referido Fundo. Mas não pára por aí: o DF também recebe os repasses do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), que, até abril de 2013, representaram para os cofres do DF transferências no montante de R$ 37.179.203,87. Em 2012, o FPM/DF foi da ordem de R$ 113.805.542,49.[2]

Não sem motivo, o Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de asseverar, em diversos julgamentos, que o DF tem suas autonomias administrativa e financeira parcialmente tuteladas pela União[3], sendo considerado, por isso mesmo, um ente federativo privilegiado na topografia constitucional relativamente aos demais estados membros.

Acresça-se a referidas conclusões iniciais a constatação de que a maior renda per capita do Brasil esteve alocada no DF ao longo dos últimos anos, bem acima da média nacional, segundo dados do IBGE, circunstância que deveria apontar, ao menos em linha de princípio, para uma melhor qualidade de vida de seus moradores (IDH), considerado o poder aquisitivo individual e o maior acesso a bens e serviços de qualidade[4].

No entanto, de forma absolutamente paradoxal e incompreensível, o mesmo DF vem registrando, ano após ano, segundo estatísticas oficiais, alguns dos piores indicadores sociais do país em diversos segmentos, a exemplo da saúde pública, da segurança pública, do transporte público coletivo e dos serviços educacionais, apenas para ficar em alguns dos ditos serviços essenciais ao mínimo bem estar de uma coletividade.

Com efeito, a população de baixa renda tem protagonizado cenas diárias de agonia nas filas dos hospitais públicos do DF à espera de atendimento em unidades de emergência[5], não há médicos em número suficiente para fazer frente à imensa demanda advinda das cidades "satélites" (regiões administrativas do DF, que não possui municípios) e da desamparada região do entorno de Brasília (uma das mais violentas do Brasil), tudo isso para não falar do grave problema dos pacientes que aguardam, muitas vezes sem poder esperar, pelo fornecimento gratuito de medicamentos imprescindíveis para a preservação de sua saúde ou por leitos de UTI para a salvaguarda da vida, não lhes restando outra alternativa, diante da inescusável demora da resposta administrativa, que não seja o caminho que dá acesso à Justiça, através do Ministério Público ou da Defensoria Pública. Apenas para que se tenha uma dimensão mais precisa do fenômeno, somente no ano de 2012 foram instaurados cerca de 1.191 inquéritos civis no âmbito do Ministério Público do DF e Territórios para a apuração de reclamações de cidadãos na área de saúde, segundo dados fornecidos pelo Conselho Nacional do Ministério Público. Além dos Inquéritos Civis e procedimentos em curso pelo MPDFT, foram ajuizadas perante as Varas de Fazenda Pública do Distrito Federal, apenas no ano de 2012, cerca de novas 1.058 ações judiciais referentes à temática da saúde. Só no primeiro trimestre de 2013 foram mais 374 ações judiciais sobre a matéria, o que evidencia estar-se diante de um quadro crescente (e cada vez mais preocupante) de judicialização individual da saúde no DF, como de resto em grande parte do Brasil, com todos os graves efeitos que disso decorrem para os demais usuários do sistema de saúde pública do ponto de vista da seletividade e desestruturação desse mesmo sistema, que deveria ser universal e igualitário, desde que administrado com eficiência, profissionalismo e competência.

Na área de segurança pública, as pessoas —agora de alta, média e mesmo de baixa renda—, encontram-se a cada dia mais temerosas de deixar os próprios lares rumo ao trabalho ou lazer em consequência das altas cifras de criminalidade violenta que têm assolado o DF, especialmente em número de sequestros-relâmpago (roubo com restrição de liberdade), homicídios, atos infracionais violentos perpetrados por adolescentes, dentre outros. Em 2011 foram registrados 675 casos de sequestros-relâmpago no Plano Piloto e Regiões Administrativas de Brasília. No ano de 2012 o número evoluiu para 703 novos casos. De 1º de janeiro até o dia 22 de abril de 2013 já foram registrados 182 novos casos dessa modalidade de conduta criminosa revestida de vasto poder intimidatório no pequeno território do DF, para uma população que gira em torno de 2 milhões e 500 mil habitantes.

O número de homicídios no DF é igualmente assustador: 206 registros nos 3 primeiros meses do ano de 2013, enquanto na maior cidade da América Latina, São Paulo, com uma população de 11 milhões e 400 mil habitantes (quase 5 vezes maior que a do DF), foram registrados 305 homicídios ao longo do primeiro trimestre de 2013, segundo as últimas estatísticas oficiais[6]. A desproporção é gritante e suas causas não são adequadamente analisadas em termos de uma política de segurança pública eficiente, em que pese dispor o DF das polícias civil e militar mais bem remuneradas no país, pagas pelos cofres da União. Não custa rememorar que, devido ao absoluto descontrole da escalada da violência, o governo local chegou a pedir ajuda federal, e o Ministério da Justiça enviou um grupo de 100 homens da Força Nacional de Segurança para atuar em áreas violentas da região do Entorno nos últimos anos.

Não obstante o quadro desolador de insegurança pública que atormenta a população do DF ao longo dos últimos anos, cabe notar que o governo local praticamente não tem investido recursos em percentuais minimamente significativos em políticas públicas voltadas à prevenção da violência, sobretudo a de caráter infanto-juvenil, na perspectiva de se reduzir, no médio a longo prazo, o crescimento desordenado dos delitos e atos infracionais. Segundo dados extraídos da Lei Orçamentária Anual do DF de 2012 (LOA/2012), os recursos destinados às ações e programas preventivos de violência (e mesmo daqueles voltados às consequências da violência) no Distrito Federal foram da ordem irrisória de R$ 1.707.000,00 (Um milhão, setecentos e sete mil reais)[7], proporcionalmente insignificantes perante a receita líquida anual. Na LOA/DF 2013, as dotações orçamentárias voltadas ao atendimento de referidos programas e ações contra a violência continuaram sendo ínfimas: R$ 2.300.000,00 (dois milhões e trezentos mil reais)[8].

