Falsa felicidade

Custo para sediar Copa do Mundo é alto demais

Autor

  • Saul Tourinho Leal

    é pós-doutor em Direito Constitucional pela Humboldt e ex-assessor da Corte Constitucional da África do Sul e da vice-presidência da Suprema Corte de Israel.

21 de junho de 2013, 7h14

The Ones Who Walk Away from Omelas (Os que se afastam de Omelas) é um conto de Ursula K. Le Guin, que ganhou o Prêmio Hugo de Melhor Conto, em 1974. Ele fala de Omelas, uma cidade de absoluta felicidade, onde tudo seria perfeito, não fosse um terrível segredo: a felicidade de todos na cidade exige que uma criança seja mantida infeliz, presa na sujeira, escuridão e miséria, e que todos os seus cidadãos descubram isso quando tiverem idade para compreender a situação.

Quando a verdade é descoberta, a maioria das pessoas fica chocada e enojada, mas acaba por concluir que se a criança fosse libertada, a felicidade da cidade seria destruída. Mesmo assim, alguns cidadãos resolvem partir, sem que ninguém soubesse para onde iriam. O conto termina assim: “Eles vão em frente. Eles deixam Omelas. Eles andam adiante na escuridão, e eles não voltam. O lugar para onde vão é um lugar ainda menos imaginável do que a cidade da felicidade. Eu realmente não posso descrevê-lo. É possível que não exista. Mas eles parecem saber para onde estão indo, aqueles que se afastam de Omelas”.

O conto serve para ilustrarmos o que o Brasil tem passado nos últimos dias. Acharam que conseguiriam manipular o país a ponto de transformá-lo num lugar no qual todas as pessoas festejariam o sucesso do campeonato internacional de futebol, vibrariam com a vitória de suas seleções, comemorariam os placares ao redor dos seus entes queridos e desfrutariam da glória conferida a nós por sediarmos a Copa do Mundo. Seria o país da felicidade, não fosse o fato de termos descoberto que havia, como garantia dessa perfeição, uma criança mantida infeliz, presa na sujeira, escuridão e miséria. No Brasil, a criança de Omelas é representada pelos direitos dos brasileiros.

Parece claro que o custo para sediar esses dois campeonatos internacionais de futebol é alto demais quanto à preservação das instituições, dos nossos costumes e da cultura de respeito aos direitos que já começava a esboçar um rumo.

O alerta que serviu de estopim foi a intenção de restringir a liberdade de manifestação dos cidadãos. Não bastasse a covardia policial iniciada em São Paulo, o Poder Judiciário do estado de Minas Gerais proibiu protestos e manifestações públicas durante os jogos da Copa das Confederações. Os sindicatos mineiros ficaram impedidos de realizar manifestações, especialmente nas vias que dão acesso ao estádio do Mineirão e em seu entorno. Em caso de descumprimento, estariam sujeitos à multa diária de R$ 500 mil. A decisão abrange “todo e qualquer manifestante que porventura tente impedir o normal trânsito de pessoas e veículos, bem assim o regular funcionamento dos serviços públicos estaduais, apresentação de espetáculos e de demais eventos esportivos e culturais”. O Ministro do Esporte, Aldo Rebelo, disse que “o governo não tolerará manifestações que atrapalhem ou tentem impedir a realização de jogos da Copa das Confederações”[1].

Esse é o primeiro bem que o legado da Copa deixa ao Brasil no que diz respeito aos direitos dos brasileiros. E ainda há muito por vir. Basta recordar do que ocorreu na África do Sul e começa a ocorrer na Rússia, países intitulados pejorativamente de “emergentes” que festejaram a escolha como sede dos jogos.

Quando faltava um mês para o início da Copa de 2010, a África do Sul retirou das ruas mendigos e prostitutas. Pessoas consideradas “indesejáveis” foram levadas para espécies de campos de concentração. Em Durban, 400 menores foram despejados na periferia. Em Johanesburgo, cegos imigrantes do Zimbábue e mulheres com filhos no colo foram dispersadas dos cruzamentos de avenidas onde pediam esmolas. Mais de 20 mil moradores foram removidos para áreas miseráveis.

