Razão e paixão

Do ponto de vista processual só o Sport é campeão de 87

Autor

  • Andre Vasconcelos Roque

    é advogado doutorando e mestre em Direito Processual pela UERJ. Professor de Direito Processual Civil em cursos de pós-graduação. Membro do IBDP CBAr e IAB.

22 de junho de 2013, 7h29

O campeonato sem fim. Assim já foi denominado o polêmico Campeonato Brasileiro de futebol de 1987, cujo resultado é ainda hoje questionado.

Antes de prosseguir, preciso revelar uma informação pessoal: sou vascaíno, ou seja, torcedor de um clube rival do Flamengo, um dos times no olho do furacão do caso. Ainda assim, buscarei, ao longo desse artigo, manter uma análise imparcial.

Embora a disputa seja desportiva, seus desdobramentos originaram uma interessante discussão sobre os limites da coisa julgada.

Destaco, ainda, que a análise desse problema sob tal ótica não é inédita.

A leitura do artigo de José Augusto Garcia de Sousa, “O processo civil entra em campo: a coisa julgada e o título brasileiro de 1987”, (leia aqui, páginas 287-355) certamente teve sua parcela de contribuição para que me animasse a escrever sobre o tema. Veremos, a seu tempo, se concordarei com as suas conclusões.

Aquecimento: sucessão de erros
Para os não iniciados no futebol, será útil um relato básico dos fatos que ensejaram a celeuma em discussão.

O Campeonato Brasileiro do ano anterior (1986) havia sido um fracasso de público e renda, tendo contado com um regulamento caótico, com nada menos que 80 clubes.

Em julho de 1987, o presidente da CBF, Octávio Pinto Gomes, declarou que a entidade não tinha condições financeiras de arcar com a organização do Campeonato Brasileiro daquele ano (leia aqui, página 17). Alguns dias mais tarde, é fundado o Clube dos Treze, integrado pelos principais clubes do país, que manifestaram interesse em organizá-lo.

A CBF, temendo o esvaziamento de suas competições, voltou atrás (leia aqui, página 14), insistindo que o campeonato deveria ser organizado com 28 clubes. O Clube dos Treze, por outro lado, declarou aceitar um campeonato com no máximo dezesseis clubes (leia aqui, página 31).

Após inúmeras reuniões e diversos ataques, de parte a parte, em setembro de 1987 chega-se a um acordo para que os times pudessem entrar em campo (leia aqui, página 25).

A Copa União, denominação para o Campeonato Brasileiro de 1987, seria formada por quatro módulos: Verde, Amarelo, Azul e Branco. O Módulo Verde contava com os principais times do Brasil na época (todos os integrantes do Clube dos Treze, mais Coritiba, Goiás e Santa Cruz), ao passo que o Módulo Amarelo era formado, em sua maioria, por times de segundo escalão.

Seria um tanto quanto simplista, porém, afirmar que o Módulo Verde corresponderia à primeira divisão do campeonato, ao passo que o Amarelo seria a segunda divisão. O que ocorreu foi aquilo que se chama “virada de mesa”: quebraram-se as regras do ano anterior e criaram-se novas, conforme as conveniências políticas da época.

Essa “virada de mesa” acarretou distorções. Guarani (vice-campeão em 1986), América-RJ (4º lugar), Criciúma (9º), Portuguesa (11º), Inter de Limeira (12º) e Joinville (14º) foram relegados ao Módulo Amarelo, em benefício direto de Internacional (17º), Santos (19º), Goiás (23º), Santa Cruz (27º), Botafogo (32º) e Coritiba (44º).

O grande problema nesse acordo é que, embora tenham sido ajustados os quatro Módulos e seus participantes, não se chegou a um consenso sobre quem seria o campeão brasileiro de 1987. O Clube dos Treze defendia que o campeão seria simplesmente o vencedor do Módulo Verde. A CBF, por sua vez, sustentava a necessidade de cruzamento entre os dois melhores times dos Módulos Verde e Amarelo para definir o campeão.

