Judicialização da política

Vinculação orçamentária permite julgamento de contas

Autores

25 de junho de 2013, 7h18

O amadurecimento da convivência entre os sistemas da política e do Direito tem ocorrido ao longo de vários testes de aplicabilidade de dispositivos nucleares da Constituição de 1988. Um deles reside na busca pela máxima eficácia dos direitos fundamentais, donde decorre a propalada judicialização da política.

A despeito de tal tensão já ser bastante conhecida e seu debate estar relativamente sedimentado na comunidade jurídica, falta retomá-lo sob outro viés, qual seja, os limites que as vinculações orçamentárias que militam em prol dos direitos fundamentais impõem à possibilidade de julgamento estritamente político e imotivado das contas governamentais pelo Legislativo.

O que se pretende aqui é o alargamento do alcance das normas constitucionais para que cheguem às zonas cinzentas onde usualmente se defende a primazia do julgamento político sobre as demais variáveis em jogo. Eis porque nos perguntamos se se revelam constitucionalmente adequadas tal primazia e a falta de motivação formal dela decorrente, sobretudo, quando tal julgamento desconhece e tergiversa quanto aos patamares de gasto mínimo em saúde e educação.

A origem da tensão ora suscitada reside no fato de que, ao atribuir a titularidade do controle externo ao Poder Legislativo no artigo 71 da Constituição de 1988 e determinar que o julgamento das contas do Chefe do Executivo compete àquele Poder (artigo 49, IX e artigo 31, §§ 1º e 2º), o constituinte não se descuidou de providenciar o devido sopesamento técnico para que tal julgamento não perdesse de vista os limites da própria Constituição.

Quem julga é o Legislativo, mas não o faz a partir do nada (ex nihilo). Muito pelo contrário, a Carta Magna previu a necessidade de parecer prévio[1] expedido pelo Tribunal de Contas, o qual, embora opinativo, propõe uma consistente reflexão sobre todas as responsabilidades constitucionais que devem ser avaliadas no curso do julgamento das contas anuais do Chefe do Executivo.

Dito de outro modo, as aludidas contas no Brasil devem passar por filtro prévio de análise produzido por aparato especializado, de modo a reduzir subjetividades de caráter político-partidário, conferindo maior objetividade fática e imparcialidade substantiva no julgamento a ser feito pelos seus respectivos Legislativos.

Não obstante os pareceres prévios emitidos pelos Tribunais de Contas levantarem dados motivados nos fatos da vida contábil, financeira, orçamentária, administrativo-operacional e patrimonial do exercício fiscalizado e mesmo quando apresentam interpretação sedimentada nas mais diversas instâncias de controle interno e externo (incluída a via judicial), observamos[2] que os índices de adesão aos citados pareceres, especificamente quando indicativos da reprovação das contas, mostram-se, em sua maioria, injustificadamente baixos.

Vale lembrar, a esse respeito, que a decisão do Legislativo Municipal, em se tratando de Contas Anuais do prefeito, há de ser ainda mais sopesada e refletida que a dos demais entes federativos, por força do disposto no § 2º do artigo 31 da Constituição Federal. Tal norma definiu quórum qualificado de dois terços dos membros da Câmara de Vereadores para que fosse refutado o quanto aferido e concluído no parecer prévio expedido pela Corte de Contas competente.

O rigor adicional do rito de análise das contas a ser feita pelos Legislativos Municipais contrasta com o fato de que é exatamente ali que mais ocorrem hipóteses de julgamento imotivado contra todas as evidências dos pareceres prévios que os subsidiam.

A análise percentual dos pareceres desfavoráveis que deixam de prevalecer (para usar a terminologia adotada pelo Constituinte) nas respectivas Câmaras Municipais, que em algumas regiões[3] chegam a variar[4] entre 90% e 100% do seu número total, indica que — ao realizar seus julgamentos — algumas Edilidades têm se afastado de primados basilares de nosso ordenamento.

Ora, se a tônica do Estado Democrático de Direito impõe ao agente público o dever de atuar dentro do círculo de previsão jurídico-normativa, o afastamento de preceitos expressamente previstos na Constituição não poderia se dar sob o simples argumento de se tratar de decisão estritamente política.

A questão ganha ainda maior relevo quando a emissão dos pareceres desfavoráveis decorre de descumprimento dos índices estabelecidos na Constituição Federal para o custeio das políticas públicas que dão consecução aos direitos fundamentais à saúde (artigo 198, § 3º, regulamentado pela Lei Complementar 141, de 2012) e à educação (artigo 212).

É precisamente sobre este aspecto que delimitamos o foco do presente debate até para que não percamos de vista o seu caráter de irrevogabilidade ou mesmo intangibilidade, por envolverem cláusulas protegidas pela eficácia irradiante extraída do sistema de proteção aos direitos fundamentais previsto no ordenamento constitucional brasileiro.

