Direito Comparado

O Direito polonês e suas conexões com o brasileiro

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

22 de maio de 2013, 10h31

Otavio Luiz Rodrigues - 20/06/2012 [Spacca]Um quadro do pintor modernista Jacek Malczewski, intitulado Melancholia (clique aqui para ver: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Malczewski_melancholia.jpg), é uma das mais perturbadoras caracterizações de uma nação (e de seu estado de espírito) já criadas por um artista plástico. Apesar das limitações, e da grande perda de impacto, de sua visualização na internet, essa obra consegue capturar todo o sabor (acre) e o significado da palavra melancolia para um povo humilhado, cujo território havia sido esquartejado entre três potências (Prússia, Rússia e Áustria), e que não encontrava razões para ter esperanças. Uma mulher, de vestes negras, pálida, encosta-se a uma imensa janela, que está entreaberta e dá para uma vereda, com árvores ao fundo. Ela é a própria expressão da melancolia. Atrás dessa mulher, dentro do que seria uma sala (ou uma ala de hospital, hospício ou quartel), estão crianças, camponeses famintos, monges, soldados, armados ou não, mulheres, padres e aristocratas. Em cada um deles, está a Polônia do século XIX. Ocupada, dividida, rebelde, esfaimada, impotente em face de seus tirânicos senhores.

Essa grande nação fora importantíssima na História europeia. Uma “república monárquica”, uma estrutura política paradoxal, com reis eleitos, que abrangia territórios atualmente pertencentes à Polônia, à Lituânia, à Ucrânia, à Alemanha e à Rússia, a Polônia defendeu as fronteiras orientais da Europa contra o Império Otomano. O rei polaco-lituano João III Sobieski derrotou o Exército otomano na Batalha de Viena (1683), encerrando o cerco à capital austríaca e iniciando o fim de quase 300 anos de avanço turco na Europa Oriental. Sua nobreza (Szlachta) era desproporcionalmente maior do que a existente em outras nações. A ascensão social era algo ordinário, seus membros orgulhavam-se dos elementos democráticos que existiam no processo político da República das Duas Nações (Polônia e Lituânia), além da tolerância religiosa.

A Polônia entrou em decadência no século XVIII, tendo desaparecido como estado-nação, esquartejada e dividida entre prussianos, russos e austríacos. Somente após a Primeira Guerra Mundial a Polônia renasceu como uma república autônoma, tendo de vencer os exércitos soviéticos em 1920 e confirmar seu novo status político internacional. A história desse país manteve sua sina trágica com a invasão russo-alemã em 1939. Sua heroica cavalaria de lanceiros e ulanos foi destroçada pelas divisões blindadas dos inimigos. A elite militar, política, religiosa e universitária conheceu o extermínio durante a ocupação. O massacre da floresta de Katyń (transformado em filme pelo cineasta Andrzej Wajda, que recebeu o Oscar de 2007, como melhor película estrangeira) é considerado uma tragédia nacional e um símbolo da tentativa de aniquilar a Polônia. Apesar da bravura dos oficiais poloneses, a serviço dos Aliados, o país tornou-se um satélite da antiga União Soviética até 1989, quando a oposição liderada por Lech Wałęsa, do sindicato Solidariedade, empolgou o poder e venceu eleições democráticas, com o apoio fundamental do papa polonês João Paulo II. A Polônia hoje é uma democracia, integrante da União Europeia, com moeda própria e um virtuoso processo de crescimento econômico, apesar da crise mundial.

Os vínculos do Brasil com a Polônia são perceptíveis, em larga medida, graças à imigração ocorrida desde meados do século XIX e até o final do século XX. A colônia polonesa é expressiva no estado do Paraná. Na década de 1920, ocorreu uma onda migratória de judeus poloneses, que se radicaram em São Paulo. Esse grupo também se dirigiu para o Rio de Janeiro e foi ampliado nas duas décadas seguintes por judeus poloneses, quase todos fugindo da perseguição nazista. Os laços diplomáticos são excelentes e cada vez mais brasileiros se encantam ao descobrir as belezas naturais e históricas dessa antiga nação do Leste Europeu. As dificuldades da língua, no entanto, impedem uma maior aproximação cultural, especialmente no campo jurídico, dada a necessidade do rigor terminológico e da precisão de linguagem nas traduções.