Em dezembro de 1987, o Flamengo sagrou-se vencedor do Módulo Verde, ficando em 2º lugar o Internacional. O Sport venceu o Módulo Amarelo, derrotando o Guarani.

A celeuma estava deflagrada: haveria ou não necessidade de cruzamento?

A imprensa esportiva na época considerou o Flamengo como campeão nacional sem qualquer cruzamento, não atribuindo maior repercussão à conquista do Sport. Nesse sentido, veja-se a capa da Revista Placar de 18 de dezembro de 1987, intitulada “A Copa União é do Mengão” (leia aqui).

Entretanto, a CBF, insistindo no cruzamento, publicou a tabela do quadrangular com Flamengo, Internacional, Sport e Guarani, valendo-se de regulamento divulgado após o início do torneio, mas que não havia sido aprovado pelo Conselho Arbitral (formado por todos os clubes dos Módulos Verde e Amarelo). Inviabilizado o consenso, Flamengo e Internacional se recusaram a entrar em campo, sob o fundamento de que deviam obediência ao Clube dos Treze, o qual deliberou contrariamente ao cruzamento (leia aqui).

Assim, Sport e Guarani venceram seus jogos contra Flamengo e Internacional por W.O. Na final do quadrangular, o Sport derrotou o Guarani e foi declarado campeão brasileiro de 1987 pela CBF. O Clube dos Treze, não reconhecendo a necessidade de um quadrangular final, declarou o Flamengo como campeão brasileiro.

Uma sucessão de erros, portanto, fez com que o campeonato terminasse em meio à insegurança. Quem seria o campeão: Sport ou Flamengo?

Primeiro tempo: gol de mão
Em fevereiro de 1988, o Sport ingressou na justiça comum para ver declarada sua condição de campeão brasileiro. No polo passivo, foram incluídos CBF, Flamengo, Internacional, Guarani e União, vez que o Conselho Nacional de Desportos, órgão que na época regulava os esportes no Brasil, se inseria na Administração Pública federal.

Distribuído o processo sob o número 00.0004055-0 à 10ª Vara Federal de Pernambuco, considerou-se que, embora o regulamento da CBF não tivesse sido aprovado pelo Conselho Arbitral, teria havido aceitação tácita dos participantes, não se podendo aceitar sua alteração no curso do torneio sem a unanimidade de votos dos envolvidos.

Assim, os pedidos foram julgados procedentes nos termos abaixo:

“Em face do exposto, jugo procedentes, ‘in totum’, as pretensões formuladas na peça exordial, para declarar válido o regulamento do Campeonato Brasileiro de Futebol Profissional de 1987, outorgado pela Diretoria da CBF; declarar, ainda, necessária a aprovação da integralidade dos membros do Conselho Arbitral da dita entidade, para a sua modificação, determinando, outrossim, à Confederação Brasileira de Futebol – CBF e à União Federal (Conselho Nacional de Desportos – CND) que se abstenham de ordenar a convocação, convocar ou acatar decisão do Conselho Arbitral tendente à modificação do suso-citado regulamento, sem a deliberação unânime de seus membros, concluindo, pois, por determinar, seja reconhecido o demandante como Campeão Brasileiro de Futebol Profissional do ano de 1987, pela Confederação Brasileira de Futebol”.

Aludida sentença foi mantida pelo TRF da 5ª Região. A União ainda interpôs Recurso Especial, inadmitido na origem. O respectivo Agravo de Instrumento 201.691 foi desprovido por motivos formais mediante decisão do relator, ministro Waldemar Zveiter, datada de 10 de março de 1999.

Nenhum recurso foi interposto contra tal decisão monocrática. Passados mais de dez anos, não se teve conhecimento de nenhuma ação rescisória.

Quem seria, assim, o legítimo campeão brasileiro?

A matéria de fundo é bastante intrincada. Além disso, seria questionável se o Sport não deveria antes ter ingressado na justiça desportiva.

