União e estados desacreditam a não cumulatividade
1 de maio de 2013, 8h01
Embora sucinto, o dispositivo não é destituído de significado. Toda expressão constitucional tem um sentido intrínseco que cumpre desvelar. Entender o contrário equivale a negar rigidez ao texto supremo.
A não cumulatividade visa a prevenir a reiteração da incidência de tributo plurifásico, o que pode ser obtido compensando-se, contra o produto da alíquota pela base de cálculo “cheia”, o montante de tributo suportado nas entradas geradoras de créditos (método imposto-contra-imposto).
Técnica alternativa é a da base-contra-base. Trata-se de deduzir da base de cálculo o valor dos dispêndios geradores de créditos, aplicando-se a alíquota sobre a diferença assim obtida.
Em qualquer desses sistemas, cabe distinguir entre os regimes “do crédito físico” e “do crédito financeiro”, que concernem (i) aos dispêndios cujo ônus tributário poderá ser deduzido do tributo calculado sobre a base de cálculo “cheia” (imposto-contra-imposto) ou (ii) às despesas que serão abatidas no processo de apuração do valor tributável (base-contra-base).
Tem-se crédito físico quando são admitidas somente as entradas de insumos, isto é: dos bens tributados que se integram ao produto final ou ao resultado material do serviço tributado, e dos bens ou serviços tributados que se consomem na produção do primeiro ou na execução do segundo.
Este critério — carente de toda lógica, entre outros motivos, porque exclui os bens do ativo imobilizado, tão essenciais quanto os insumos — vicejou a partir de uma interpretação literalista dos comandos veiculadores da não cumulatividade para o IPI e o ICMS e pode ser aceito, sob protesto, apenas nos tributos incidentes sobre bens ou serviços determinados (caso dos impostos referidos), nos quais é possível identificar com precisão, dentre o conjunto dos fatores produtivos, aqueles que foram submetidos à mesma exação e que se incorporaram ou consumiram na forma descrita no parágrafo anterior[1].
Deveras, não é concebível uma tal segregação, quase à pinça, no âmbito de tributos de feitio universal, que gravem todas as receitas do particular e incidam sobre todas as aquisições relevantes para o desempenho de sua atividade.
Por sua vez, no regime do crédito financeiro (que também pode, em tese, aplicar-se a impostos como o ICMS e o IPI), consideram-se todos os dispêndios sujeitos ao tributo e imprescindíveis à atividade econômica por ele onerada — por “atividade econômica” entendendo-se a produção ou a venda de bens e a prestação de serviços, mas também a geração de outras utilidades não enquadradas em qualquer desses conceitos, como a intermediação financeira e a locação de bens móveis ou imóveis.
A imprescindibilidade pode ser entendida em sentido restrito — atingindo exclusivamente os bens e serviços e demais utilidades essenciais à atividade operacional do contribuinte, como insumos, bens do ativo (inclusive intangíveis), custos imobiliários dos estabelecimentos operacionais etc. — ou em sentido lato, para contemplar também os bens, serviços e utilidades necessárias à atuação normal da empresa como um todo, caso das despesas imobiliárias com áreas administrativas, do material de escritório, dos programas de controle contábil ou fiscal etc.
Nesta última hipótese, os limites da não cumulatividade se aproximarão (excluídas as despesas não atingidas pelo tributo não cumulativo, como os pagamentos de empregados) da definição de despesas dedutíveis para efeito de imposto de renda, extensão que tem sido recentemente advogada em matéria de PIS e Cofins[2].
Tal leitura ampliativa parece-nos ser a mais consentânea com a Constituição, seja para evitar a dupla tributação de certas receitas (na pessoa do fornecedor e na do adquirente a que se vedam os créditos respectivos), seja porque — salvo abusos que devem ser combatidos, inclusive por presunções relativas (compra de veículos para diretores, por exemplo) — nenhuma empresa faz dispêndios que não julgue necessários à sua atividade, julgamento que, não se tendo extrapolado os campos da licitude e da razoabilidade, não pode, sem ofensa ao direito de livre organização dos negócios privados, ser menoscabado pela lei tributária.