Um campo de investigação muito relevante para se conhecer o Direito polonês encontra-se em seu Direito Civil.

Muito bem. O Direito Civil da Polônia é marcado por três fortes influências: a suíça (o famoso Código Federal de Obrigações), a alemã (parte significativa do atual território polonês pertenceu à Alemanha ou foi por ela ocupado) e francesa, o que remonta às guerras napoleônicas e ao forte interesse desse imperador pela independência da Polônia. É curioso observar que, até à (re)fundação da República em 1918, os territórios poloneses submetiam-se a 5 diferentes regimes jurídico-cíveis: a) o Código Civil alemão; b) o Código Civil francês; c) o Código Civil austro-húngaro; d) o Direito feudal russo; e) o Direito consuetudinário e estatutário húngaro.

O processo de codificação do Direito Civil polonês ocorreu de maneira paulatina ao longo do século XX. Sob a influência do Código Federal de Obrigações da Suíça, em 1933, promulgou-se o Código de Obrigações. No ano seguinte, editou-se o Código Comercial. Nesse período, governava o país o marechal de campo Józef Klemens Piłsudski, herói da resistência polonesa à invasão soviética de 1920.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o governo polonês no exílio (legítimo representante da soberania nacional) e seus representantes nacionalistas no território ocupado, que lideraram o levante de Varsóvia, foram traídos e o país caiu sob o domínio soviético, que entregou a Polônia a um governo fantoche e, nos anos 1950, a Władysław Gomułka, sob cuja administração aprovou-se o Código de Família de 1950. Em 1964, publicou-se o Código Civil e o Código de Família e Guarda, ambos em vigor a partir de 1º de janeiro de 1965.

A queda do regime comunista em 1989 deu início a uma série de reformas na legislação civil. O Código de 1964 foi profundamente alterado em 1990, com a introdução de novas regras nos Direitos Reais, o que se justifica pela extinção do regime comunista de propriedade.

Outro fator que tem impulsionado reformas contínuas na legislação civil é a integração da Polônia na União Europeia. A internação de diretivas europeias fez com que se aprovassem novas leis sobre: a) serviços turísticos (1997); b) responsabilidade civil (2000); c) cláusulas abusivas e contratos de consumo (2000); d) contrato de time sharing (2000); e) contratos de crédito ao consumidor (2001); e) garantias nos contratos de consumo de compra e venda (2002).[1]

O Código Civil de 1964, com várias partes derrogadas ou alteradas, permanece em vigor, apesar de uma Comissão Independente de Codificação do Ministério da Justiça haver elaborado propostas para a reforma total desse código (e de outras leis polonesas). A estrutura do código polonês é tributária do modelo pandectista do Código Civil alemão. Ele divide-se em uma parte geral (livro 1) e uma parte específica que compreende os Direitos Reais (livro 2), o Direito das Obrigações (livro 3) e o Direito das Sucessões (livro 4). O Direito de Família é objeto de código setorial. Importantes áreas como Propriedade Intelectual, Direito Autoral, Direito Societário, Direito Securitário; Títulos de Crédito e Direito da Locação Predial sujeitam-se a normas extravagantes.[2]

A Parte Geral do Código Civil polonês apresenta estrutura muito semelhante a do Código Civil brasileiro, seja quanto à organização das normas, seja quanto a seu conteúdo.[3]

As pessoas são divididas em naturais e jurídicas. O marco do início da personalidade do homem é o nascimento. A lei estabelece a presunção do nascimento com vida (art. 9º). A maioridade civil, à semelhança de nosso direito, ocorre aos 18 anos ou com o casamento (art. 10). Resolvendo uma polêmica questão doutrinária que existe no Brasil, o Código polonês prevê que, se o casamento for anulado, não haverá prejuízo à maioridade advinda do matrimônio (art. 10, § 2º). São absolutamente incapazes os menores de 13 anos (art. 12), além dos doentes mentais, os que apresentem retardo ou transtorno mental, os alcoólatras e os drogadidos, que não consigam, em razão do vício, controlar seus próprios atos (art. 13).