Na prática, tal equivale a concluir pela inexistência de uma política pública preventiva efetivamente comprometida com a redução da escalada da violência no DF, ausentes quaisquer investimentos idôneos para o melhor enfrentamento e compreensão das diversas causas do grave problema.

Na segunda parte deste ensaio sobre a inversão de prioridades constitucionais na estrutura governamental do DF para a construção do Estádio Nacional de Brasília, falaremos sobre a política de educação pública no DF e analisaremos de forma crítica os altos custos empregados para a construção do novo “Mané Garrincha“ (já considerado o estádio mais caro do mundo de todos os tempos), mediante confronto com os custos finais de construção dos demais Estádios brasileiros erguidos para a Copa de 2014.

[1]     Sobre o Poder Judiciário e o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios importa rememorar que os mesmos não são órgãos do DF, mas sim órgãos integrantes da estrutura da União, de cunho federal. Portanto, o DF é dotado apenas de Poder Executivo e Poder Legislativo, nos termos do disposto no art. 53 de sua respectiva Lei Orgânica. O Poder Judiciário do DF e o Ministério Público do DF (que existem e estão alocados no DF) são integrantes da estrutura da União e não do DF. Nesse sentido, conferir: FERNANDES, Bernardo Gonçalves; in Curso de Direito Constitucional, Salvador, 5ª. Edição, 2013, p. 716.

[2]     Referidas receitas não incluem, por óbvio, os valores arrecadados pelo GDF por força de sua competência tributária específica, igualmente privilegiada, por força do acúmulo constitucional de tributos municipais e estaduais, abrangendo a arrecadação dos créditos decorrentes de IPVA e IPTU, dentre outros. Segundo a Lei Orçamentária Anual de 2013 do Distrito Federal, aprovada em 28 de dezembro de 2012, a receita total para o exercício financeiro de 2013 foi estimada em R$ 21.303.798.105,00 (vinte e um bilhões, trezentos e três milhões, setecentos e noventa e oito mil e cento e cinco reais), aí já incluídas as receitas decorrentes dos tributos distritais. 

[3]     Terminologia utilizada por José Afonso da Silva, in Curso de Direito Constitucional positivo, p. 553.  

[4]     Os municípios que apresentam as maiores rendas per capita do país aparecem mal colocados no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). A situação paradoxal é explicada porque a renda per capita é resultado matemático simples da receita do município dividida pela população, sem levar em conta a distribuição dessa renda nem estatísticas sociais, como saúde ou educação.  

[5]     No exato momento em que redigia o presente texto, na noite de 22/04/2013, este subscritor se deparou com a seguinte notícia durante a 2a. Edição do Jornal DF TV, da Rede Globo: “Paciente morre no banheiro do Hospital Público do Gama/DF após esperar por 12 horas de atendimento na emergência. A irmã da vítima, revoltada, quebrou o vidro do hospital arremessando uma lixeira, sendo presa em flagrante delito por dano ao patrimônio público ! Ouvida, a Secretaria de Saúde informou que o atendimento na unidade estava absolutamente normalizado, com 2 médicos por turno atendendo a população.“ Ao fundo da imagem, centenas de pessoas aguardavam atendimento nas filas de espera. Aqui, mais do que nunca, vale a pertinente advertência dos modernos estudiosos de políticas públicas, para quem o Estado fraco e ineficiente nas bases sociais e na implementação das políticas públicas essenciais para o mínimo existencial do ser humano só pode se converter em Estado forte, opressor e eficiente na aplicação do Direito Penal punitivo. Assim o Estado brasileiro tem feito políticas públicas: com direito penal seletivo, injusto e estigmatizante.

[6]Informação extraída do sítio eletrônico da Secretaria de Segurança Pública do Estado de SP-http://www.ssp.sp.gov.br/estatistica/plantrim/2013-01.htm.

[7] Lei Orçamentária 2012 do DF: Programa – Implementação de Projetos Junto à Comunidade – PM – Ação: Manutenção do Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência – PROERD/DF – R$ 300.000,00; Programa – Enfrentamento ao Crack – Ação: Manutenção do Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência – PROERD/DF – R$ 300.000,00; Programa e Ação Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos PSE-PAEFI – Em Situação de Violência Sexual/DF – R$ 152.000,00; Programa e Ação Desenvolvimento de Ações Relacionadas ao Pacto de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher: R$ 650.000,00; Centro Piloto de Prevenção ao Uso de Drogas : Implantação de Centro Piloto de Apoio e Prevenção ao Uso de Drogas, no Varjão-DF. Pessoa Atendida (1) R$ 5 mil; Ações de Prevenção e Combate a Homofobia – DF: R$ 300 mil

[8]Lei Orçamentária 2013 do DF: Ações de Prevenção e Combate a Homofobia/DF: R$ 100 mil; Capacitação de Servidores Públicos na temática de gênero, raça e violência contra as mulheres/DF: R$ 200 mil; Desenvolvimento de Ações relacionadas ao pacto de enfrentamento à violência contra a mulher – Secretaria da Mulher/DF: R$ 2 milhões.    

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