Apesar disso, tais indagações perderam importância. Assim como o fato de um gol validado pelo juiz ter sido feito com a mão não importa após encerrado o jogo, os equívocos eventualmente cometidos na referida sentença se tornaram irrelevantes após o trânsito em julgado e o fim do prazo para a ação rescisória.

Inequívoca, até aqui, a condição de campeão brasileiro do Sport.

Segundo tempo: drible da vaca
Durante muitos anos, não houve alteração significativa no panorama.

Em dezembro de 2010, todavia, ocorre um fato relevante: a CBF resolveu promover a unificação dos títulos brasileiros de clubes.

Explica-se: o Campeonato Brasileiro propriamente dito somente teve início em 1971. Apenas seus vencedores eram reconhecidos pela CBF como campeões brasileiros. Antes disso, porém, já se disputavam no Brasil torneios de futebol com abrangência nacional, embora não qualificados como “Campeonatos Brasileiros”.

Entre 1959 e 1968, foi disputada a Taça Brasil, ao passo que entre os anos de 1967 e 1970 foi disputado o Torneio Roberto Gomes Pedrosa.

A CBF, com o ato de unificação, decidiu considerar campeões brasileiros também os vencedores desses dois torneios.

A importância dessa medida, para os fins do presente estudo, é que a Taça Brasil e o Torneio Roberto Gomes Pedrosa chegaram a ser simultaneamente disputados em 1967 e 1968. Com o ato de unificação, reconheceu-se a possibilidade de dois títulos brasileiros no mesmo ano. Em 1967, o Palmeiras saiu vencedor nos dois torneios e, portanto, somou para si dois títulos. No ano de 1968, o Botafogo venceu a Taça Brasil e o Santos prevaleceu no Torneio Roberto Gomes Pedrosa, sendo ambos considerados campeões brasileiros.

Diante do precedente estabelecido, poderia a CBF reconhecer o Flamengo também como campeão de 1987, ao lado do Sport?

Após pressões de diversos setores, em fevereiro de 2011, a CBF edita a Resolução da Presidência 2/2011, a fim de reconhecer o Flamengo como campeão ao lado do Sport (leia aqui). Para tanto, afirmou-se que a decisão transitada em julgado obtida pelo Sport reconhecia seu título brasileiro, mas sem lhe outorgar caráter de exclusividade.

Irresignado, o Sport volta ao Judiciário e instaura “cumprimento de sentença”, alegando descumprimento a decisão judicial transitada em julgado (processo 00.0004055-0). A 10ª Vara Federal de Pernambuco, em decisão proferida inaudita altera parte, considerou que “o título de campeão daquele certame é de direito do autor, não deixando qualquer margem interpretativa para a sua divisão com quem quer que seja e, além disso, determinou à CBF que fizesse esse reconhecimento”.

Em cumprimento a tal decisão, a CBF editou a Resolução da Presidência 6/2011, revogando a Resolução 2/2011, embora tenha ressalvado seu novo entendimento sobre o tema.

Os recursos interpostos por CBF e Flamengo para o TRF da 5ª Região contra tais determinações (Ag.Int. 0010630-56.2011.4.05.0000 e 0010631-41.2011.4.05.0000 e Apelação 0037235-35.1994.4.05.0000) não lograram êxito. Ao que tudo indica, pretendem ainda CBF e Flamengo submeter o caso às instâncias superiores.

Prorrogação: limites da coisa julgada
Em seu artigo, José Augusto Garcia sustenta que a coisa julgada, sobretudo na era das incertezas da pós-modernidade, deve ser lida de forma suave, impondo-se uma interpretação restritiva. Aduz que a imunização produzida por ela possui caráter autoritário e que, portanto, quanto mais coisa julgada, menos liberdade.

Conclui o autor que não se pode pretender impor que o Sport seja o único campeão de 1987 se o dispositivo não foi expresso nesse sentido.

Embora não concorde com todas as implicações dessa argumentação, não pretendo discutir tais considerações.

