Prerrogativas do MP

PEC 37 revela incerteza sobre quem fiscaliza o fiscal

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11 de junho de 2013, 19h10

Diga-se, em primeiro plano, que o Ministério Público, como instituição, tem dos advogados em geral e deste, em particular, imensa demonstração de respeito, reconhecendo-se a seus integrantes os bons serviços prestados à nação. Entretanto, vige desde tempos remotos o preceito que exige sempre, respeitante à coletividade, série escalonada de fiscais, inadmitindo-se órgão blindado a correições externas.

Em suma, os velhos praxistas, acompanhando os latinistas, indagavam: “–Quis custodiet ipsos custodes?”. Isso diz, é claro, com duas sortes de inquirições: a) – a ausência de controle externo pode levar uma instituição a desbordamentos? b) – tais extravagâncias podem significar ilegalidades no exercício das atribuições primitivas?

Vale o contexto para qualquer degrau do relacionamento humano, a partir da célula primeira, ou seja, da família, até a maior ou menor extensão na governança de um povo. Em termos de Estado-Nação, criam-se as ditaduras; já descendo aos chamados animais inferiores, sabe-se perfeitamente que num rebanho o líder pode levar toda a manada a cair no precipício. Cuida-se de raciocínio até rude, mas é assim. Vêm a pelo tais cogitações enquanto se examina o combate desesperado feito pelo MP, em todas as suas repartições, quanto à dita ameaça contida na PEC 37.

Segundo os promotores de Justiça, tal proposta de emenda constitucional pretenderia cassar poderes à diferenciada corporação. De acordo com outros, não se pode tirar do MP aquilo que não lhe foi ofertado. No meio disso tudo, há imprescindibilidade de se colocar a disputa em termos muito práticos: diga-se que, por enfraquecimento, inclusive, do controle jurisdicional, muitas vezes fazendo, os juízes, par com as anomalias, o Ministério Público Federall, a poder de condutas processualmente muito agressivas, foi ocupando posições que formalmente não tinha, a partir, inclusive, do denominado Inquérito Civil Público, transformado aos poucos em procedimento penal disfarçado, conhecendo-se algumas características que o primeiro tem, ou seja, a capacidade de convocação dos requeridos sob a ameaça de condução coercitiva.

Tocante à chamada investigação de natureza policialiforme, as características assumem dimensão assustadora, vindo o assunto à contradição pública, agora, com escândalo consumado nos Estados Unidos, sacudida a nação pela ciência de que o governo Barack Obama verruma impiedosamente a intimidade de milhões de cidadãos, sem exceção de importantes órgãos de imprensa. Aqui, não se sabe se os americanos do norte são os geradores ou imitadores da obsessão brasileira pela intromissão, via eletrônica, na cama dos casais e reposteiros que protegem a intimidade do povo.

Obama, o emagrecido presidente norte-americano, tem seriíssimo problema a resolver, bastando lembrar que incidente assemelhado, na terra do Tio Sam, embora bem inferior em gravidade, levou Nixon ao impeachment, com os resultados de todos conhecidos. Aqui, a partir de notificação emanada da Ordem dos Advogados do Brasil, o Conselho Nacional do Ministério Público já identificou, no mínimo, 17 segmentos daquela coletividade adquirentes do instrumental denominado Guardião” ou análogo, não se conhecendo a destinação do aparato, a capacidade do mesmo e os mistérios viscerais que acompanham o produto, sabendo-se apenas que as empresas fornecedoras parecem não estar competindo umas com as outras nos vários estados da Federação.

Em suma, em São Paulo, o apelidado Guardião foi adquirido pelo sistema de pregão, havendo uma única empresa concorrente, embora, como já dito, haja outros sistemas postos à disposição dos órgãos públicos interessados, na medida em que, parece, qualquer pessoa jurídica privada não teria legitimidade para por o trambolho a funcionar, sabendo-se que a parafernália é disposta a violentar as intimidades da cidadania. Dentro de tal contexto, a relação posta sob crítica é unificada entre a autoridade e o fabricante do produto, inexistindo a possibilidade de terceiros se interessarem abertamente pelo instrumental.

Na medida em que a aquisição do denominado Guardião ou congêneres é cercada de cuidados tais que o próprio conhecimento do artefato chega ao público enovelado soturnamente numa zona grigia, não há ciência, exceção feita a pequenos vazamentos, do meandro do uso de computadores desse tipo, comentando-se, a boca pequena, produção originária no sul do país por sociedade ramificada em vários estados, divulgando-se, há algum tempo, um faturamento superior à casa dos R$ 60 milhões.

É difícil, no contexto de disputa ligada à PEC 37, o aberto enfrentamento do tema por coletividades juridicamente organizadas. De um lado, o arcabouço central, ou o miolo, é submetido a grande sorte de posicionamentos. De outra parte, o colegiado precisa, politicamente, proteger-se contra ataques frontais, comportando-se então prudentemente. Nessa medida, embora havendo acirrada argumentação posta individualmente por lideranças diversas, o chamado cerne, ou ponto nodal, fica à margem, usando-se a dialética para evitar deslize enlamaçado.