Eddie Cottle, autor do livro Copa do Mundo da África do Sul: um legado para quem?[2], afirmou que os sul-africanos se viram forçados a exibirem “ruas limpas” de pobreza. Novas leis passaram a policiar as profissionais do sexo. Segundo Cottle, houve uma despesa de 40 bilhões de rands (R$ 9 bilhões), sendo que, mais de 60% da renda do evento veio dos próprios sul-africanos que gastaram com ingressos, hotéis, transporte, camisetas e outros adereços. Estádios foram construídos ou reformados por parceiros da Fifa e firmas de arquitetos internacionais. Parte do material de construção era importado. O mascote da competição, licenciado pelo Global Brands Group, foi produzido por trabalhadores chineses que receberam três dólares por dia trabalhado[3].

Houve ainda constrangimentos aos líderes da nação. Perto da final do campeonato, a bisneta de Nelson Mandela, Zenani Mandela Junior, faleceu tragicamente após um grave acidente de carro na saída da cerimônia de abertura do Mundial. O carro no qual estava tombou várias vezes, matando a garotinha. Ela foi a única vítima do acidente. Mandela, prestes a completar 92 anos, se afastou das festividades para velar sua bisneta. Mesmo assim, a Fifa exigia sua presença na final da competição para entregar o troféu ao campeão. A família de Mandela e sua equipe médica recomendavam repouso absoluto. Mandla Mandela, sobrinho do presidente, disse, em entrevista à rádio BBC, que a família passava por uma “pressão extrema” e que a Fifa estava sendo “imprudente”. O sobrinho pediu que respeitassem o luto, os costumes e as tradições dos povos africanos. Questionado sobre o que achava da presença de Mandela no Soccer City, Joseph Blatter, presidente da Fifa, disse que seria “maravilhoso”[4]. Na final entre Holanda e Espanha, Madiba (como os sul africanos carinhosamente chamam Mandela) apareceu cansado, idoso, em luto, vestido de preto, carregado por um carrinho de golfe pelo gramado, acenando uma mão trêmula e forçando um riso contido em consideração ao público.

Cottle alerta que, hoje, “a África do Sul e os países vizinhos estão perdendo mais investimentos locais do que recebendo investimento estrangeiro direto”. Os dados que ele traz são desanimadores: O número de postos de trabalho foi estimado em 695 mil para os períodos pré e durante a Copa do Mundo. No segundo trimestre de 2010, as taxas de empregabilidade diminuíram em 4,7% (627 mil postos de trabalho). No setor da construção civil, o emprego diminuiu 7,1% (54 mil postos de trabalho) neste período. O ano de 2010 fechou com menos 111 mil postos de emprego na construção.

O legado da Copa também começa a chegar à Rússia, sede de 2018. Um projeto previa o extermínio de mais de 2 mil animais de rua na cidade de Sochi, localizada às margens do Mar Negro, sede dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2014. Uma empresa ficaria responsável pela eliminação até o fim de 2013[5].

Estima-se que, para a Copa de 2002, a Coreia do Sul e o Japão gastaram US$ 2 bilhões e US$ 4 bilhões respectivamente nos estádios, enquanto na Alemanha os custos foram de US$ 2,2 bilhões. A África do Sul gastou US$ 2,5 bilhões nos estádios. No Brasil, só na reforma do Maracanã já foram aplicados R$ 1,2 bilhão, ou seja, 57% do que havia sido previsto em investimento para os 12 estádios, em 2007. O Tribunal de Contas da União estimou em R$ 7,1 bilhões o investimento no setor. O governo responde por quase a totalidade dos recursos. Apenas o Beira-Rio, a Arena da Baixada e o estádio do Corinthians são financiados, parcialmente, por grupos particulares, sendo que, mais da metade do dinheiro vem do BNDES[6]. Já há previsão de R$ 24 bilhões para as obras das 12 cidades sedes: Fortaleza, Recife, Natal, Salvador, Manaus, Cuiabá, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, Belo Horizonte, Brasília e Porto Alegre.

