Bahia atualiza milagre da multiplicação dos peixes
29 de maio de 2013, 8h00
A nosso ver, toda celeuma se deve à incompreensão disso: um comerciante sujeito à alíquota de 18% que deseje apropriar-se do valor líquido de 100 deve acrescentar-lhe 21,95% (e não 18%), porque 121,95 – 18% = 100 (e 118 – 18% = 96,76).
Nos tributos sobre produtos e serviços, a opção pelo cálculo “por dentro” ou “por fora” constitui em regra livre opção do legislador, valendo notar que ambas as técnicas conduzem, por vias diversas, a idênticos resultados[1].
No caso do ICMS, para encerrar a discussão — de resto, já resolvida pelo STF no Recurso Extraordinário 212.209/RS (Pleno, relator para o acórdão ministro Nelson Jobim, julgado em 23 de junho de 1999) — o primeiro critério foi positivado pela Emenda Constitucional 33/2001[2].
Pois bem: em 8 de maio de 2013, ao decidir os Embargos de Divergência no Recurso Especial 1.190.858/BA, a 1ª Seção do STJ miscigenou aqueles dois sistemas, inovando de forma preocupante em nosso Direito Tributário.
Tratava-se de definir a base de cálculo a ser adotada na cobrança de ICMS sobre fatos pretéritos que o particular, no momento de sua ocorrência, por erro considerou intributáveis.
O contribuinte sustentava que o lançamento deveria considerar o preço por ele praticado, na forma do artigo 13 da Lei Complementar nº 87/96[3]. Já o Fisco baiano, dizendo-se fundado na regra que determina o cálculo por dentro do ICMS[4], pretendia que a base fosse maior, correspondendo ao valor que o empresário supostamente teria cobrado, caso estivesse, no momento da celebração do negócio, ciente da incidência do imposto.
Nos debates que antecederam a decisão, lembrou-se história atribuída a Aliomar Baleeiro: iniciando uma caminhada pela orla carioca, o jurista se deparou com um stand de rua em que o quilo do peixe era anunciado a um determinado preço. Ao passar pela mesma banca na volta para casa, notou que o preço já era bem menor (um caso clássico de liquidação de fim de feira). Irônico, inquiriu o feirante:
— Tirou o ICM? (Eram velhos tempos.) Para ouvir como resposta:
— Não, senhor. O ICM está sempre dentro do peixe.
A frase do peixeiro, plena de sabedoria jurídica, causou um efeito oposto ao que seria de se esperar, e a Corte deu ganho de causa ao Fisco, ao argumento de que, na situação em análise, “o peixe, ao que parece, foi desidratado”.
A decisão não nos parece acertada.
Destacado ou não, o que é providência de simples controle, o ICMS, onde devido, está sempre embutido no preço.
Tratando-se de preços livres — ou mesmo administrados, desde que observadas as balizas estabelecidas pela autoridade competente —, não compete ao Poder Público interferir nas decisões privadas, em busca de maior arrecadação.
O empresário assume todos os riscos, inclusive fiscais, ligados a tais decisões. Mas apenas a elas, não podendo ver-se atribuída receita que na verdade não teve.
No caso em exame, a receita efetiva foi 100. O estado adicionou-lhe um valor fictício a título de ICMS. E, para completar, fê-lo de maneira a que essa parcela inexistente embutisse o imposto sobre ela pretendido, de forma a chegar a um preço arbitrado de 121,95[5].
Em suma, o ICMS está ao mesmo tempo por fora e por dentro, como os elos do nó borromeano. É, para continuarmos na Bahia, “o avesso do avesso do avesso do avesso”.
Ao abonar esse paradoxo, o STJ contrariou as suas excelentes decisões anteriores sobre o tema. Deveras, no Recurso Especial 1.111.156/SP (relator ministro Humberto Martins, DJe 22.10.2009, repetitivo), a 1ª Seção repeliu a tentativa de exigir-se ICMS sobre o preço que teriam mercadorias gratuitas (dadas em bonificação), caso houvessem sido vendidas. O entendimento acerca da intributabilidade de valores não recebidos, correspondentes a descontos incondicionados, encontra-se inclusive sumulado (Súmula 457).
Na mão oposta, mas sempre fiel à ideia de que o preço cobrado é imutável, haja ou não ICMS, a 4ª Turma do STJ livrou fornecedor de indenizar o adquirente contra o qual destacou o imposto, que depositou em juízo, depois que o primeiro ganhou a ação em que combatia a incidência tributária, e o Fisco estornou os créditos aproveitados pelo último (Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial 122.928/RS, relator ministro Luís Felipe Salomão, DJe 14.02.2013)[6].
O gross up só é admitido naquelas poucas hipóteses em que se presume que o ônus do tributo calculado “por dentro” será suportado pelo solvens, casos do ICMS-importação (pois é evidente que o exportador estrangeiro não o considera na formação do seu preço) e do artigo 725 do Regulamento do Imposto de Renda[7].
Não, porém, nas situações ordinárias, em que vigora a presunção inversa de que o ônus incumbirá ao destinatário ou, o que é a mesma coisa, de que o tributo está embutido no valor da operação privada. Trata-se, é sabido, de presunção absoluta, que não admite argumentação ou prova em contrário.
Conta-se que, com cinco pães e dois peixes, Jesus deu de comer a cinco mil homens, fora as mulheres e crianças, e ainda restaram doze cestos cheios[8]. Em outra ocasião, com sete pães e “alguns peixinhos”, alimentou mais de quatro mil pessoas, e a sobra foi de sete cestos[9].
Pela matemática do Fisco baiano, a cada nove peixes tirados das águas, dois teriam de cair do céu[10]. Os milagres já não são o que eram. Mas continuam a nos desafiar a razão.
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