Justiça Tributária

Como atrapalhar o funcionamento do Judiciário

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

24 de junho de 2013, 8h00

Spacca
Todos nós desejamos um sistema tributário de boa qualidade. Quando nos vemos diante de algum problema que dependa de solução jurídica, queremos aquilo que se chama Justiça Tributária.

Mas, infelizmente, tudo indica que há pessoas, instituições ou mecanismos legais que atuam em sentido contrário, seja incentivando a criação de problemas que não deveriam existir, seja impedindo que as possíveis soluções para eles possam ser encontradas e mesmo evitando que elas sejam colocadas em prática, ainda que óbvias, claras e simples.

Segundo divulgado pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça), no final de 2010 havia mais de 83 milhões de processos em tramitação no Judiciário do país. Desse total, pelo menos 32% seriam execuções fiscais, ou seja, cerca de 27 milhões de processos.

O número é expressivo, mas poderia diminuir bastante se fossem afastados os mecanismos já disponíveis nesse setor (execuções fiscais) e que não são acionados pelo Judiciário por simples acomodação ou mesmo desídia de seus dirigentes ou, talvez, por desinformação de alguns magistrados.

O primeiro e surpreendente caso que permitiria reduzir os processos, relaciona-se com uma enorme quantidade de créditos fiscais alcançados pela prescrição quinquenal.

A pretexto de defender o tal “interesse público”, tais ações permanecem indefinidamente ocupando espaço, até que o contribuinte, pressionado pelos odiosos mecanismos de controle de crédito, acaba sucumbindo e paga o que não deveria ser pago, porque extinto.

Em muitos casos, os valores são pequenos e agora, com a nova lei destinada a fazer a festa dos cartórios de protestos — autorizando o inútil, descabido e vergonhoso protesto da dívida ativa —, esses contribuintes podem ser reduzidos a párias, sem crédito para comprar qualquer coisa a prazo. Isso não atende ao “interesse público”, pois obrigar alguém a pagar o que já foi extinto é crime, previsto no artigo 316 do Código Penal. O crime, nesse caso, é praticado pela autoridade que cobra o tributo já prescrito.

Mas neste país, onde muitos servidores públicos se imaginam integrantes de uma realeza que desfila em carruagens motorizadas com placas de bronze, não há qualquer fiscal da lei que se disponha a apurar o crime de excesso de exação. Pelo menos nestes 40 anos de advocacia nunca vi isso. Se alguém viu, me avise.

Pois bem. O contribuinte que se vê diante de uma execução fiscal alcançada pela prescrição, quando citado e não aceitando ser vítima do crime ou não tendo condições de pagar o que não deve, pode assim mesmo defender-se, ainda que não tenha bens penhoráveis. Existe uma medida para isso, que é a exceção de pré-executividade, criada pela prática jurisprudencial e que alguns desavisados sustentam não ter base legal.

Embora a jurisprudência não seja fonte formal do Direito, admite-se que ela seja dele uma fonte subsidiária ou complementar, ao lado da lei e do costume. Assim, as decisões dos tribunais exercem importante papel na construção do Direito, na medida em que são seguidas pelas maior parte dos magistrados na aplicação da lei. Esta, apresentando lacunas a serem interpretadas, não pode nem deve ser interpretada ao pé da letra. As leis são criadas para servir o homem, não o contrário.

A chamada exceção de pré executividade pode e deve ser útil à solução dos litígios que ocorrem nas execuções fiscais. Antiga lição de Pontes de Miranda ensina que:

A penhora ou depósito somente é de exigir-se para a oposição de embargos do executado; não para a oposição das exceções e de preliminares concernentes à falta de eficácia executiva do título extrajudicial ou da sentença (…). Uma vez que houve alegação que importa em oposição de exceção pré-processual ou processual, o juiz tem de examinar a espécie e o caso , para que não cometa a arbitrariedade de penhorar bens de quem não estava exposto à ação executiva (…). (Revista Dialética de Direito Tributário, volume 24).

Diante dessa e de outras lições e com base ainda em reiteradas decisões semelhantes, o STJ baixou a Súmula 393, do seguinte teor: “A exceção de pré-executividade é admissível na execução fiscal relativamente às matérias conhecíveis de ofício que não demandem dilação probatória” (relator ministro Luiz Fux, em 23 de setembro de 2009).

O STJ decidiu ser possível à pessoa apontada como devedora ofertar a exceção, quando ausentes os requisitos que autorizam a cobrança do crédito fiscal ou presentes os que a invalidem. Veja-se, a propósito, a ementa a seguir:

PROCESSUAL CIVIL -Agravo de Instrumento – Processo      de Execução – Embargos do Devedor- Nulidade – Vício Fundamental – Arguição nos Próprios Autos da Execução – Cabimentos – Arts. 267, § 3º, 585, II, 586, I, do CPC.- I – Não se revestindo o título de liquidez, certeza e exigibilidade, condições basilares no processo de execução, constitui-se em nulidade, como vício fundamental,podendo a parte argui-la, independentemente de embargos do devedor, assim como pode e cumpre ao juiz declarar, de ofício, a inexistência desses pressupostos formais contemplados na lei processual civil. II – Recurso conhecido e provido. (REsp 13.060-SP, Ac. Un. da 3ª Turma, STJ – relator ministro Aldemar Zveiter, publicado no DJU de 3 de fevereiro 1992).

Portanto, o contribuinte citado para pagar dívida prescrita ou já paga não está obrigado a ofertar bens à penhora. O juiz pode e deve extinguir o feito, eis que ausentes as razões de seu prosseguimento.