Pois bem: as Leis nº 10.637/2002 e 10.833/2003, que disciplinam o PIS e a Cofins não cumulativos, autorizam créditos quanto aos seguintes dispêndios[3]:
i) bens adquiridos para revenda;
ii) bens e serviços utilizados como insumo na prestação de serviços e na produção de bens destinados à venda, inclusive combustíveis e lubrificantes;
iii) aluguéis de prédios, máquinas e equipamentos, pagos a pessoa jurídica, utilizados nas atividades da empresa;
iv) valor das contraprestações de operações de arrendamento mercantil de pessoa jurídica, exceto de optante pelo Simples;
v) máquinas, equipamentos e outros bens incorporados ao ativo imobilizado, adquiridos ou fabricados para locação a terceiros ou para utilização na produção de bens destinados à venda ou na prestação de serviços;
vi) edificações e benfeitorias em imóveis de terceiros, quando o custo, inclusive de mão de obra, tenha sido suportado pela locatária;
vii) bens recebidos em devolução, cuja receita de venda tenha integrado faturamento do mês ou de mês anterior, e tributada;
viii) energia elétrica consumida nos estabelecimentos da pessoa jurídica;
ix) energia elétrica e energia térmica, inclusive sob a forma de vapor, consumidas nos estabelecimentos da pessoa jurídica;
x) vale-transporte, vale-refeição ou vale-alimentação, fardamento ou uniforme fornecidos aos empregados por pessoa jurídica que explore as atividades de prestação de serviços de limpeza, conservação e manutenção.
Diante do alcance universal do PIS e da Cofins e do significado que aí adquire a não cumulatividade, entendemos que uma tal enumeração de despesas geradoras de créditos só pode ser entendida como exemplificativa.
Com efeito, de um lado, a lista refere-se apenas a algumas atividades (comércio — item i; prestação de serviços e indústria — item ii; e locação de equipamentos — item v)[4], deixando de fora a intermediação financeira, a locação de imóveis ou de bens móveis distintos de equipamentos, a cessão de direitos etc.
De outro, alude somente a insumos empregados na indústria ou na prestação de serviços (item ii, reiterado de forma específica no item x), sem contemplar os outros tipos de atividades acima referidos; aos dispêndios com a fabricação ou aquisição de bens do ativo imobilizado destinados a aluguel, à produção de bens para venda ou à prestação de serviços pelo próprio contribuinte (item v), mas não ao emprego em atividade comercial deste ou ao desenvolvimento de outras atividades; às despesas com imóveis de terceiros (itens iii e vi), mas não com imóveis próprios; não faz qualquer referência a material de embalagem e assim por diante.
Não há como pretender atribuir-se caráter taxativo a amontoado tão errático de previsões e de lacunas.
E há mais: não satisfeita com a feição altamente limitativa da lista de dispêndios geradores de créditos, a Receita Federal do Brasil tem atuado no sentido de dar exegese restritiva ao conceito de “insumo” nela veiculado, como se verifica em inúmeras soluções de consultas[5].
Para nós, insumo é tudo aquilo que se integra ao produto final ou ao resultado material da atividade tributada, ou que se consome na produção do primeiro (os ditos produtos intermediários) ou na execução da segunda: a energia elétrica que alimenta os computadores utilizados na atividade bancária, para citar apenas um exemplo.
Registramos, ademais, que a essencialidade do insumo pode ser de natureza ontológica (imprescindibilidade material para a obtenção do resultado) ou jurídica (imposição legal ou regulamentar do uso de certos bens ou serviços, como o material de limpeza em indústrias alimentícias).
Dessa maneira, embora não restrinjamos toda a questão da não cumulatividade à noção de insumo — pois há vários dispêndios essenciais à atividade, e logo geradores de créditos, que não se encaixam neste conceito, caso dos uniformes (inclusive equipamentos de proteção), da alimentação e do transporte dos trabalhadores, dos serviços de vigilância e limpeza do estabelecimento, das despesas com imóveis próprios, dos royalties pelo uso de marcas ou patentes, dos pagamentos por bens ou serviços não utilizados em regime de take-or-pay, do transporte de produtos acabados até o ponto de venda[6][7] etc. —, pensamos que aquela noção exige definição larga, não só no âmbito do PIS/Cofins, mas também no do ICMS e do IPI.
Nessa linha, entendemos que nenhum produto essencial à atividade produtiva stricto sensu, que não constitua bem do ativo imobilizado, pode ser tido por material de uso e consumo, como têm pretendido os vários Fiscos, por exemplo, quanto aos lubrificantes de equipamentos, aos reagentes químicos necessários ao controle da produção e aos refratários empregados na indústria siderúrgica.
Embora a questão permaneça controvertida, alguns avanços têm sido notados, como os acórdãos do Tribunal Regional Federal da 4ª Região[8] e da Câmara Superior de Recursos Fiscais do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf)[9] que conceituam insumos para o PIS e a Cofins como todos os produtos e serviços inerentes à produção.
Cabe ainda mencionar o Recurso Especial 1.246.317/MG, ora em curso na 2ª Turma do STJ, que versa o direito de créditos de PIS/Cofins por material de limpeza e desinfecção e por serviços de dedetização aplicados no ambiente produtivo. O julgamento está suspenso por pedido de vista do ministro Herman Benjamin, mas já conta com os votos favoráveis dos ministros Mauro Campbell Marques, Castro Meira e Humberto Martins.
A não cumulatividade anda com pouco crédito com o Fisco e o legislador. Que não lhe falte o aval do Judiciário.
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