Os direitos da personalidade, que foram positivados no Código Civil de 2002, são referidos em dois dispositivos do Código da Polônia (arts. 23 e 24). Eles compreendem o direito à saúde, à liberdade de consciência, ao nome e ao pseudônimo, à imagem, ao sigilo de correspondência, à inviolabilidade do domicílio, ao trabalho científico ou artístico e às patentes e invenções. A tutela dos direitos da personalidade poderá ser preventiva, repressiva ou ressarcitória. No caso da reparação de danos, o dinheiro poderá reverter para a vítima ou para uma finalidade social específica. A proteção aos direitos da personalidade não prejudica eventuais pretensões fundadas, em caráter específico, em outras normas, como as relativas aos direitos de autor e de patente.

O conceito de domicílio também é muito próximo do Direito brasileiro: é o lugar da residência da pessoa com o ânimo de permanência (art.25). No entanto, só se admite a hipótese de um único domicílio pessoal (art. 28).

Consideram-se dotados de personalidade jurídica os entes coletivos que hajam sido registrados (art. 35). A Polônia segue, nesse campo, a teoria do órgão (art. 38). Os entes não registrados estão admitidos a exercer algumas prerrogativas jurídicas, embora não detenham capacidade plena (art. 33).

É interessante que o Código Civil polonês, graças a alterações legislativas, define o consumidor e o empresário (art. 43, acrescido, e seguintes) em sua Parte Geral, no que se aproxima, em relação ao primeiro, do exemplo alemão pós-reforma de 2002, que introduziu normas de Direito do Consumidor no texto do BGB. O consumidor é qualquer pessoa natural que não age profissionalmente em suas relações (art. 22, acrescido). Os poloneses, também em conformidade com os alemães e diferentemente dos brasileiros, restringem o conceito de consumidor às pessoas naturais.

No que se refere à teoria do negócio jurídico, fica evidente a similaridade das categorias do Direito polonês com os esquemas pandectistas, que até hoje influenciam o Direito Civil brasileiro. Assim, a declaração de vontade há de ser livre, séria (o que afasta o animus jocandi e a reserva mental) e compreensível. É também previsto um regime específico para os defeitos dos negócios jurídicos, que podem ser considerados nulos ou anuláveis, ao reverso da hipótese genérica de anulabilidade presente no Direito brasileiro para essas figuras. O erro, o dolo e a coação contaminam os negócios e podem dar margem a sua anulabilidade.

A prescrição é objeto do último título da Parte Geral. Seu prazo ordinário é de 10 anos, embora existam prazos específicos para relações contratuais de trato sucessivo (3 anos) e para a responsabilidade delitual, que é de 3 anos (arts.119-120). Neste último caso, há um complexo sistema para se caracterizar o início e a extensão desse lapso: a) seu termo início conta-se da data em que o autor tomou conhecimento do dano e de sua autoria; b) no entanto, esse período não pode ser maior que 10 anos, contados da data em que o dano ocorreu; c) se o dano resultou de um crime ou de uma contravenção penal, a pretensão extingue-se após o decurso de 20 anos, contados a partir da data do ilícito, independentemente do momento no qual a vítima dele tomou ciência ou soube quem era o responsável por sua prática (art. 442, acrescido).

