Observatório Constitucional

Reclamação 4.335 e a busca do stare decisis

Autor

  • José Levi Mello do Amaral Júnior

    é professor associado de Direito Constitucional da USP professor do mestrado e do doutorado em Direito do Ceub livre-docente doutor e mestre em Direito do Estado procurador da Fazenda Nacional cedido ao TSE e secretário-geral da Presidência do TSE.

25 de maio de 2013, 8h01

Publiquei edição 920 da Revista dos Tribunais (páginas 133-149), artigo de título “Controle de constitucionalidade: evolução brasileira determinada pela falta do stare decisis”. Nele pretendi demonstrar que a evolução do modelo brasileiro é marcada e determinada pela busca de sucedâneos normativos ao stare decisis, elemento de funcionalidade e coerência decisórias existente na experiência do common law americano, mas que não veio ao Direito brasileiro por ocasião do transplante (ou cópia) do modelo americano.

O tema ganha em interesse com a retomada do julgamento da Reclamação 4.335-5/AC. Isso porque o voto do relator, ministro Gilmar Mendes, na prática, propõe reconhecer, por meio de construção jurisprudencial, a ocorrência automática de stare decisis quando de quaisquer decisões proferidas pelo STF em sede de controle difuso e concreto de normas.

Acompanhou o relator o ministro Eros Grau. Dele divergiram os ministros Sepúlveda Pertence e Joaquim Barbosa. No dia 16 de maio de 2013, foi proferido voto-vista do ministro Ricardo Lewandowski, também divergindo do relator. A seguir, pediu vista dos autos o ministro Teori Zavascki.

Vale lembrar que, com a proclamação da República, o Direito brasileiro copiou diversos elementos da experiência americana, inclusive o controle de constitucionalidade difuso e concreto de normas. O Decreto 848, de 1890, organizou a Justiça Federal, criou o STF (a partir do Supremo Tribunal de Justiça imperial) e previu o recurso extraordinário.

Aqui se inicia o drama institucional brasileiro, não apenas relativamente ao controle de constitucionalidade: “Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra.”[1]

Relativamente ao controle de constitucionalidade, o drama do modelo é a ausência do stare decisis. Julgado um recurso extraordinário pelo STF, nada vinculava os demais juízos brasileiros ao entendimento firmado pelo Tribunal de cúpula. Então, buscou-se suprir essa ausência pela via normativa. Diversos sucedâneos normativos ao stare decisis foram adotados.

Permito-me repisar breve narrativa histórica que aponta a sucessão de alternativas normativas ao stare decisis experimentadas pelo Direito brasileiro.

O primeiro sucedâneo normativo ao stare decisis é a competência atribuída ao Senado Federal pelo inciso IV do artigo 91 da Constituição de 1934, qual seja: “suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato, deliberação ou regulamento, quando hajam sido declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário” (atual inciso X do artigo 52 da Constituição de 1988[2]). Este mecanismo é apontado por Ada Pellegrini Grinover como “a pedra de toque do sistema difuso de controle da constitucionalidade, no Brasil”[3]. Declarada – pela via difusa – uma inconstitucionalidade pelo STF, a Corte oficia ao Senado para eventual suspensão da norma objeto do controle da Corte, a qual, recaindo sobre a própria lei, surte efeito erga omnes. Portanto, a inconstitucionalidade, que até então era apenas inter partes, passa a ser erga omnes. Porém, justamente porque pressupõe a declaração de inconstitucionalidade, o mecanismo não é capaz de universalizar, por exemplo, decisões afirmativas da constitucionalidade de uma lei, no que remanescia espaço para divergências jurisprudenciais.

O segundo sucedâneo também veio com a Constituição de 1934, em seu artigo 179[4]: adoção da regra do full bench, hoje constante do artigo 97 da Constituição de 1988[5], regulamentado pelos artigos 480-482 do CPC. Em outras palavras, nos juízos colegiados, a declaração de inconstitucionalidade requer decisão por maioria absoluta dos respectivos membros (ou do órgão especial com competência plenária a ele delegada[6]). Portanto, quando órgão fracionário de tribunal (por exemplo, câmara ou turma) acolhe uma arguição de inconstitucionalidade, a questão constitucional deve ser submetida ao plenário (ou órgão especial) da respectiva corte. Decidida a questão, o órgão fracionário julgará o caso concreto segundo o entendimento firmado em full bench, aplicando-lhe a lei, caso julgada constitucional, não lhe aplicando a lei, caso julgada inconstitucional. É importante observar que: (i) o entendimento plenário vale não apenas para o caso concreto que ensejou a arguição, mas, também, para todos os demais casos análogos em julgamento na mesma corte (o que gera um stare decisis interno aos tribunais); por outro lado, (ii) os órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário (ou ao órgão especial) a arguição de inconstitucionalidade, quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do STF sobre a questão, segundo dispõe o parágrafo único do artigo 481 do CPC (o que gera um stare decisis entre o Supremo e os demais tribunais)[7].

