Paradigma da Justiça

Desafio dos JEFs é equilíbrio entre quantidade e qualidade

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16 de junho de 2013, 7h16

Tudo já se disse sobre a necessidade de redimensionamento do tempo do processo. A crise da demora, nada obstante o dever constitucional de agilidade, parece não ceder diante dos remédios prescritos. E o pior, tais remédios produzem efeitos colaterais indesejados. Tomada a perspectiva material, é fácil perceber que a sacralização dos números, da produtividade e das estatísticas – e a consequente demonização da qualidade – produz um efeito absolutamente nefasto para a qualidade da prestação jurisdicional. Melhor dizendo, abala a essência mesma da ideia de justiça; ama as mutações e transforma os jurisdicionados (sujeitos e suas aparências) em números, ou dados desumanizados, que precisam, com a máxima urgência, ser baixados do banco de dados do sistema informatizado dos tribunais. Não interessa de que forma. Sob o "fetiche dos números", tudo é válido, desde que se julgue com rapidez (pressa). É válido dizer "qualquer coisa sobre qualquer coisa". A fundamentação fica cada vez mais escassa. A hermenêutica cede espaço à ressurreição de uma vertente positivista (exegética) que há muito ficou démodé.

É verdade. Quando se pensou que a técnica de julgar a partir da literalidade da lei (como quiseram os juristas franceses da codificação) estivesse exorcizada, ela renasce com toda a força. Vemos, para dizer o menos, quatro maneiras de sonegar a fundamentação da decisão: a primeira, está compreender/aplicar o texto legal para depois fundamentar; a segunda, é cindir interpretação e aplicação conferindo ao direito uma mera racionalidade instrumental; a terceira, é tanto afirmar que a solução está no texto da lei, incorrendo numa confusão entre texto e norma, como não levar a sério o próprio texto e o que ele tem a dizer; a quarta, é apelar para o solipsismo, julgando com base no discricionarismo, na opinião pessoal, no subjetivismo, na hermenêutica da consciência e no desprezo à existência e à experiência do outro, prática tão estéril quanto pode ser o menoscabo à tradição jurídica.

O novo paradigma de justiça instituído pelo Estado Democrático de Direito, incompatível com a matriz positivista, superou a ideia do direito como sistema de regras e a racionalidade lógico-formal causa e efeito, trazendo a lume a hermenêutica principiológica de matriz constitucional (neoconstitucionalismo), ou seja, introduzindo no discurso constitucional os princípios, cujo papel é representar a efetiva possibilidade de resgate do mundo prático (faticidade) até então sequestrado pelo positivismo.

Por outro lado, não se pode confundir sumarização com pressa e açodamento. A insistência em afirmar, equivocadamente, que os JEFs foram criados "apenas" para agilizar a prestação jurisdicional, que são meros instrumentos de celeridade, olvidando que estão vocacionados a, sobretudo, assegurar o acesso efetivo e igualitário à ordem jurídica justa, produz um artificialismo catastrófico e sem precedentes na história do Poder Judiciário brasileiro. Ecoa esta assertiva apológica do “vale tudo” como uma espécie de salvo conduto para todos os atropelos e vilipêndios de garantias seculares no microssistema dos juizados. Ao impulsionar os processos para uma solução tão rápida o quanto possível, os juízes, contaminados pelo imediatismo sistêmico, vezes sem conta, descuram da instrução do processo, fugindo da faticidade e da fenomenologia, exercitando um modelo decisório que apenas reprisa signos do texto sem fechar o círculo hermenêutico.

Suspeitamos estar madura, então, uma (re)ação contra este estado de coisas. É o momento de desencadear uma outra batalha épica: a luta para debelar a segunda crise dos JEFs (a primeira foi contra os números). Urge, pois, voltar a atenção à solução dos eclipses de identidade e legitimidade; avançar, e muito, no campo da responsabilidade social, na busca do papel que o constitucionalismo conferiu aos Juizados Especiais. Este papel constitucional atribuído ao microssistema dos juizados coloca os seus juízes na condição de agentes de transformação social, impondo-lhes um desafio que vai além da leitura que possam fazer dos textos da lei e da dogmática jurídica, uma inspiração que precisam haurir dos princípios constitucionais e da hermenêutica, esta que permite o olhar mais profundo para o contexto sócio-político que constitui o cenário de sua intervenção jurisdicional no Estado Democrático de Direito, que nada mais representa do que a vinculação do Estado ao compromisso de efetivação dos Direitos Fundamentais, de lhes dar sensibilidade social, para que passem do plano do reconhecimento para o da efetivação, para que deixem de ser meras manifestações de propósitos sem consequência prática no mundo fenomênico.

Se esta missão demanda reflexão, estudo e esmero na fundamentação para que seja forjada a decisão correta, que deve ser a melhor possível e não a mais breve possível, tem-se de dar tempo aos seus prolatores, sob pena de estarmos a criar máquinas de decidir, verdadeiras linhas de produção de soluções, que transformam justiça em mercadoria, empilhando decisões que a ninguém aproveitam, que não refletem qualquer compromisso, nem com a justiça, nem com o direito, nem com a sociedade, nem com a democracia, muito menos com os objetivos republicanos insertos na Constituição.

O abuso das ideologias utilitaristas assimiladas pelo capitalismo, não escondendo as tendenciosas defesas neoliberais de retirada do Estado Social, para assumir o seu lugar – oferecendo, em substituição, a quem puder pagar os seus serviços remunerados – por exemplo, representa verdadeira ignomínia ao invés de justiça, não está em consonância nem com o direito, nem com a igualdade, os dois sentidos da justiça. Com efeito, a justiça não é apenas um contrato de utilidade como quis Epicuro, nem reflete a ideia de otimização do bem-estar coletivo, como sustentaram Bentham e Mill, admitindo que pode ser justo sacrificar o direito de alguns, ainda que indefesos, para a felicidade de quase todos, se isso é justamente o que a justiça deveria proibir.

A persistir o estado de coisas que hoje vivenciamos, muito cedo perderão os Juizados Especiais Federais sua identidade, solapada pelo abismo que se cria entre as expectativas sociais acerca da sua concepção e papel no contexto sócio-jurídico e a sua experiência, e com ela a legitimidade, que se esvai na descrença da solução correta e justa, incentivando a busca da concretização de direitos reconhecidos em instâncias à margem do Estado.

Se o Estado-juiz deseja render homenagem ao modelo produtivo do capitalismo liberal, criando ele também sua fábrica (fordista) de decisões, robotizada e de larga escala, cujo produto é descartável e alheio às necessidades sociais, inacessível aos excluídos do próprio capitalismo, arrastando consigo a ideologia das classes burguesas, como disse Foucault, precisa compreender que a manutenção da legitimidade pressupõe um insumo de lealdade de massa.

O desafio dos JEFs é buscar o equilíbrio entre a quantidade e a qualidade, e se vamos mesmo levar a sério o paradigma das organizações privadas, como tem proposto a cúpula do Poder Judiciário, que não esqueçamos então do chamado "Controle de Qualidade Total" (TQC), atestando que o produto que colocamos no mercado satisfaz e até supera as expectativas dos nossos clientes, é dizer, que passou pelo teste do “nível-zero” de defeitos. 

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