O Brasil começa a sentir os outros custos que acompanham essa aventura. Para a relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), a brasileira Raquel Rolnik, eventos dessa natureza forçam deslocamentos de comunidades, destruição de patrimônio cultural, supressão de direitos de idosos e estudantes, abusos policiais cometidos em prol da segurança e uma longa lista de violações semelhantes. Pelo menos 200 mil pessoas passam, no Brasil, por despejos relacionados aos eventos. Segundo o relatório apresentado por Rolnik, em maio, numa reunião da ONU, em Genebra: “com a atual falta de diálogo, negociação e participação genuína no desenvolvimento e implementação de projetos da Copa do Mundo e da Olimpíada, as autoridades de todos os níveis devem interromper todas as desapropriações planejadas até que se possa garantir diálogo e negociações”. Os casos incluem um plano de retirar 2,6 mil famílias em Belo Horizonte e desapropriações já realizadas no Rio de Janeiro, que passarão por favelas que abrigam milhares de moradores em condições precárias. Em São Paulo, famílias já foram despejadas como parte de um projeto de ampliação de uma avenida na zona sul, que ainda deve causar a retirada de mais pessoas. “Estou preocupada com as indenizações muito limitadas que são oferecidas às comunidades afetadas, o que é ainda mais grave devido aos valores elevados dos imóveis nas localidades onde as obras estão acontecendo para esses eventos” — afirma a Relatora[7].

A ONU buscou contato com a FIFA para tratar do assunto. Sequer foi recebida.

Em Brasília, cidade-sede do jogo de estréia entre o Brasil e o Japão, na Copa das Confederações, houve violações a direitos. A Secretaria de Saúde do Distrito Federal remanejou pacientes de hospitais da região central para outras unidades da rede pública, na periferia da cidade. Pacientes que se deslocaram ao Hospital de Base do Distrito Federal (HBDF) marcar tomografias, foram informados que os procedimentos estavam suspensos, porque os leitos e os equipamentos teriam de ficar vagos à disposição dos torcedores da Copa das Confederações. Uma senhora com câncer na tireóide, com cirurgia marcada há 3 anos, voltou da sala de operação, sem conseguir se submeter ao procedimento cirúrgico. Márcia do Valle, coordenadora de compras, viu sua sogra ser mais uma vítima. Ela estava internada no HBDF, com uma fratura no fêmur e foi transferida para o Hospital de Sobradinho, distante de onde morava. Com 67 anos, diabetes e artrite, sua pressão e glicose subiram. Ao chegar em Sobradinho, foi levada para a ala pediátrica[8].

No Ceará, em razão do jogo em Fortaleza, 24 municípios tiveram o efetivo reduzido para beneficiar o reforço no policiamento da capital. Os policiais remanejados pertencem a 11 companhias de três batalhões de policiamento comunitário diferentes[9].

Em Minas Gerais, o Ministério Público Federal encaminhou uma recomendação à Prefeitura de Belo Horizonte, para que não removesse as famílias da Rua Lótus até regularizar a situação das desapropriações. A rua dará lugar a uma obra de infraestrutura urbana para a Copa de 2014. Os oficiais da Prefeitura chegam às 8h nas casas, lêem um ofício e dão até as 17h horas do mesmo dia para as famílias irem embora. De acordo com a denúncia, alguns moradores foram despejados há mais de seis meses e ainda não receberam as indenizações[10].

