Justiça Tributária

ICMS e ISS: Guerra santa ou guerra suja?

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

27 de maio de 2013, 8h02

Spacca
Com a reforma tributária implantada pela EC 18/65 foi introduzido o ICM no país, cuja principal característica é a não cumulatividade. Tratava-se de um grande avanço no caminho de um sistema tributário justo, compatível com os mais modernos do mundo. 

Antes do ICM tínhamos o IVC (imposto sobre vendas e consignações) , onde não havia créditos nas entradas. A  cada nova operação cobrava-se novo imposto, de tal maneira que,  se o processo de industrialização ou comercialização passasse por várias fases ou vários contribuintes, a carga final chegava a índices muito elevados.

No campo dos impostos municipais, a reforma foi mais sutil. Foi extinto o imposto sobre indústrias e profissões, que era extremamente confuso, criando-se em seu lugar o ISS ou ISQN (imposto sobre serviços de qualquer natureza), cujas normas básicas seriam definidas na lei complementar.

O sistema antigo do IVC (em cascata) beneficiava apenas as empresas de grande porte, que tivessem processos produtivos ou comerciais unificados ou centralizados, onde a mesma pessoa que comprava a matéria prima tinha condições de colocar o produto final no mercado.

Já o sistema do ISIP (imposto sobre indústrias e profissões) não tinha quase nenhuma expressão, pois era pago apenas por pequenas empresas e profissionais liberais e assim mesmo só nas grandes cidades, pois nas menores não havia regulamentos sobre isso. 

Nessa reforma, o Imposto sobre Consumo, que era pago pelas indústrias, passou a denominar-se IPI (imposto sobre produtos industrializados), com alíquotas seletivas e cobrado sobre as operações de industrialização. Aqui fez-se verdadeira aberração jurídica, mantendo-se dois impostos sobre valor agregado, o que tornou a carga tributária repetitiva no primeiro momento e insuportável no médio prazo. O Brasil, ao que consta, é o único país do mundo que cobra dois impostos sobre vendas de mercadorias ou produtos industrializados no  mercado interno.

Tudo isso mantinha o Brasil numa economia amarrada a mecanismos coloniais, com oportunidade de crescimento apenas para poucas empresas.

Agora estamos de novo em busca de outra forma de tributação , que nos permita mais uma fase de crescimento, mas consta que vivemos numa guerra fiscal. Isso seria um conjunto de medidas adotadas por Estados e Municípios, em defesa das respectivas economias, mediante concessão de benefícios fiscais.

Essa tal guerra fiscal tornou-se a bola da vez na imprensa especializada. Todos a comentam, todos a criticam, todos a odeiam. Vemos, no meio desse barulho todo, até mesmo comentários de ex-servidores públicos que, quando ocuparam seus cargos remunerados pelo povo, nada fizeram a respeito do assunto e em alguns casos até mesmo cuidaram de se promover e faturar à custa de eventos onde se discutiam teses muito interessantes para não levar a lugar algum.

A Guerra do ICMS
No que respeita ao ICMS, uma das propostas pretende criar três alíquotas diferentes, com base na Resolução 13/2012 do Senado, sendo uma delas de apenas 4% para produtos importados ou fabricados com produtos importados. Isso não faz sentido, nem tem como funcionar na prática e vai dar muita encrenca.

Ora, o produto importado, quando paga ICMS no desembaraço aduaneiro, gera crédito para o importador. Esse crédito tem de ser integral, ou seja: pagou 12%, creditou-se do mesmo valor. Eis aí o princípio da não cumulatividade: todo pagamento gera crédito. Simples assim. Se vier a pagar 4% para fora do Estado, estará se apropriando de parte do crédito que pertence ao destinatário. Obviamente, ninguém importa mercadoria para vender pelo preço que pagou. Sua carga de ICMS deve ser, pois, sobre o valor agregado, que é a diferença entre o que pagou na entrada (e creditou) e o que está cobrando do destinatário.

Deve-se levar em conta, ainda, que o ICMS é um imposto de repercussão, ou seja, deve onerar o consumidor final. Portanto, será necessário passar o crédito integral (não apenas os 4%) ao destinatário, pois este pagará o tributo integral na sua operação e não pode ser onerado pela carga total, mas apenas pelo imposto sobre o valor que efetivamente tenha agregado, ou seja, em resumo, a sua margem bruta de lucro.

ICMS: A guerra pode ser santa
Uma das questões que vem sendo levantada de forma pelo menos equivocada nessa briga dos estados do Sudeste contra os do Norte ou Nordeste, refere-se à suposta fuga de indústrias ou a desindustrialização dos primeiros. O governo paulista fala que tem receio de perder indústrias. Trata-se de uma grande besteira que só pode ter origem na desinformação de seus assessores ou, então, em interesse de faltar com a verdade para obter frutos eleitorais.

A implantação de novas indústrias atualmente não leva em conta apenas as supostas vantagens tributárias. Questões de logística, facilidade de contratação de mão de obra, energia mais estável e barata, portos melhores e muitos outros fatores é que influem na decisão. Tanto assim, que há fábricas que já procuram instalar-se no sul ou no nordeste, onde tais condições são bem satisfatórias. O estado de São Paulo já não é apenas industrial. Será que alguém ainda não percebeu isso?

Por outro lado, todos sabemos que o ICMS é imposto de repercussão, a ser suportado pelo consumidor e, em alguns casos, há mecanismos de substituição tributária capazes de assegurar que o estado produtor não perderá arrecadação podendo, na pior das hipóteses, aceitar que parte dela vá para o estado que consome a mercadoria.