O juiz que se recusar a processar a exceção, exigindo garantia ou, pior ainda, determinando penhora de ativos financeiros, deve ser representado perante a Corregedoria e o CNJ. Ele está, sem dúvida, atrapalhando o funcionamento do judiciário, na medida em que mantém processo inútil e provoca mais entupimento nas instâncias superiores do Judiciário. Demonstra que não tem vocação para a carreira, que se destina a fazer justiça, não a avolumar a burocracia judiciária.

O professor Ives Gandra Martins já ensinou: “A função do Poder Judiciário é fazer Justiça, e não assegurar a arrecadação, principalmente quando a qualidade do crédito exigido é contestável.” (Gazeta Mercantil, 30 de abril de 2008)

Outra situação muito estranha que vemos nos cartórios de execuções fiscais é a recusa injustificada de reconhecer e aplicar a conexão de causas, sempre que isso for possível, para tornar viável decisão única para mais de um processo. A conexão mais óbvia ocorre quando a Fazenda distribui diversas execuções ao mesmo tempo, ou em datas muito próximas, contra o mesmo contribuinte e em relação ao mesmo tributo. Veja-se o conceito clássico:

CONEXÃO DE CAUSAS – Assim se diz das causas que se encontram tão intimamente ligadas, em que se nota uma relação tão estreita, que não podem ser conhecidas separadamente pelo julgador, visto que o julgamento de uma vem afetar o conteúdo da outra. (De Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico, Forense, Rio, 2ª Edição, 1967).

Ainda recentemente verificamos um caso em que a municipalidade de São Paulo cobrava de determinado contribuinte IPTU de dez exercícios diferentes, cinco dos quais prescritos. O contribuinte quitou os que não haviam sido atingidos pela prescrição e fez depósito em dinheiro para garantia dos prescritos, que pretendia embargar.

Ao ser informado pelo advogado sobre os custos dos honorários e despesas processuais e, mais ainda, da certeza de que a municipalidade recorreria ao TJ-SP e depois ao STJ, o que implica em grande demora, o contribuinte resolveu não promover os embargos, aceitando ser vítima de uma injustiça. Arcou com o prejuízo para não atrapalhar ainda mais o funcionamento do judiciário, ainda que seu propósito fosse apenas livrar-se de um pesadelo.

Surgem aqui duas posições diferentes. O contribuinte se vê frustrado, pois como cidadão imaginava que o CTN , sendo uma lei (com status de complementar) seria cumprida, assegurando-lhe o direito de não pagar o que está extinto. Se a lei é instrumento da Justiça, o contribuinte se vê injustiçado, pois a lei não foi cumprida.

O servidor público, que cometeu o crime de excesso de exação, longe de se pensar um criminoso, vê-se como herói, pois obrigou um cidadão (o seu patrão) a pagar o que estava extinto. O advogado da municipalidade receberá honorários ao que parece em pagamento pelo fato de ter permitido que o processo não andasse, por não cumprir prazos, enfim, por não ter feito o que devia. Isso nada tem a ver com Justiça Tributária.

Se os magistrados da primeira instância seguissem a Súmula 393 do STJ e procurassem aplicar o princípio da conexão nas execuções fiscais, certamente haveria uma redução substancial das causas pendentes.

Por outro lado, temos visto que de tempos para cá criaram-se mecanismos legais para cobrar com maior rigor a dívida ativa. Isso é muito bom, mas já resvalou para a negação dos princípios básicos da Constituição Federal, contidos no seu preâmbulo.

Quando o povo brasileiro elegeu os constituintes, foi com o objetivo de criar uma Carta Magna, “para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”.

A lei 12.767/2012, que viabiliza o protesto da certidão de dívida ativa, vai contra qualquer princípio democrático e transfere aos cartórios privados parte do poder estatal, colocando em risco o exercício dos direitos sociais e individuais, na medida em que dificulta a discussão da suposta dívida. Os ideais descritos no preâmbulo foram atirados ao lixo.

Ao mesmo tempo em que se criam dificuldades cada vez maiores para os contribuintes, o Congresso (que dizem ser uma central de negócios com sede em Brasília) mantém normas de proteção absurdas para a dívida ativa e para os servidores encarregados de sua administração e cobrança.

Já não fazem mais sentido, por exemplo, os prazos em dobro ou em quádruplo para a Fazenda Pública recorrer seja em que caso for. Os prazos recursais devem ser os mesmos a que se sujeitam os contribuintes, pois nada mais justifica tais privilégios.

Hoje os despachos e decisões judiciais são disponibilizados na internet e as procuradorias e demais repartições estão equipadas, inclusive com recursos humanos adequados, para os necessários acompanhamentos

Dentre as formas de atrapalhar o funcionamento do judiciário uma das mais prejudiciais é a que permite que os autos devam ser encaminhados à procuradoria, com os prazos correndo só após o encaminhamento.

Se numa determinada comarca os procuradores tiverem o hábito de se dirigirem ao cartório apenas uma vez por mês, a coisa não anda. Nas grandes comarcas, consta que os autos ficam se acumulando durante um bom tempo, até que haja um volume enorme, que será levado por caminhão. Isso me foi dito por um servidor e espero que não seja verdade.

Quem também atrapalha muito o funcionamento do Judiciário são os órgãos de julgamento administrativo, boa parte dos quais vem se transformando em meros homologadores de autos. Se cumprissem de fato a missão para a qual foram criados, poderiam ajudar na diminuição das causas tributárias que são levadas ao judiciário, inclusive e especialmente no setor de execuções fiscais. Mas isso fica para mais tarde.

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  • é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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