Usamos aqui o termo irrevogável tomando-o de empréstimo à clássica doutrina do ato administrativo, segundo a qual ato vinculado[5] não se sujeita a revogação. Daí é que decorre a tese central deste artigo de que as Câmaras de Vereadores não podem — a título de julgamento político — passar por cima de critérios de vinculação constitucional explícita para mitigar os percentuais objetivos de gasto mínimo em saúde e em educação.

A teoria do ato administrativo — já de há muito — nos ensina que ato vinculado não pode ser refutado por avaliação política, ou seja, não cabe mero juízo de conveniência e oportunidade para extinguir/ retirar do ordenamento um ato vinculado.

No presente conflito que nos serve de objeto de reflexão, consideramos que, quando os Tribunais de Contas apreciam o cumprimento de porcentuais de gasto mínimo atrelados ao comportamento da receita de impostos e transferências (no caso dos estados e municípios), estabelece-se ali um critério de vinculação que só pode ser afastado mediante requantificação motivada dos gastos em saúde e em educação ou, por outro lado, requantificação da receita que serve de base de cálculo do aludido patamar de despesa vinculada. Não cabe aprovar as contas do Chefe do Executivo que incorreu em déficit de custeio nas aludidas áreas sem motivar…

O dever de motivar que ora sustentamos é extraído diretamente do caráter vinculado do patamar de gasto mínimo. Essa é a razão pela qual os motivos que vierem a ser apresentados devem, necessariamente, ser lastreados em provas fáticas relativas ao fluxo da despesa ou da receita, pois nenhum outro argumento poderia militar contra a proteção constitucional que ampara o custeio dos direitos fundamentais à saúde e à educação.

Não bastasse tal arcabouço protetivo constitucional, lembramos ainda a clara dicção dos artigo 4º e 111[6] da Constituição do Estado de São Paulo de 1989, que reclama decisão motivada de toda a Administração Pública no âmbito do território paulista.

Por analogia, também buscamos a forte orientação inscrita no artigo 50, incisos I e VII da Lei Federal 9.784, de 1999, donde se extrai o dever de motivação formal das decisões que “neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses” ou ainda “deixem de aplicar jurisprudência firmada sobre a questão ou discrepem de pareceres, laudos, propostas e relatórios oficiais”.

Nem se diga que tais dispositivos da Constituição Paulista e da Lei Federal de Processo Administrativo não alcançam os julgamentos políticos de contas… O regime que vimos defender tem lastro constitucional e densidade no ordenamento infraconstitucional. Ora, ainda que os julgamentos das contas anuais dos Chefes de Executivo tenham natureza jurídica de ato político e não decisão administrativa em sentido estrito, constitucionalmente se impõe a necessidade da sua motivação, quando implicarem — na prática — acatamento de déficit de custeio para os direitos fundamentais à saúde e à educação, sob pena de lesão às próprias vinculações orçamentárias em comento.

Tal conclusão decorre, como já dito, de vinculação constitucional irrevogável e intangível pelo juízo de conveniência e oportunidade dos Parlamentos. Pelo princípio da unidade[7] da Constituição, o julgamento de contas previsto no artig 49, IX e no artigo 31, §§ 2º e 3º da CR não pode, nem deve concorrer para esvaziar fática e teleologicamente as vinculações inscritas nos artigos 198 e 212 também da Constituição Federal.

Eis porque sustentamos que o processo que leva a julgamento as contas anuais dos Executivos deverá revestir-se não apenas de contornos políticos, característicos das decisões no âmbito do Poder Legislativo, mas também deve se amoldar ao sistema constitucional protetivo dos direitos fundamentais, buscando no princípio da motivação o equilíbrio necessário entre competências políticas e seus reflexos limites constitucionais. Afinal, no julgamento das contas anuais dos Executivos, os Legislativos podem muito, mas não podem tudo…

Por fim, mas não menos importante, cumpre lembrar que a omissão dos Legislativos em julgar as contas dos seus respectivos Chefes de Executivo conforme a Constituição (mormente no que se refere ao dever de cumprir as vinculações orçamentárias que asseguram custeio mínimo aos direitos fundamentais à saúde e à educação) é suscetível de controle na forma do artigo 5º, XXXV da nossa Carta Magna.

Não bastasse a inconstitucionalidade da aludida omissão, a pura e simples desconsideração imotivada do parecer prévio das Cortes de Contas pelos Legislativos também mascara eventual dolo do agente público que descumpriu seu dever de consecução mínima das citadas políticas públicas. E, o mais grave, é que tal modus operandi acaba por negar à sociedade a possibilidade de ver aquele gestor punido na forma da alínea “g”[8] do inciso I do artigo 1º da Lei Complementar 64, de 1994, com a redação que lhe foi dada pela Lei da Ficha Limpa…

Em suma, a perpetuação do cenário ora denunciado nos penitencia duas vezes: a primeira com o subfinanciamento da saúde e da educação admitido, na prática, como politicamente aceitável, a despeito de ser inconstitucional, e a segunda com a manutenção no espectro político de pretensões eleitorais de agentes que mereciam ficar inelegíveis por oito anos exatamente pelo descaso e desvio de recursos vinculados àqueles direitos fundamentais.