A fábrica virou shopping
Se o estado de São Paulo perder algumas indústrias, talvez seja bom para sua população. Há vários exemplos disso. Um deles é uma fábrica de ferramentas que funcionava em Santo André e mudou-se para Uberaba. Todo mundo ganhou com a mudança.  Onde havia uma fábrica antiga e obsoleta, hoje há um  “shopping” com cinco vezes mais empregados, todos ganhando salários maiores e a região hoje é bem melhor do ponto de vista urbanístico. A arrecadação cresceu muito nesse município, pois a fábrica que exportava (com isenção de ICMS) deu lugar a muitos varejistas que pagam o imposto em volume bem maior.

ICMS: Benefícios não compensam agiotagem
Se a guerra do ICMS não pode ser santa, também não precisa ser uma guerra suja. Noticiou-se que o governo federal estaria disposto a abandonar o projeto de mudança do ICMS diante de pressões do Congresso no sentido de reduzir os encargos das dívidas dos estados ou mesmo conceder um desconto de 45% nas dívidas das unidades da federação para com a União.

Ora, com 2/3 da arrecadação nas mãos e sentido-se capaz de investir bilhões em anistias (ou “desonerações” como prefere dizer) onde se vê que o objetivo principal ou único é garantir um novo mandato presidencial, nada justifica que a União mantenha estados e municípios (especialmente o de São Paulo, que é seu aliado) atrelado a cronogramas financeiros apertados e com juros acima do razoável. Tal situação parece ser agiotagem e, pior inda, com dinheiro alheio.

Fica muito bonito invocar a Lei de Responsabilidade Fiscal agora para enquadrar seus adversários e encostá-los na parede, obrigando-os a aceitar qualquer projeto, se, nos dez anos anteriores tal lei era ignorada.

Note-se que o desconto pleiteado pelos governadores na dívida publica (45%) é menor do que os concedidos por muitos bancos privados a seus  clientes em casos de inadimplência. Ademais, o dinheiro concedido aos estados pertence ao povo, pois toda a arrecadação vem é daqui mesmo da planície.  Hoje, se a maior cidade do país ainda não tem um metrô completo ou mais avançado, parte disso resulta dos desvios de recursos, onde o dinheiro de São Paulo financiou aquela aventura das águas do São Francisco e tantas outras papagaiadas que não cabem nesta coluna.

ICMS: A convalidação dos atos jurídicos
Os estados que concederam benefícios fiscais, como Espírito Santo e Santa Catarina, por exemplo, fizeram-no dentro dos limites de sua autonomia legislativa. Se deram algo, deram o que lhes pertencia, com aprovação de seu povo, representado nas Assembleias Legislativas. A Lei Complementar 87/96, (alterada pela LC 114/2002) diz no artigo 1º:

Art. 1º Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir o imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior.

Quando a LC fala em instituir quer dizer, obviamente, em estabelecer as regras, o que inclui os benefícios. No estado do Espírito Santo tal benefício era um sistema de financiamento. Veja-se a síntese do FUNDAP:

O FUNDAP é um financiamento para apoio a empresas com Sede no Espírito Santo e que realizem operações de comércio exterior tributadas com ICMS no Espírito Santo. As empresas industriais que se utilizam de insumo importado, poderão se habilitar aos financiamentos FUNDAP , criando uma filial especializada em comércio exterior. A condição básica para o financiamento FUNDAP é o fato gerador do imposto e a necessidade do recolhimento. A empresa pode ser uma Ltda. ou S/A.”

O  estado do Espírito Santo, ao instituir o FUNDAP, agiu dentro do que lhe autoriza a Constituição Federal. O que fez foi apenas criar um mecanismo de financiamento para os importadores, não havendo isenção ou renúncia de tributo. Portanto, nada praticou de ilegal. Vários Estados concedem financiamentos para instalação de empresas em seu território, sem que isso seja questionado.

Portanto, quem concedeu incentivos com base em leis aprovadas pelas suas assembléias, deve tê-los reconhecidos , sendo ainda convalidados os atos jurídicos que são perfeitos sob o ponto de vista legal.

ISS: Mudanças absurdas na lei
Com relação ao ISS, o projeto de lei do Senado que está aguardando votação é uma aberração jurídica total. A pretexto de acabar com a chamada guerra fiscal, chega a invadir o terreno da Lei de Responsabilidade Fiscal e criar nova modalidade penal para administradores municipais.

Pretende o projeto PLS 386/12  ampliar a possibilidade de transferir ao tomador dos serviços  a responsabilidade pelo pagamento do imposto. Isso não resolve qualquer problema, mas pode criar outro: o tomador não recolhe e o fisco vem pretender transferir ao prestador o encargo.

Outra aberração: pretende proibir benefícios tributários ou isenções. Com isso, alguns municípios poderão criar incentivos ainda mais onerosos, como doação de terrenos, por exemplo.  Parece que todos resolveram ignorar a autonomia dos entes federativos, que só pode ser limitada pela Constituição.

No campo da incidência, cria-se a tributação sobre serviços de saneamento. Como o imposto é de repercussão, poderá ocorrer com o ISS nesse caso o que já acontece com o ICMS na energia elétrica e nas comunicações: nós, os trouxas, vamos pagar esse pato também. ISS sobre esgoto! Está bom?

Mais uma maluquice legislativa é pretender o projeto que se cobre ISS das locações comerciais de imóveis, contrariando jurisprudência em sentido contrário e ignorando o código civil Fala-se agora numa tal “locação empresarial de imóveis”, figura inexistente no Código Civil

Vamos ver no que vai dar tudo isso. Por via das dúvidas, vou sugerir à CAASP que amplie o seu convênio com psiquiatras e psicólogos. Todos nós vamos precisar!

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    é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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