Manifestações populares

Hora de impedir os governos de retrogradar a Constituição

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24 de junho de 2013, 15h54

As atuais manifestações populares parecem representar um marco histórico para a incipiente democracia brasileira. De fato, o interesse e a participação política não são (ou não eram) características da nossa sociedade civil. Porém, os recentes eventos dão claras provas de que estão em andamento sérias mudanças na conformação do espaço público das discussões políticas em nosso país.

Não se há como negar que há um valor simbólico de imensa relevância na “vitória” dos movimentos populares que “exigiram” dos governos a revogação de aumentos nas tarifas de ônibus, pois viu-se com toda clareza que o povo tem o poder de modificar decisões políticas, ou melhor, de exigir que determinadas decisões dos nossos governantes estejam de acordo com o interesse da comunidade, e, o mais importante, o povo, agora, sabe disso.

Contudo, neste momento de indefinições e vaguezas sobre os objetivos das manifestações é preciso se ter cautela, no sentido de se evitar que o povo não venha a se voltar contra sua própria Constituição. Aliás, esse parece ser um ponto crucial de legitimidade destes movimentos populares. Pode-se, então, indagar: seriam juridicamente legítimas intervenções diretas do povo em decisões que cabem a governantes democraticamente eleitos?

Ora, é mais que sabido que nossa Constituição ainda não foi devidamente efetivada, sobretudo naquilo que ela tem de mais valioso: os direitos sociais fundamentais que visam à promoção de uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3º, I, CF). Parece, portanto, perfeitamente legítima a atuação do próprio povo, do qual emana todo o poder (artigo 2º, CF), no sentido de exigir a efetivação, a concretização desses direitos sociais dispostos no texto constitucional, desde que essa atuação se dê num espaço de discussão democraticamente construído. E, nesse sentido, parece incontestável a natureza democrática das atuais manifestações.

Mas, enfim, o que o texto constitucional tem a oferecer como fundamento e como diretriz para a construção de objetivos adequados aos anseios da nossa sociedade, mormente aquilo que se tem visto em tais manifestações populares? A questão principal pode estar na definição de prioridades para o nosso país, isto é, há direitos sociais constitucionais que se afiguram como exigências definitivas, necessidade essenciais e inadiáveis da população, especialmente das camadas sociais economicamente desfavorecidas.

Educação, serviços de saúde e saneamento básico, por certo, devem estar em qualquer rol de prioridades que se pretenda estabelecer. Mas, é preciso que tais questões não venham (ou continuem) a ser enfrentadas do mesmo modo vago, demagógico e oportunista com que nossos governantes estão habituados.

Por exemplo, não basta dizer que o governo vinculará 100% dos royalties do petróleo do pré-sal ao orçamento da educação. Ora, precisamos definir o quanto precisamos e o quanto queremos gastar com educação, e como deve ser feito esse gasto, de modo a garantir educação de qualidade para crianças e jovens de todo o país. Afinal, qual será o total de receitas desses royalties do pré-sal? 30, 50, 80 bilhões de reais por ano? Pois bem, o país já gasta mais de 200 bilhões de reais por ano só em educação. Por óbvio, são bilhões muito mal gastos, e isso precisa mudar, urgentemente. É preciso melhorar a qualidade desse gasto, evidentemente. Mas, se quisermos realmente ter educação de qualidade, precisamos gastar ainda mais, e temos recursos pra isso, pois, afinal, o total da arrecadação nacional de tributos já supera 1,5 trilhão de reais por ano. Vale dizer, podemos e precisamos gastar mais com educação, e, agora, temos o poder de exigir isso dos nossos governos.

A saúde pública, por sua vez, é, de fato, uma unanimidade, pois todos sabem que ela é ineficaz, inadequada, insuficiente, uma verdadeira violência contra a população. E todos dizem que os serviços de saúde precisam melhorar imediadamente e que isso é uma prioridade absoluta, mas os gastos públicos não refletem, nem de longe, essa preocupação, esse interesse. Num breve exemplo: na região Nordeste, é muitíssimo comum o gasto público com eventos festivos. Pequenos municípios gastam milhões, municípios médios gastam centenas de milhões, e as grandes cidades nordestinas gastam bilhões de reais promovendo megaeventos festivos, contratando “artistas de renome”, inclusive, sem licitação. Enquanto isso, em todo os estados do nordeste, pessoas morrem nos corredores de hospitais por falta de leitos nas emergências e de leitos em UTI. Ora, ainda que se utilize o pretexto de promoção do direito à cultura ou do direito ao lazer, a questão a se enfrentar é: temos de definir prioridades, e, definitivamente, a saúde púbica é prioridade, de maneira que o gasto público com festas só poderia ser aceito depois de atendida adequadamente esta prioridade, a saúde. É óbvio que falta verba para o sistema de saúde. Mas, porque os governantes continuam gastando com festas? E porque continuamos aceitando isso? Não basta, pois, contratar médicos estrangeiros, achando que isso será a solução para o caos no sistema de saúde. É preciso, definitivamente, levar a sério os serviços de saúde. Precisamos, enfim, refletir e exigir mais sobre isso.