[1] Nos termos do inciso I do art. 71 e do § 2º do art. 31, ambos da Constituição da República de 1988.

[2] Observação direta ao longo de nossa atuação empírica e também observação produzida no âmbito do seguinte estudo delimitado ao universo dos municípios paulistas:

CALANDRIM, Luiz Antonio. Do controle externo exercido pelo Legislativo municipal sobre as contas do chefe do Executivo: Uma análise sobre a eficiência do modelo pátrio. 2012. 73f. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Gestão de Políticas Públicas) – Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012.

[3] Os dados foram extraídos de levantamento dos julgamentos das contas das Prefeituras paulistas, proferidas pelas respectivas Câmaras Municipais, relativos aos exercícios de 2002 a 2006, em publicação veiculada através de suplemento no Diário Oficial do Estado de São Paulo, em 08 de dezembro de 2010, sobre a denominação “Pareceres Prévios do Tribunal em Contas de Prefeituras e o Julgamento pelas Câmaras Municipais”. Com base nas informações ali presentes propôs-se a criação de um índice circunscrito ao total de pareceres desfavoráveis rejeitados pelas respectivas Câmaras Municipais..

[4] Para que o leitor tenha em mente o que vimos discutindo, apresentamos alguns exemplos dos índices observados:

1) Tomando por base apenas os 4 (quatro) municípios cuja fiscalização ficou a cargo da 6a Diretoria de Fiscalização da Capital, do Tribunal de Contas Paulista, verifica-se que, no período analisado (2002-2006), foram emitidos 11 (onze) pareceres desfavoráveis à aprovação das contas dos respectivos chefes dos executivos municipais, sendo em 10 (dez) deles rejeitados pelas respectivas Câmaras Municipais. Em apenas 1 (uma) ocasião o parecer desfavorável foi acatado, ou seja, um índice de 90,90%.

2) Quando o estudo recai sobre os 4 (quatro) municípios cuja fiscalização ficou a cargo da 4ª Diretoria de Fiscalização, verifica-se que, no período analisado (2002-2006), foram emitidos 14 (catorze) pareceres favoráveis e 6 (seis) desfavoráveis. Todos os 6 (seis) pareceres desfavoráveis foram rejeitados pelas respectivas Câmaras. Um índice de 100%.

3) Quando o estudo recai sobre os 5 (cinco) municípios cuja fiscalização ficou a cargo da 9ª Diretoria de Fiscalização, verifica-se que, no período analisado (2002-2006), foram emitidos 19 (dezenove) pareceres favoráveis e 6 (seis) desfavoráveis. Todos os pareceres desfavoráveis foram rejeitados pelas respectivas Câmaras. Novamente um índice de 100%.

[5] Vejamos que, ao cuidar dos atos vinculados, o professor Celso Antônio Bandeira de Mello bem registrou a ausência de liberdade do Administrador para expedi-los ou mesmo retirá-los do ordenamento, na medida em que a “lei regulou antecipadamente em todos os aspectos o comportamento a ser adotado […] em face de situação igualmente prevista em termos de objetividade absoluta.” (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 25ª Edição, São Paulo: Malheiros: 2007, p. 422)

[6] O inteiro teor dos citados dispositivos é o seguinte:

“Artigo 4º – Nos procedimentos administrativos, qualquer que seja o objeto, observar-se-ão, entre outros requisitos de validade, a igualdade entre os administrados e o devido processo legal, especialmente quanto à exigência da publicidade, do contraditório, da ampla defesa e do despacho ou decisão motivados.”

“Artigo 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.”

[7] Segundo Luís Roberto Barroso, “O princípio da unidade da Constituição tem amplo curso na doutrina e na jurisprudência alemãs. Em julgado que Klaus Stern refere como primeira grande decisão do Tribunal Constitucional Federal, lavrou aquela Corte que ‘uma disposição constitucional não pode ser considerada de forma isolada nem pode ser interpretada exclusivamente a partir de si mesma. Ela está em uma conexão de sentido com os demais preceitos da Constituição, a qual representa uma unidade interna. Invocando tal acórdão, Konrad Hesse assinalou que a relação e interdependência existentes entre os distintos elementos da Constituição exigem que se tenha sempre em conta o conjunto em que se situa a norma. […] Em decisão posterior, o Tribunal Constitucional Federal alemão voltou a remarcar o princípio, conferindo-lhe, inclusive, distinção especial e primazia: ‘o princípio mais importante de interpretação é o da unidade da Constituição enquanto unidade de um conjunto com sentido teleológico, já que a essência da Constituição consiste em ser uma ordem unitária da vida política e social da comunidade estatal.” (BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. São Paulo, Saraiva, 1999, pág. 147)

[8] Cujo comando é o seguinte: são inelegíveis “os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição;

Autores

  • Brave

    É procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, Pós-Doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela UFMG.

  • Brave

    é agente da fiscalização financeira do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, especialista em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade de São Paulo (USP).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!