O terceiro sucedâneo é a representação interventiva, em especial a partir do modelo da Constituição de 1946, que inverteu a lógica da Constituição de 1934 no particular: “Ao invés da constatação da constitucionalidade da lei, que deflagrava a intervenção, tal como na Constituição de 1934, deveria o Tribunal agora aferir diretamente a compatibilidade do direito estadual com os chamados ‘princípios sensíveis’.”[8] Havia, nisso, modalidade de controle concentrado e abstrato de normas, segundo já apontavam Alfredo Buzaid[9] (em obra clássica cujo título, inclusive, antecipa o nomen juris da atual ação direta de inconstitucionalidade) e Aliomar Baleeiro[10]. Claro, tratava-se — e ainda se trata[11] — de uma modalidade limitada de controle concentrado e abstrato de normas[12], porque dirigida especificamente contra lei estadual em face dos chamados “princípios sensíveis”.

O quarto sucedâneo é a efetiva adoção do controle concentrado e abstrato de normas pelo Direito brasileiro, o que se deu com a Emenda Constitucional 16, de 26 de novembro de 1965, que introduziu, à Constituição de 1946, a representação de inconstitucionalidade. Nova etapa na busca de mecanismos para suprir a falta do stare decisis, a representação de inconstitucionalidade não era uma modalidade limitada de controle, como a representação interventiva, porque podia ser dirigida contra lei federal ou estadual em face de qualquer disposição constitucional. Na prática, conheceu função supletiva e corretiva do modelo difuso e concreto[13]. “Supletiva” porque alcançava casos que escapavam ao controle difuso e concreto[14]. “Corretiva” porque “permitia superar a situação de insegurança jurídica e corrigir determinadas injustiças decorrentes da multiplicidade e contraditoriedade dos julgados proferidos pelos diferentes juízes e tribunais sobre a mesma matéria”[15]. Note-se: a função corretiva apontada — decorrente do efeito erga omnes inerente à decisão, dispensada a manifestação do Senado Federal — configura sucedâneo ao stare decisis. Por outro lado, o manejo da representação era pouco frequente contra lei federal, em especial porque a legitimidade ativa para a representação era monopólio do procurador-geral da República[16], cujo cargo estava à disposição do presidente da República[17].

O quinto sucedâneo encontra-se na Constituição de 1967, que manteve a representação de inconstitucionalidade. Mais do que isso: a reforma do Poder Judiciário, levada a efeito pela Emenda Constitucional 7, de 13 de abril de 1977, introduziu novos mecanismos de controle concentrado e abstrato, aí incluída a representação interpretativa, cuja regulamentação regimental pelo STF atribuiu-lhe “força vinculante”[18], nítido antecedente direto do atual efeito vinculante. Com isso, não apenas as decisões de inconstitucionalidade passaram a ter efeito erga omnes, mas, também, as interpretações constitucionais da Corte passaram a vincular. Portanto, uma vez mais, tem-se exemplo de sucedâneo normativo ao stare decisis.

O sexto sucedâneo é a própria Constituição de 1988, que tornou o controle concentrado e abstrato mais relevante que o controle difuso e concreto, invertendo a situação anterior. Isso porque ampliou significativamente a legitimação ativa para a ação direta, nela incluindo não apenas atores políticos relevantes (inclusive de oposição ao governo), mas, também, entidades da sociedade civil[19]. Com isso, fez do controle concentrado e abstrato peça chave para a compreensão da democracia brasileira. Vejam-se, por exemplo, as ações diretas em que governo e oposição dão sequência às disputas parlamentares ou que entidades várias escrutinam leis tributárias, previdenciárias etc. Discutida uma questão constitucional em ação direta (não em uma pletora de ações individuais), a decisão do Supremo Tribunal Federal será, de pronto, erga omnes.

O sétimo sucedâneo é o efeito vinculante introduzido pela Emenda Constitucional 3, de 1993. De início previsto especificamente para a nova ação declaratória de constitucionalidade[20] (que, de certo modo, recupera a representação interpretativa da Emenda 7, de 1977, inclusive no que se refere à respectiva “força vinculante”), o efeito vinculante veio a ser explicitado para a ação direta de inconstitucionalidade[21], bem como previsto para a arguição de descumprimento fundamental[22]. O efeito vinculante, inspirado no Direito alemão, “tem por objetivo outorgar maior eficácia às decisões proferidas” pelo Tribunal Constitucional (alemão), “assegurando força vinculante não apenas à parte dispositiva da decisão, mas também aos chamados fundamentos ou motivos determinantes”[23]. Fortaleceu-se a repercussão das decisões do Supremo Tribunal Federal sobre o controle difuso e concreto de normas, o que é particularmente útil às decisões afirmativas: (i) da constitucionalidade; ou (ii) de uma determinada interpretação constitucional, ou seja, decisões que não implicam eliminação da lei objeto do controle, mas, sim, manutenção da sua vigência (ou manutenção da sua vigência no pressuposto de uma determinada interpretação).

