Liberdade de expressão

Condenação de jornalista por texto fictício é absurda

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29 de julho de 2013, 7h34

O falecido jornalista Norman Mailer, um dos mais conhecidos ícones do “new journalism”, certa vez alertou sobre a importância da palavra “n’golo”, oriunda do congolês, que significa “força vital, [que] poderia ser aplicada a ego, status, potência ou libido” e dentro deste contexto, algo ainda mais abrangente sobre a própria filosofia da linguagem Bantu, de nossos ancestrais africanos e que influencia a própria maneira de se pensar e se expressar comunicativamente. No livro Bantu Philosophy, escrito pelo Padre Temples, segundo Mailer,

(…)‘A palavra’, (…) é água e calor, e uma vez que a palavra é igual à água, todas as coisas são efetivadas por Nommo, a palavra. Desse modo até o ouvido se torna um órgão sexual à entrada de Nommo: A boa palavra, assim que é recebida pelo ouvido, vai diretamente ao órgão sexual, onde rola no útero […]” [1]

Corroborando a reflexão, Edgar Morin afirma que o ser humano produz duas linguagens a partir da língua, uma racional, empírica, prática e técnica, e outra simbólica, mítica, mágica. Essas duas linguagens podem ser justapostas ou misturadas, separadas, opostas e a cada uma correspondem dois estados, o prosaico e o poético. [2]

Norman Mailer e Edgar Morin concordariam que a decisão judicial proferida no processo nº 201245102580, em 04 de julho de 2013, pelo juiz substituto Luiz Eduardo Araújo Portela perante o Juizado Especial Criminal da Comarca de Aracaju (SE) que condenara criminalmente o jornalista José Cristian Góes por escrever texto ficcional sobre o coronelismo de novos tempos, “Eu, o coronel em mim. Mando e desmando. Faço e desfaço” (aqui) escrito em primeira pessoa, sem citar nomes, datas e nem lugares, representa uma fúnebre sonata. Um réquiem tocado no funeral e no enterro da linguagem mágica, o falecimento da expectativa de vida de “Nommo”, verdadeiro enterro da “liberdade de expressão”. Sobre o tema escreveu-se outro texto (aqui).

A decisão judicial acima referida acolhera a tese da acusação, com elementos impensáveis em uma decisão judicial, ainda que apenas referidos, como o acolhimento de tese acusatória com a justificação de que “não seria preciso sequer muito esforço hermenêutico” para concluir pela procedência da acusação, no estilo expressado na sentença de que para a condenação criminal, “para um bom entendedor, meia palavra basta”.

Segundo a sentença que acolhera a tese punitiva, muito embora não conste no texto nenhum nome, data e local, seria possível concluir pela condenação do autor do texto porque em Sergipe só existe um desembargador casado com a irmã do governador, a atrair a conclusão de que quando o texto fala que o coronel fictício iria chamar o “jagunço das leis”, e conforme consta do texto “não por coincidência” casado com a irmã do coronel, estaria falando respectivamente do governador Marcelo Deda (PT) e do desembargador Edson Ulisses, este último nomeado pelo governador, seu cunhado, irmão de sua mulher.

Meia palavra não basta, em uma democracia, para ensejar condenação criminal. Aliás, Carlos Drummond de Andrade, em sua sapiência, já dizia a esse respeito:

“A porta da verdade estava aberta,

mas só deixava passar

meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,

porque a meia pessoa que entrava

só trazia o perfil de meia verdade.

E sua segunda metade

voltava igualmente com meio perfil.

E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.

Chegaram ao lugar luminoso

onde a verdade esplendia seus fogos.

Era dividida em metades

diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.

Nenhuma das duas era totalmente bela.

