Senso Incomum

O "sentire" do professor e o valor da palavra "não"

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2 de maio de 2013, 8h00

Spacca
A introdução da diferença
O grande filósofo Ernildo Stein tem uma frase genial sobre a introdução de qualquer discussão (principalmente se esta vier acompanhada de uma cerveja Paulaner, privilégio que desfruto com meu amigo aos domingos no final de tarde): ou se introduz a diferença ou se discute sobre o idêntico, sobre o mesmo. Pois bem.  Assim, tanto no Direito como nos meios de comunicação, tem-se que as discussões acabam sobre o idêntico, sem a identificação da diferença. Quando “todos os gatos são pardos”, perde-se o sentido da diferença. Veja-se, por exemplo, o episódio da Lei dos Juizados Especiais Criminais (mormente a que aumentou o teto da competência). Se eu posso delinquir de 60 maneiras diferentes e ter a mesma punição (cesta básica), é porque a própria sociedade não se importa com os diferentes modos de delinquir. Se uma criança pratica várias “malcriações” e é castigada do mesmo modo, poderá escolher as “malcriações” mais atrevidas, pois não? E assim por diante. Assim também o é quando se discute temas como “novos” direitos das empregadas domésticas. Também quando se discute relações entre poderes. Logo quer se falar em “crise”, golpes institucionais. Nada disso. Nossa democracia é madura o suficiente para que possamos discutir desde a PEC 33 até a 37, assim como tantos outros assuntos. Só temos que saber introduzir, sempre, a diferença, para não discutirmos o mesmo ou o idêntico.

O Professor e a “pólvora”
Os alunos me contaram que, dia destes, assistiram a uma conferência de um Professor craque de cursinho. O assunto devia ser algo relacionado ao “novo juiz”. Dizia o professor que, nestes “novos tempos”, o juiz já não precisa buscar na lei a solução. Agora ele pode atuar com a sua ética. Com seus valores. Inclusive utilizou um exemplo de Direito do Trabalho, algo como “vejo um contrato e não importa o que está escrito; eu sei que o sujeito foi explorado; o juiz sente isso; sabe isso”. Com base do “princípio da realidade”. Pois é. Deve ser a tal da “busca da verdade real”, certo? Deve ser porque esta é a era dos “princípios” e dos “valores”… Pensei comigo: que coisa isso, não? Eis ai um bom exemplo entre a diferença e o mesmo. O que seria democracia para o referido professor? Provavelmente aquilo que “sente que é”. Afinal, sentença vem de sentire, pois não? Diante disso, digo apenas, com o poeta: faz escuro, mas eu canto. No entremeio da discussão da PEC 33 (para mim, uma discussão normal, que não deveria causar esse stress institucional), bem que que o Congresso poderia aproveitar para fazer umas emendas no projeto dos Códigos de Processo Penal e de Processo Civil (como sugerem Marcelo Cattoni, Dierle Nunes e Alexandre Bahia). Em que lugar? Ali, bem ali onde fala do “livre convencimento” ou “livre apreciação da prova” (enfim, enfrentar a questão da “gestão da prova” de frente!). Atacar-se-ia o problema na origem. Meus fiéis leitores sabem do que estou falando.

A PEC das domésticas e a resistência das “elites”
As elites (com ou sem aspas) teimam em aceitar que o andar de baixo possa ter direitos. Há no ar um “quê” de conspiração contra a implementação da emenda aprovada. Isso pode ser visto pelas reportagens que agora mostram como é “lá fora”. Jornais e revistas informam que na França quase não há domésticas e assim por diante. “Fulano e fulana moram em Londres e fazem eles mesmos os serviços de casa”. E vem a repórter dizendo que, “com os novos direitos, haverá desemprego, porque as pessoas farão elas mesmas o trabalho antes-feito-pela-empregada-doméstica”. Esse é o plano A do nosso “andar de cima”. Fazer terrorismo contra a nova legislação, para, com um plano B, arrancar algum da viúva. Explico: com os novos direitos, quer-se “repartir” o prejuízo. E sabem com que é a repartição? Com o restante da patuleia, ou seja, ao invés de pagarem 40% de multa do FGTS, só querem pagar 10%. O restante seria subsidiado pela Viúva, com os impostos da rafanalha que não tem empregadas (ou não pode tê-las).