O oitavo sucedâneo, voltando a mecanismos que funcionam como sucedâneos normativos ao stare decisis no próprio controle difuso e concreto de normas, refere-se à mais recente reforma do Poder Judiciário, que adotou a “súmula vinculante”[24], outra tentativa de suprir a falta daquele mecanismo próprio ao common law. Trata-se de aperfeiçoamento da súmula existente desde a década de 1960, que agora foi dotada de “efeito vinculante” quando aprovada por maioria de dois terços dos membros do STF[25].

Enfim, a última reforma também introduziu, como requisito para o conhecimento do recurso extraordinário, a necessidade de o recorrente “demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso”[26], versão brasileira do writ of certiorari americano. A regulamentação do instituto também configura sucedâneo de stare decisis[27].

Anoto, aqui, feliz coincidência: no dia 20 de maio de 2013, tive a oportunidade de arguir a dissertação de mestrado “Ativismo judicial e mutação constitucional: uma proposta de reação democrática do controle difuso de constitucionalidade à tese de sua objetivação”, de Clara da Mota Santos, sob a orientação segura e qualificada do professor doutor Juliano Zaiden Benvindo, na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. O núcleo da dissertação — aprovada com recomendação de publicação — é, precisamente, controverter — de modo crítico — acerca da objetivação do controle difuso e concreto de normas ensaiada na Reclamação 4.335-5/AC.

Em suma, faço mera conclusão empírica e objetiva. Os votos divergentes refutam a solução do relator porque a compreendem como mutação constitucional que não pode ser levada a efeito pelo STF. Por sua vez, o voto do relator é, na prática, a mais recente busca de dar ao Direito brasileiro um novo sucedâneo ao stare decisis.


[1] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 31.
[2] “suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”
[3] GRINOVER, Ada Pellegrini, O controle difuso da constitucionalidade e a coisa julgada erga omnes das ações coletivas in RPGE-SP no 25, p. 30.
[4] “Só por maioria absoluta de votos da totalidade dos seus Juízes, poderão os Tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato do Poder Público.”
[5] “Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.”
[6] Constituição de 1988, art. 93, inciso XI.
[7] Sobre a regra do full bench: AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Incidente de arguição de inconstitucionalidade, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
[8] MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha, São Paulo: Saraiva, 1996, p. 60-61.
[9] BUZAID, Alfredo. Da ação direta de declaração de inconstitucionalidade no direito brasileiro, São Paulo: Saraiva, 1958, p. 111-114.
[10] Voto do Ministro Aliomar Baleeiro no Recurso Extraordinário n. 15.886/DF, Relator o Ministro Victor Nunes, julgado em 26 de maio de 1966.
[11] Constituição de 1988, art. 34, inciso VII, combinado com o art. 35, § 3o.
[12] “Abstrato”, claro, na hipótese de representação dirigida contra ato normativo típico (geral e abstrato). Porém, será concreto na hipótese de representação dirigida contra ato concreto (o que é possível à espécie).
[13] MENDES, Jurisdição constitucional…, p. 77.
[14] MENDES, Jurisdição constitucional…, p. 77.
[15] MENDES, Jurisdição constitucional…, p. 77.
[16] MENDES, Jurisdição constitucional…, p. 75-76.
[17] Constituição de 1946, art. 126.
[18] Regimento Interno do STF, art. 187: “A partir da publicação do acórdão, por suas conclusões e ementa, no Diário da Justiça da União, a interpretação nele fixada terá força vinculante para todos os efeitos.”
[19] Constituição de 1988, art. 103, caput.
[20] A Emenda n. 3, de 1993, acrescentou o seguinte § 2o ao art. 103 da Constituição de 1988: “As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo.”
[21] Lei n. 9.868, de 1999, art. 28, parágrafo único; posteriormente, Emenda Constitucional n. 45, de 2004, no que deu nova redação ao § 2o ao art. 103 da Constituição de 1988.
[22] Lei n. 9.882, de 1999, art. 11.
[23] Justificação da Proposta de Emenda à Constituição n. 130, de 1992 (que foi prejudicada pelo encerramento dos trabalhos da Revisão Constitucional, mas que ajuda a compreender o instituto acolhido pela Emenda n. 3, de 1993).
[24] Constituição de 1988, art. 103-A, acrescentado pela Emenda n. 45, de 2004.
[25] Constituição de 1988, art. 103-A, caput, acrescentado pela Emenda n. 45, de 2004.
[26] A Emenda n. 45, de 2004, acrescentou o seguinte § 3o ao art. 102 da Constituição: “No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros.”
[27] A propósito, os §§ do art. 543-B do Código de Processo Civil, acrescentados pela Lei n. 11.418, de 19 de dezembro de 2006.

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