E carecia optar. Cada um optou conforme

seu capricho, sua ilusão, sua miopia.” [3]

Ele sintetiza nesse poema o atual estado de espírito da nossa “liberdade de expressão”. Eis que, quando meias palavras bastam para respaldar uma condenação criminal, quando não se requer muito esforço hermenêutico para concluir pela procedência da pretensão punitiva em desfavor de um jornalista por escrever um texto ficcional sobre coronelismo em que não se refere a nome, data e local, é sintoma de uma justiça caprichosa, ilusionista e desenganadamente portadora de miopia. Que não se ouse incursionar pelo exotérico significado de “bom entendedor”, que por si só exclui aquele que teria pretensões interpretativas diversas, o “mau entendedor”, na eterna clivagem entre mocinhos e bandidos, casta superior e casta…

O renascimento de uma discussão que se imaginava sepultada

Este caso é dupla e especialmente “interessante” porque no fundo há uma percepção, por parte do magistrado sentenciante e do Desembargador que se sentiu ofendido com o texto de Cristian Góes, de que uma determinada manifestação textual: “jagunço das leis”, ao qual um suposto coronel afirma que iria chamar para debelar o povo (de quem não suporta o cheiro), “não por acaso marido de minha irmã”, se referiria (segundo a versão da acusação) à nomeação do desembargador pelo próprio irmão de sua esposa. Eis o mote da condenação.

Assim, sem adentrar ainda no mérito sobre a questão do texto fictício, podemos reconhecer que, a condenação judicial de Cristian Góes mais serviu para alimentar discussões acerca da indagação da pertinência e constitucionalidade de indicação de parentes ou pessoas com vínculos de extremada proximidade para disputa de cargo de desembargador do Tribunal de Justiça, no Estado em que a autoridade nomeante exerce o cargo de governador.

Vale recordar caso recente e similar em que a OAB do Maranhão, em decisão posteriormente confirmada pelo Órgão Supremo da OAB, qual seja, o seu Conselho Federal, neste mesmo ano de 2013, vetou a possibilidade de um advogado —cunhado da governadora do Maranhão — disputar a vaga de desembargador do Tribunal de Justiça do estado.

Segundo a Ordem dos Advogados do Brasil, a disputa pela vaga de desembargador do TJ no estado em que a autoridade nomeante é parente do postulante acarreta desigualdade na disputa, em claro nepotismo que fere ideais republicanos. Nas Palavras da Ordem, falando sobre o caso do Maranhão, mas que se aplica a quaisquer estados, inclusive Sergipe: “o deferimento da inscrição do recorrente iria contrário à eterna luta da OAB pelos ideais republicanos, bem como configuraria o tão indesejado nepotismo. E não resta dúvida de que o recorrente, por ser cunhado da atual governadora, não se encontra em pé de igualdade com os demais concorrentes. Não há, aqui, o balanceamento de forças que a OAB deve primar. O desequilíbrio está presente às claras, e só não percebe quem não quer ver”.

A notícia que rodou o mundo

Embora Cristian Góes tenha escrito o texto em primeira pessoa, sem citar nomes, ficcionalmente, e em juízo tenha dito que em nenhum momento direcionou a narrativa para quem quer fosse, afirmando que era apenas um exercício literário, cuja inspiração surgira após assistir a uma palestra que sugestionava que cada um de nós teria um lado “coronelesco” e/ou um lado “escravizado” que se refletiriam em determinados comportamentos sociais de cada pessoa, na idiossincrasia de sua singularidade, Cristian Góes foi condenado por escrever e (d) escrever “ficção”.

A notícia, por ser demasiadamente “fantástica”, correu o mundo, foi reproduzida por inúmeros veículos de comunicação, inclusive no site internacional Repórteres Sem Fronteira (Reporters Without Borders), que em sua pagina principal qualifica a decisão judicial de “insanidade judicial que insulta os princípios básicos da Constituição Democrática de 1988”[4].

Exerce-se aqui o direito de crítica (técnica, jurídica, política e ideológica) da decisão judicial que condenara o jornalista José Cristian Góes. A leitura da sentença permite observar a fragilidade da argumentação, patente deficiência da fundamentação, insuficiente justificação interna e externa e adoção de um ponto de vista jurídico que mais se aproxima de “decisionismo”, em sentido técnico: jurídico-político, vale dizer, tanto na observação de Lênio Streck [5] de que o "ovo da serpente do "decisionismo" encontra-se no 8º capítulo da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, ou ainda sobre a observação de Ronaldo Porto Macedo Júnior acerca do “decisionismo” vinculado ao pensamento de Carl Schmitt [6].