É incrível a capacidade de adaptação darwiniana de nossas classes médio-superiores. Ou se penduram no BNDES, formando aquilo que se pode chamar de “capitalismo chapa branca”, ou buscam diretamente na bolsa da Viúva o modo de se “ressarcirem” das “injustiças”. Não impressiona essa conversa, trazendo o exemplo francês, inglês, norte-americano etc. Quer dizer que agora é possível fazer o serviço que antes a empregada fazia? Quer dizer que, se for para pagar mesmo, “a gente mesmo pega no batente”, como diz um entrevistado para a repórter? Pois é. Confissão de Casa Grande & Senzala. Por isso o sucesso daquela propaganda que falava na “volta dos bons tempos”. Por isso, nossa função é a de perguntar: “Bons tempos para quem, cara pálida”?

A importância da palavra “não”
Um dos testes que se utiliza(va) no neopositivismo é a aposição da palavra “não” a um enunciado. Não vou explicar aqui o que queria o neopositivismo lógico, remetendo o leitor para o meu Hermenêutica Jurídica e(m) Crise e Direito e O Direito e sua Linguagem, de Luis Alberto Warat e Leonel Severo Rocha. Uma dica grátis: um enunciado só seria científico se passasse pelo filtro da sintaxe e da semântica (a pragmática ficava de fora). Assim, por exemplo, se quero saber se um enunciado passa pelo critério da semântica, coloco um “não. Se eu digo “chove lá fora”, posso comprovar o enunciado até se não estiver chovendo, bastando colocar o “não”. Logo, é verdadeiro dizer que não está chovendo lá fora. Por outro lado, se eu disser “que os fantasmas apreendem Direito lendo resumos plastificados de Direito e resumos de livros simplificados”, de nada adianta colocar um “não”, porque fantasmas não existem (além de que, e me permito fazer a blague,  é impossível comprovar que alguém possa apreender algo em resumos plastificados e nos livros simplificados de Direito…!).

Assim, parcela considerável do que se diz em acordão ou na doutrina (há bons indicativos disso em bons livros) não passaria pelo critério do velho neopositivismo (veja-se que, como adepto da hermenêutica, sou um crítico implacável do neopositivismo, mas…). Pegue a frase e coloque um “não”. Se nada muda, é porque o argumento é irrelevante, írrito (ao menos, nesse plano de discussão). Assim, quando alguém invoca máximas ou enunciados meramente retóricos, coloque um “não” na frase. Se não mudar “o mundo” (ou a sua vida), é irrelevante.

Quando não existem elementos seguros que demonstrem determinada afirmação, a sua negação tem o mesmo “valor”. Podemos fazer um teste com os princípios. Peguemos um e testemos: “afetividade” é um princípio; mas se dissermos que afetividade não é um princípio, nada muda(rá). Pela simples razão de que a afetividade não possui normatividade (afinal, princípios não são normas?). Gosto desse teste: “Fulano foi solto em face da aplicação do princípio da confiança no juiz da causa…” Pergunto, então: qual é a diferença em dizer que “fulano não foi solto com base nesse mesmo princípio”? Não há nem comprovação teorética, nem qualquer possibilidade de comprovação empírica acerca da normatividade de tais princípios… Sequer há dados em tais decisões que diretamente explicitem as razões pelas quais se estaria confiando (ou não) no juiz da causa. E assim acontece com outros 57 princípios (no mínimo) que “andam por aí feito andarilhos medievais”. Façam o devido teste. Sugiro mais um: o da cooperação processual. E ponha um não…!

Sigo. Dizer que a maioria das pessoas gosta de tal coisa, sem qualquer pesquisa séria ou algo do gênero, pode facilmente equivaler a dizer o contrário. Isso está presente nos estereótipos, raciocínios de varejo que são transportados ao atacado. Frases como “o carioca é gozador”, não leva em conta a seguinte questão: de qual carioca estão falando? O da zona sul (das novelas!) ou do sujeito que pega três ou quatro ônibus e sofre com um cotidiano insalubre? E frases como “hoje a mulher na sociedade está emancipada”, etc (sugiro, aqui, a leitura de um livro de Dante Moreira Leite, de 1954, chamado O Caráter Nacional Brasileiro — A História de uma Ideologia). Trata-se de um enunciado estereotipado, porque não leva em conta as milhões de mulheres não emancipadas, por exemplo, as empregadas domésticas.[1] Afinal, existiria o conceito de “a mulher fundamental” ou uma “essência de mulher”? Quero dizer com isso que o Direito está recheado de estereótipos e mitos. A verdade real é um desses mitos. Dizer que “o juiz no processo penal busca a verdade real” equivale a dizer o contrário. Verdade real é “puro” exercício de voluntarismo. Ponha um “não” e nada muda (a não ser para quem sofre a condenação, é claro).  Pura anemia significativa. E assim por diante. Para não esquecer: que diferença faz entre dizer que o ordinário se presume e o ordinário “não” se presume? Nem o Malatesta saberia explicar nos seus (chatíssimos) dois volumes.