Nesse entreato, diga-se que um dos maiores defeitos da Instituição do MP tem sido aquele de ir além dos tamancos, agredindo a estabilidade do contraditório com armas que não deve e não pode ter, exemplificando-se com o chamado Guardião. Aquela ferramenta constitui, agora, a pedra de toque da violação máxima das intimidades da cidadania. O povo, aqui classificado como a grande massa, não sabe bem o que vem acontecendo atrás das cortinas do sofisticadíssimo conflito entre acusação e defesa.

Sabe apenas, pelas ramas, que a privacidade da família já não mais existe, suspeitando cada qual que suas cartas, seus telefonemas, seus e-mails, seus corpos, estes no skype, podem estar sendo objeto de curiosidade até satânica consumada por hackers, é bem verdade, mas também por voyeurs adstritos a diversos segmentos do poder público. Dentro do contexto, o burguês de pequeno ou grande porte acorda e dorme com sentimento estranho de ofensa surreal aos atos mais íntimos da sua vida, embora não conseguindo conscientizar a razão primacial da angústia.

Cuida-se, aí, de um medo quase inconsciente, se inconsciente não for, assemelhado àquele do andarilho voltando à casa nas brumas de uma noite escura, sem saber se será ou não vítima de assalto. Dê-se o exemplo, inclusive, para o cidadão refletir, embora sendo humilde desfrutador das possíveis benesses do convívio em sociedade, no sentido de que até ele não pode ficar à margem do problema. Precisam saber, todos, que a discrição, partilhada somente com aqueles que na família se integram, é hoje campo aberto a pesquisas, violação de segredos, intromissão nos hábitos e costumes, sem recato, diga-se de passagem, na verrumação até mesmo de exames de laboratório, isto se autoridades o quiserem. Não se fale na Receita Federal, nos fiscais dos tributos, nos intromissores nas contas bancárias, nas coações praticadas contra os próprios provedores dos esquemas eletrônicos, tudo na antecipação do domínio pleno sobre a vida alheia, conhecendo-se ditado, há muito vigendo nos corredores dos regimes autoritários, consistindo em “quem tem a informação tem o poder”.

É preciso saber, com a maior dose de certeza possível, qual a finalidade da aparelhagem adquirida a peso de ouro pelos diversos segmentos do Ministério Público Federal. É imprescindível conhecer, por força até mesmo da inteira definição do tema em digressão, o que a respeitada Instituição tem feito com o mefítico produto violador dos segredos da cidadania. É imprescindível conhecer quem, quando, onde e para quais fins está a usar o instrumental adquirido.

Responder-se-á, quem sabe, que isso constitui segredo profissional, mas convém dizer que nenhum órgão do governo pode abroquelar-se no sigilo quando convocado a uma disputa aberta sobre o comportamento de seus sectários, mormente enquanto se vale de estrutura ilegítima para a obtenção de informações. No Brasil de hoje, segundo se diz, havendo apregoamento disto no próprio Supremo Tribunal Federal, a transparência é o pilar sustentador de todo conflito posto entre o poder e o cidadão.

Coloque-se, então, o assunto à superfície: o MP já investiga sem autorização legal a tanto. Já conserva nos escaninhos, com ou sem autorização judicial, série enorme de aferições do que se passa na vida de outrem. Já contratou, ou agregou, bom número de criaturas aptas ao manuseio dos computadores preparados para a captação ilegal do recato da cidadania. Paga-os. Adquiriu o material, sim, de entidades privadas, vigendo o preceito consistente no fato de que quem faz tem condição de mudar, desfazer e aferir o que fez. Evidentemente, as entidades contratadas pelo Ministério Público para a venda e ensinança da lidação com o produto têm condições de controlar o desenvolvimento, obrigando-se inclusive à atualização metodizada do software.

Obviamente, ampliada a dimensão da disputa, virá argumento no sentido de que as empresas fornecedoras assinam com o adquirente um termo de sigilo, circunstância a deixar nas mãos de uns poucos, quem sabe, os próprios destinos políticos da nação, valendo dizer que o tempo de hoje não é o tempo do amanhã, cobrando o porvir, certamente, contas daquilo que já passou.

Pessoalmente, o cronista tem horror à vituperação das intimidades da cidadania. Classifica o violador, posto ou não dentro de princípios abstratos de legalidade, na tabela dos maiores ofensores de princípios básicos norteadores do conviver humano. Mas isso não vem ao caso. Pretende-se agora, no entremeio e até no abrir definitivo das portas sobre a disputa da PEC 37, saber quais as benesses atribuídas, por hipótese, à instituição que tão afincadamente vem defendendo um direito, não existente, de guardar em suas gavetas segredos, mesmo pequeninos, do povo brasileiro. Em suma, quem fiscaliza o fiscal?

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