O jornalista foi condenado pelo crime de injúria contra o desembargador Edson Ulisses, e afirma-se na decisão judicial condenatória que a intenção de ofender estaria implícita, afirmando-se, ainda, que não há violação do direito de liberdade de imprensa e nem ao direito de liberdade de expressão, sendo permitido ao jornalista o direito de emitir opinião e formular críticas, mesmo que severas, irônicas e impiedosas, mas que estaria limitado pelo direito fundamental à intimidade da pessoa que é alvo das críticas.

Por esta interpretação, esqueceu-se o magistrado de mencionar (justificar/fundamentar) de que forma seriam feitas criticas impiedosas, severas e irônicas sem que seja ferida necessariamente a intimidade da autoridade alvo das opiniões e críticas formuladas? Pior, esqueceu o magistrado de dizer se por acaso uma obra de arte, como “O grito” de Edvard Munch, poderia estar apta a ferir alguma susceptibilidade a ponto de permitir o encarceramento da tela no ergástulo público, pois evidentemente poderia ser um grito de xingamento contra alguém, a depender da interpretação ou leitura labial, já que meia palavra basta e já que não se exige muito esforço hermenêutico para condenação.

Eros Grau, sobre as “artes alográficas” e “artes autográficas” [7], afirma respectivamente que nas primeiras (música e teatro) a obra se completa com o concurso de duas personagens (autor e intérprete), e já nas últimas “artes autográficas” (romance e pintura), por seu turno, a obra se completa com a participação do autor, e apenas ele, ou seja, Cristian Góes afirma que não direcionou a crítica a nenhuma pessoa em particular, literatura é universal, e assim, a conclusão é de que não pode subsistir a condenação!

Daniel Nicory do Prado, em uma belíssima e exemplar abordagem hermenêutica sobre “literatura e crime”, afirma, ao que parece, somente o juiz e o desembargador duvidam — textos literários são dotados de plurivocidade, e na pior das hipóteses, havendo mais de uma interpretação há de prevalecer o milenar postulado do “in dubio pro reo”. [8]

A condenação criminal de Cristian Góes é inaceitável sob quaisquer pontos de vista jurídico, e embora nosso Supremo Tribunal Federal nos traga exemplos atuais de que a liberdade de expressão deve ser preservada pelo amor da própria democracia (ADPF 130, ADI 4451, ADPF 187 e MC na RCL 15.253), a U.S. Suprem Court nos traz também alguns exemplos importantes, pois devemos permitir mesmo a “liberdade para as ideias que odiamos” [9], permitindo a discussão livre de ideias sob pena de se restringir demasiadamente o espaço de respiração dos direitos fundamentais [10] para que sejamos todos preservados dos “chillings effects” (efeitos paralisantes) e/ou “deterrent effects” (efeitos dissuasórios) no que tange ao medo da comunidade para o exercício de legítimos direitos fundamentais constitucionalmente assegurados [11].

Evidentemente, existem distinções entre nossa Constituição e a Constituição dos Estados Unidos da América, e entre as tradições e práticas do Parlamento, do Executivo e da Suprema Corte, mas uma modelação constitucionalmente aceitável da preservação da “Liberdade de Expressão e de Imprensa” parece recomendar uma liberdade extremada, e os abusos possíveis deveriam ser objeto de “autorregulação”, ou quem sabe um aprofundamento dos debates sobre um “Conselho Nacional de Imprensa” como sugerido por Carlos Ayres Britto [12], mas nunca uma condenação, e parece claro, jamais a condenação por escrever um conto fictício.