Trago isso à baila porque estava relendo textos antigos meus e organizando os velhos xerox de aulas de antanho. Dei-me conta que, ouvindo o que se diz sobre a PEC das Domésticas e da PEC 33, o velho neopositivismo lógico (ou empirismo contemporâneo) — considerado superado (e disso tenho convicção) — ainda poderia nos ajudar a, pelo menos, rejeitar um conjunto de argumentos. E no cotidiano das práticas jurídicas. Por exemplo: se somente 7% dos homicídios são resolvidos pela polícia, qual seria o argumento empírico para dizer que, se a polícia tivesse o monopólio da investigação (caso da PEC 37), isso mudaria? Qual é a prognose? Falar por estereótipos é se colocar do lado mais fácil da linguagem. “Haverá demissões em massa”, por exemplo, é um enunciado carregado de significado, que, a par de estar destituído de qualquer dado empírico, tem o fito de assustar a malta.   

Outdoors paulistanos e o conhaque Veterano
Na linha de raciocínio que estou trabalhando nesta coluna — que, não esqueçamos, chama-se Senso Incomum —, leio na Folha de S.Paulo que “empresas usam brecha legal para fazer propaganda em São Paulo” (clique aqui para ler). Desde 2007, pela Lei da Cidade Limpa, a cidade de São Paulo proibiu outdoors. Ocorre que, segundo a notícia, as empresas estariam fazendo um desvio na legislação, com banners que ficam um metro dentro do estabelecimento. Já estão pensando, inclusive, em mudar a lei, para fechar a aludida “brecha” (i)legal.

O Direito tem dessas coisas. Não fosse assim e não teríamos emprego. O papel do jurista é, entre outras coisas, localizar essas nesgas na legislação. Aí começa a discussão entre a “intenção da lei” (sic), a vontade da norma e/ou a vontade do legislador. Claro que são argumentos retóricos.

O episódio de São Paulo me fez lembrar a discussão da Lei das Carreteras, da Espanha, case que discuto no livro “Garantismo, Hermenêutica e Neoconstitucionalismo — diálogos com Luigi Ferrajoli” (Livraria do Advogado, 2012).  Trata-se do “caso do touro Osborne”[2], julgado pelo Superior Tribunal de Justiça da Espanha. Em 1988, foi aprovada na Espanha a Lei das Carreteras, que, em um dos seus dispositivos (artigo 24), proibiu a colocação de publicidade nas zonas vizinhas e visíveis da estrada. A pena era uma pesada multa. A empresa Osborne, antes da entrada em vigor da lei, retirou a palavra “veterano” dos imensos touros negros à beira da estrada (eram imensos outdoors, contendo ao centro a marca do conhaque Veterano).

Entrando em vigor a lei, a ampresa fabricante do conhaque foi multada. A querela chegou ao STJ espanhol. A discussão: o que é publicidade? O “imenso touro negro” é publicidade, mesmo sem a palavra “veterano”? O tribunal deu ganho de causa ao fabricante do conhaque, utilizando argumentos mais ou menos como “o touro já não transmite qualquer mensagem aos espectadores, na medida em que a palavra ‘veterano’ fora apagada”; “para a generalidade dos cidadãos, o touro se transformou em algo decorativo, que já faz parte da paisagem”; “a presença da expressão ‘veterano’ não faz com que aumentassem o consumo do conhaque”; “o touro é esteticamente bonito”; “o touro é como uma escultura, não como um outdoor”.

Percebe-se, aqui, nitidamente, o modo com a decisão foi exarada sob o crivo da discricionariedade (ou do livre convencimento). O tribunal decidiu sem qualquer respeito à integridade e à coerência do Direito, além de não ser uma decisão de princípio. Por exemplo, como saber o modo como as pessoas veem os grandes touros negros à beira das autopistas? Está-se diante de um enunciado empírico, em que o “sim” e o “não” são absolutamente arbitrários. Do mesmo modo, o argumento acerca do (não) aumento do consumo é irrelevante. Mais ainda, qual é a importância de se afirmar que o touro é esteticamente belo? Como aferir o gosto? E qual a relevância jurídica desse argumento? Por fim, fosse relevante o argumento acerca da “finalidade decorativa” do touro, estar-se-ia liberando a colocação de qualquer escultura à beira das autopistas espanholas.