Vou por outro caminho. Concordo que, para aferir os limites objetivos da coisa julgada, é preciso avaliar — para ir além da literalidade do dispositivo da sentença, em que realmente não consta que o Sport seria o único campeão — a intenção do autor ao delimitar os contornos objetivos da demanda.

Mais de 25 anos depois, tal investigação se mostra muito difícil. É possível supor, como aponta José Augusto Garcia, que sequer se imaginasse a possibilidade de existirem dois campeões brasileiros no mesmo ano, o que apenas se cogitou com a unificação dos títulos levada a cabo pela CBF em 2010.

Entretanto, há uma circunstância que parece ter passado despercebida.

No dispositivo, não constou apenas o reconhecimento do Sport como campeão. Assim também se consignou:

“Em face do exposto, jugo procedentes, ‘in totum’, as pretensões formuladas na peça exordial, para declarar válido o regulamento do Campeonato Brasileiro de Futebol Profissional de 1987, outorgado pela Diretoria da CBF; (…)”.

A sentença declarou formalmente, em seu dispositivo, a validade do regulamento da CBF para o Campeonato Brasileiro de 1987. Esse regulamento previa que o campeão brasileiro deveria ser determinado pelo cruzamento dos vencedores dos Módulos Verde e Amarelo em seu artigo 6º, § 2º (texto extraído do acórdão na apelação da fase de conhecimento):

“Art. 6º (…)

§ 2º O campeão e o vice-campeão das taças João Havelange [Módulo Verde] e Roberto Gomes Pedrosa [Módulo Amarelo] disputarão, em quadrangular, o título de Campeão e Vice-Campeão Brasileiro de 1987, ficando de posse da Copa Brasil-1987 e classificados para representar a CBF na Taça Libertadores da América-1988”.

Em síntese, com a declaração de validade do regulamento da CBF por decisão judicial, também foi declarada a validade dessa regra. O campeão do Módulo Verde não poderia ser considerado campeão brasileiro sem participar do quadrangular final — sob pena de desdizer o regulamento e a coisa julgada material.

Em reforço à sua linha argumentativa, José Augusto Garcia sustenta que a unificação dos títulos em 2010 consistiria em fato superveniente, fundado em perspectiva geral de encerrar antigas controvérsias acerca dos vencedores no futebol brasileiro. Haveria aí, portanto, uma nova causa de pedir, afastando a hipótese de violação à coisa julgada.

Com todas as vênias, não posso concordar com essa tese. Não se trata de relação jurídica continuativa, a ponto de suportar a incidência de fatos supervenientes, nos termos do artigo 471 do CPC. Um clube se sagra campeão em um momento específico, ao final do torneio, que pode ser bem delimitado.

Além disso, a própria configuração de fatos supervenientes neste caso é questionável. Em ação de alimentos, por exemplo, fatos supervenientes podem alterar o clássico binômio necessidade-possibilidade, modificando o panorama em torno do qual se proferiu a sentença e tornando inadequada a norma concreta transitada em julgado.

Em que medida a unificação dos títulos brasileiros alterou a situação fática em torno da qual se proferiu sentença em favor do Sport? Nenhuma.

Os vencedores da Taça Brasil e do Torneio Roberto Gomes Pedrosa puderam ser reconhecidos como campeões brasileiros porque, nos anos em que foram disputados esses torneios, não havia qualquer regulamento com validade reconhecida em decisão judicial transitada em julgado que dispusesse de forma diversa.

Placar final
Decorridos mais de 25 anos, seria muito difícil hoje saber quem teria razão ou quais as regras que deveriam ter prevalecido.

A busca da justiça ideal, todavia, encontra limites. Por mais que possa ter havido injustiça, para quem quer que seja, a possibilidade de rediscussão já se encerrou.

Se o Flamengo optou por não disputar o quadrangular final, por mais ponderáveis que tenham sido suas razões, ele foi eliminado, nos termos do regulamento declarado válido por sentença transitada em julgado, de maneira que, do ponto de vista processual, somente o Sport pode ser considerado campeão brasileiro de futebol de 1987.

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