Outra questão ligada à saúde pública, o saneamento básico, também já é, há muito tempo, uma unanimidade. Há muito se sabe, há muito se diz, há muito é consenso que todo investimento em saneamento básico proporciona uma economia equivalente a quatro vezes o que foi gasto, em razão dos benefícios trazidos para a saúde pública. Pois bem, mas se todos sabem que esse tipo de gasto público dá a população um benefício em saúde correspondente a quatro vezes o que se gastou, porque os governos não o priorizam? Por que ainda existem capitais de estados em que mais da metade da população vive sem saneamento básico? Por que ainda há cidades em que praticamente inexiste saneamento básico? Isso não deveria ser mais do que óbvio? Podemos mudar isso também? Parece, agora, que sim.

Por certo, há muito o que se refletir e se debater, há muitas prioridades a se definir. Arrisco, então, uma sugestão mais direta, mais específica, se pudermos assim colocar. Pois bem, se sabemos que há na Constituição um extenso rol de direitos sociais ainda negados à população, se sabemos que os governos têm se utilizado de todo tipo de artifício para enganar o povo e continuar negando-lhe esses direitos, e se sabemos que agora não somos mais obrigados a aceitar a demagogia e as falácias dos governantes, por que, então, continuamos a permitir que estes mesmos governantes continuem a gastar o dinheiro público, o “nosso dinheiro”, em propagandas de governo, tentando nos convencer de que o seu governo é bom?

Ora, eles usam nosso dinheiro para nos persuadir de que são bons gestores, de que seus governos são os melhores, ou seja, nosso dinheiro financia a publicidade, o marketing dos governantes, e isso é imoral, ilegítimo e inconstitucional. Refiro-me, portanto, a todo tipo de publicidade promovida pelos governos, no sentido tentam criar e transmitir uma imagem, milimetricamente elaborada, para nos persuadir de que eles (governos) são eficientes.

É falso, aliás, o pretexto de que o § 1º do artigo 37 da Constituição[1] daria legitimidade às propagandas de governo que hoje vemos nos diversos meios de comunicação. É evidente, pois, que o dispositivo constitucional autoriza tão somente a publicidade governamental de caráter educativo, informativo ou de orientação social.

Os que pretendem legitimar as propagandas de governo alegam que elas têm caráter informativo. Mas isso é falso, definitivamente falso. A propaganda que vemos, sobretudo na TV, não tem caráter informativo. O caráter dessa propaganda é, claramente, persuasivo (pra não dizer “enganativo”, “enrolativo” ou “embustivo”). Por certo, os dados apresentados na nessas propagandas são parciais, por vezes manipulados, nitidamente apresentados de uma maneira que beneficie a imagem do governo e, consequentemente, do governante. Muitas vezes, nem mesmo são apresentados quaisquer dados. Utilizam vistosas e elaboradas combinações de imagens agradáveis, jingles, slogans e os mais variados artifícios de marketing para convencer a população de que eles são eficientes.

A artimanha empregada tentar justificar juridicamente esta imoralidade é, na verdade, uma falácia evidente. A parte final do do § 1º do artigo 37 diz: “dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos”. Daí, utiliza-se esse trecho para se inferir que toda propaganda que não contenha nomes, símbolos ou imagens de autoridades seria constitucionalmente válida. Tenta-se com isso encobrir o fato de que a propaganda que eles promovem não tem caráter informativo. É, de fato, um absurdo, uma trapaça interpretativa, um estelionato hermenêutico.

Enfim, muitos desdobramentos dessas manifestações ainda estão por vir. Decerto, muitas reflexões coerentes e muitos debates produtivos serão empreendidos. E talvez, no contexto desses debates possa se inserir algo no sentido dos presentes comentários.

Como disse o grande mestre Bonavides[2] sobre a Constituição de 1988, “onde ela mais avança é justamente onde o governo mais intenta retrogradá-la, como constituição dos direitos fundamentais e da proteção jurídica da sociedade”. Parece que, afinal, chegou a hora em que temos a chance de impedir nossos governos de continuar a retrogradar nossa Constituição.


1 § 1º – A publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos.

2 BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa. 1. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 204.

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