Observe-se: o único argumento plausível, mas não (tão) convincente, foi o da perquirição acerca da finalidade da regra. O fim seria duplo: a) evitar a distração dos motoristas; b) evitar a contaminação paisagística. Disse o tribunal: a presença do touro não vai contra essas duas finalidades da lei. Logo, o touro pode ficar. Ora, mesmo que se aceite o argumentos de que o fim da lei é evitar a distração dos motoristas (o que é plausível), fica a pergunta que diz respeito às especificidades do caso concreto (à faticidade): como pode o tribunal afirmar que o touro não atrapalha, se não havia qualquer pesquisa empírica a respeito? Portanto, essa afirmação do tribunal é fruto de uma indevida discricionariedade (eis, aqui, o busílis de minha cruzada antidiscricionária). O mesmo se aplica ao segundo argumento: o touro não contamina a paisagem. Sob qual argumento empírico (e estético) pôde o tribunal fazer tal afirmação?

Veja-se, desse modo, os problemas que envolvem a admissão do poder discricionário do Poder Judiciário. E, mais do que isso, o problema de afirmações sem qualquer possibilidade de comprovação empírica. Como no caso das empregadas domésticas; como na PEC 33 (aliás, poderíamos aproveitar a temática dessa PEC para discutir as Súmulas Vinculantes, pois não? Não seria bom que o Congresso pudesse verificar se o processo de formação do enunciado obedeceu um DNA, como sustento em Verdade e Consenso? E não seria bom também que se aprovasse um dispositivo permitindo a arguição da inconstitucionalidade de uma Súmula Vinculante, como Georges Abboud e eu sustentamos em O Que é Isto — O precedente e as Súmulas Vinculantes?); como, provavelmente, ocorrerá no caso da Lei que proíbe outdoors em São Paulo.

Entre a “segurança” e o “naufrágio… a diferença!
Liguemos os fios da PEC das Domésticas, da fala do professor “dos valores” e da pólvora que ele “descobriu”, da validade do argumento neoempirista e o caso dos outdoors das carreteras da Espanha e da cidade de São Paulo. De tudo isso podemos retirar uma conclusão, já antecipada por mim no momento de abertura dessas reflexões: é preciso fazer esforço para, no interior do debate, ser produzida a diferença. Se for para dizer o mesmo, aquilo que todos já disseram, melhor não se pronunciar. A diferença é a marca necessária para a proficuidade das discussões.

Evidentemente, lançar-se nos meandros dessa produção de diferença é algo arriscado. Um filósofo chamado Hans Blumenberg já disse que a metáfora básica para se referir à existência é a do naufrágio. Durante muito tempo, em outros tempos históricos, os seres humanos se lançavam ao mar arriscando a sua vida numa busca indefinida por novos lugares e novas formas de vida. Esforçando-se, enfim, pela produção da diferença.

O naufrágio é o risco que circula toda essa empreitada. Mas, entre a segurança proporcionada pela vida em terra firme — que representa um pouco de mais do mesmo — e os perigos do naufrágio, melhor ficarmos mesmo com os segundos. Afinal, como já percebera Guimarães Rosa, enunciando insistentemente pela boca de Riobaldo: “viver é muito perigoso…”


[1]Atenção: escrever na internet é um mergulho nas profundezas da alma humana (embora possamos talvez colocar um “não”…). Mexe-se com os melhores e os piores instintos, sentimentos de todos os tipos, amores, ódios, inveja, burrice, nesciedade, ansiedade, ignorância e tudo o mais que possamos imaginar. Este texto está recheado de metáforas. Espero que ninguém venha discutir o periférico (por exemplo, se o Touro deveria ficar nas “carreteras” ou sobre “o carioca da zona sul”). No escurinho das redes, os néscios perdem a timidez (neste caso, confesso que posso estar correndo o risco de alguém dizer que também se poderia dizer que “os néscios não perdem a timidez”, porque não tenho elementos seguros para a afirmação…). Pois é. Os leitores julgarão a frase. Ou “os leitores não julgarão a frase”…!
[2] Agradeço ao meu amigo e grande jurista professor doutor Antonio Garcia Amado os comentários e discussões acerca desse exemplo do Direito espanhol.

*Texto alterado no dia 16/10/2017

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