Também em Minas o Ministério Público Estadual recebeu denúncias contra a implantação, em Belo Horizonte, de uma política de “higienização social”. Mendigos estariam sendo recolhidos compulsoriamente. Militares jogaram os pertences de três moradores de rua em um caminhão. Depois, algemaram-nos e levaram embora. De acordo com Rafael Bittencourt, membro das Brigadas Populares, “os recolhidos são levados para bairros distantes, pois os abrigos não suportam todos”[11].

Enquanto isso, o secretário-geral da Fifa, Jérôme Valcke (o mesmo que disse que o Brasil precisava de um chute no traseiro)[12], admitiu ser mais fácil organizar uma Copa do Mundo em países com menos democracia: “Vou dizer algo que é maluco, mas menos democracia às vezes é melhor para se organizar uma Copa do Mundo. Quando você tem um chefe de estado forte, que pode decidir, assim como Putin poderá ser em 2018, é mais fácil para nós organizadores do que um país como a Alemanha, onde você precisa negociar em diferentes níveis”, declarou[13].

Essas violações aos direitos das pessoas não resistiriam a um questionamento junto ao Supremo Tribunal Federal. Vale recordar a experiência da Hungria, onde o Tribunal Constitucional, protegendo direitos sociais, derrubou, em 1995, o programa de austeridade implementado pelo governo em atendimento às exigências do Fundo Monetário Internacional (FMI), pelo fato de tal acordo acarretar a violação de direitos sociais. Prevaleceu a soberania nacional, o respeito às instituições, a evolução dos direitos conquistados e o compromisso com a Constituição.

Boa parte dos brasileiros não quer viver numa “Omelas”. É alto demais o preço pago pelos direitos das pessoas para manter esse falso projeto de felicidade.


[1] Em: http://oglobo.globo.com/copa-das-confederacoes/governo-nao-vai-tolerar-protestos-que-tentem-impedir-jogos-da-copa-das-confederacoes-diz-ministro-8714512.

[2] COTTLE, Eddie. South Africa’s World Cup: A Legacy for Whom? University of KwaZulu-Natal Press (September 1, 2011).

[3] É ilustrativa a entrevista que Alexandre Praça fez com Eddie Cottle, para o Le Monde Diplomatique Brasil, em 1º de novembro de 2011, intitulada: “África do Sul 2010: legado no bolso da FIFA e seus parceiros”. Alexandre encontrou Eddie em um seminário com operários do setor em Kharkov, Ucrânia, uma das cidades-sede da Eurocopa 2012. Em: http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1041.

[4] Em: http://www.dailymail.co.uk/news/article-1293826/Fifa-puts-extreme-pressure-Nelson-Mandela-World-Cup-final.html.

[5] Em: http://www.huffingtonpost.com/2013/04/18/sochi-extermination-russia-stray-cats-dogs_n_3103709.html.

[6] Em: http://extra.globo.com/esporte/copa-2014/copa-2014-em-seis-anos-gastos-com-estadios-ja-aumentaram-mais-de-200-8360900.html#ixzz2WVahUydA.

[7] Em: http://www.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=38189.

[8] Em: http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2013/06/saude-do-df-remaneja-pacientes-para-abrir-vagas-em-leitos-para-copa.html.

[9] Em: http://www.opovo.com.br/app/opovo/cotidiano/2013/06/06/noticiasjornalcotidiano,3069264/pms-sao-remanejados-do-interior-para-a-copa-das-confederacoes.shtml.

[10] Em: http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/mpf-recomenda-interromper-desapropriacoes-para-a-copa-em-bh.

[11] Em: http://www.hojeemdia.com.br/minas/mendigos-s-o-recolhidos-para-bh-ficar-bonita-para-turistas-1.135010.

[12] Em: http://www1.folha.uol.com.br/esporte/1056536-brasil-precisa-de-chute-no-traseiro-diz-fifa-sobre-atrasos-da-copa.shtml.

[13] Em: http://copadomundo.uol.com.br/noticias/redacao/2013/04/24/excesso-de-democracia-no-brasil-afeta-organizacao-da-copa-diz-valcke.htm.

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