O relatório da Comissão Independente de Codificação do Ministério da Justiça, em uma passagem que guarda profundo interesse para os debates atuais sobre o Direito Civil brasileiro, afirma que “a essência do Direito Civil deve finalmente ser vista sob a perspectiva da divisão fundamental do sistema jurídico em Direito Privado e Direito Público. Por razões ideológicas, essa divisão foi questionada na doutrina comunista, e foi largamente ignorada no exame do Direito Civil durante o período da República Popular da Polônia. (…) Essa tradição remonta à República Romana. De acordo com Ulpiano, publicum ius est quod ad statum rei Romanae spectat, privatum quod ad singulorum utilitatem: sunt enim quaedam publice utilia quaedam private (D. 1,1,1,2).”[4]

E prosseguem os proponentes da nova codificação polonesa, em clara defesa da separação conceptual e principiológica entre o Direito Privado e o Direito Público:

“A despeito das crescentes intervenções do Estado nas relações de Direito Civil, a divisão público-privado do sistema jurídico é ainda aplicável. Esse entendimento é defendido nos escritos de Franz Bydlinski [respeitado professor austríaco da Universidade de Viena, falecido em 2011], que mostram que o Direito Privado é a lei que rege as relações sociais entre indivíduos, e que, em certo sentido, é a sua própria lei, algo muito distante do Estado. Essa forma de pensamento é muito similar ao entendimento polonês de E. Łętowska, que acredita que o âmbito do Direito Civil é autorreferente e que, geralmente, opera sem qualquer necessidade de envolvimento do Estado. (…) A doutrina do Direito Civil, agora emergente na República da Polônia, está retornando ao conceito de Direito Civil, que foi abandonado durante o período da República Popular da Polônia. Tal entendimento já foi incorporado aos livros didáticos e tem sido aceito pelo Tribunal Constitucional”.[5]

Aos leitores que se interessaram por uma coluna escrita sobre o Direito polonês e que chegaram até seu final, creio que encerram essa leitura com o sentimento de admiração por haver tantas semelhanças estruturais e de conteúdo com o Direito Civil brasileiro. O estudo comparado permite essa agradável descoberta, ainda que por acesso aos textos estrangeiros mediante o concurso do latim de nosso tempo (a língua inglesa). E, especificamente no que se refere ao Direito Civil, dá ensanchas a que se perceba o efeito de mais de dois mil anos da tradição civilística. Em um país tão antigo como a Polônia, com uma história tão rica e plena de sucessos e tragédias, com idioma totalmente diverso do português, desenvolveu-se um sistema jurídico-privado com enormes semelhanças ao existente no Brasil, uma nação de “apenas” quinhentos anos. Não é vulgar manter-se insensível ante a contemplação do Direito Civil e da beleza de seus fundamentos clássicos.[6]


[1] WOJEWODA, Michał. Introduction to Private Law. University of Łódź. Disponível em www.ejcl.org/112/greenbookfinal-2.pdf. Acesso em 21-5-2013.

[2] WOJEWODA, Michał. Op. cit. loc. cit.

[3] As referências aos artigos do Código Civil da Polônia foram extraídas de sua versão em inglês, apresentada em: LASOK, Dominik (Ed). Polish Civil Law. Netherlands: University of Leyden, 1975, com o necessário cotejo com as normas supervenientes, disponíveis em: http://www.lexadin.nl/wlg/legis/nofr/eur/lxwepol.htm. Acesso em 21-5-2013.

[4] RADWAŃSKI, Zbigniew (ed). Green paper: an optimal vision of the Civil Code of the Republic of Poland. Warsaw: Ministry of Justice, 2006. p. 9.

[5] RADWAŃSKI, Zbigniew (ed). Op. cit. p. 10

[6] Dedico esta coluna aos amigos Monika Wałachowska (Universidade Mikołaja Kopernika) e Marek Swierczynski, professores poloneses, colegas de estágio pós-doutoral no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht, de Hamburg, Alemanha (2011-2012).

Autores

  • Brave

    é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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