Não se olvida ainda o fato de necessitarmos de uma urgente “democratização da mídia”, pois como se sabe os veículos de comunicação tem interesses econômicos e ideológicos, e para tanto se utilizam do instrumental jurídico e político existentes, sendo ainda de conhecimento geral o fato de que alguns poucos grupos empresariais dominam boa parte das ligações midiáticas no país, o que é perigoso e pernicioso. Aliás, o texto de Cristian Góes também denuncia este problema quando diz que o coronel tem a mídia e o dinheiro em suas mãos.

Em último caso, a condenação de Cristian Góes não pode prevalecer nas instâncias revisoras e de cassação, pois do contrário estaremos passando um claro recado ao mundo, qual seja, o de que aqui não se pode exercer o pensar livre e também que a manifestação da expressão em liberdade não passa de uma ilusão, e este texto não passará de uma fúnebre homenagem.

O que diriam sobre o caso Victor Nunes Leal, autor de “Coronelismo, Enxada e Voto”, mais ilustre filho de Carangola, que em 2014 completaria 100 anos, se vivo estivesse, e Machado de Assis, o “Bruxo do Cosme Velho”, mais genial escritor de todos os tempos, autor de nossa “Sereníssima República”? Pobre imprensa! Pobre país! Pobre Cristian Góes!

NOTAS E REFERÊNCIAS

[1] MAILER, Norman. A Luta – A história da maior luta de boxe do século XX: Muhammad Ali versus George Foreman. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 38-70.

[2] MORIN, Amor, Poesia, Sabedoria. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998, p. 35-36.

[3] DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Contos plausíveis. Rio de Janeiro: José Olympio, 1985.

[4] “Journalist Gets “Judicially Insane” Jail Term For Fictional Short Story” (Jornalista Pega Prisão “Judicialmente Insana” Por Escrever Pequena Estória Fictícia), Repórteres Sem Fronteiras, 8.07.2013, Disponível em: http://en.rsf.org/brazil-journalist-gets-judicially-insane-08-07-2013,44904.html

[5] STRECK, Lenio Luiz. SENSO INCOMUM: E o Oscar vai para… o decisionismo (de novo)!, Consultor Jurídico, 3 de maio de 2012, Disponível em: http://www.conjur.com.br/2012-mai-03/senso-incomum-habeas-corpus-jogador-oscar-exemplo-decisionismo

[6] MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. O decisionismo jurídico de Carl Schmitt. Lua Nova [online]. 1994, n.32, pp. 201-215. ISSN 0102-6445. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-64451994000100011.

[7] GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009. Diz o autor que as artes alográficas a interpretação “importa compreensão + reprodução: a obra, objeto da interpretação, para que possa ser compreendida, tendo em vista a contemplação estética, reclama um interprete; o primeiro interprete, compreende e reproduz e o segundo interprete compreende mediante a (através da) compreensão/reprodução do primeiro interprete.”.

[8] PRADO, Daniel Nicory Do . Literatura e apologia ao crime: uma abordagem hermenêutica. In: XVI Congresso Nacional do CONPEDI, 2008, Belo Horizonte. Anais do XVI Congresso Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008. p. 4908-4928. Disponível em: http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/daniel_nicory_do_prado2.pdf

[9] United States v. Schwimmer, 279 U.S, 644, 654-55 (1929), no famoso voto do lendário Justice Justice Oliver Wendell Holmes Jr: “Algumas das respostas dela podem incitar o preconceito das pessoas, mas, se há um princípio da Constituição que exige fidelidade de forma mais imperativa do que qualquer outro é o princípio do livre pensamento – não o livre pensamento para aqueles que concordam conosco, mas a liberdade para as ideias que odiamos. Acredito que devemos aderir a esse princípio em relação ao ingresso e à vida neste país. E, recorrendo ao voto que obstrui o caminho da querelante, eu sugeriria que quacres fizeram o possível para tornar este país o que ele é, que muitos cidadãos concordam com a crença da requerente e que até este momento eu não supunha que lamentássemos nossa incapacidade de expulsá-los porque eles acreditam mais do que alguns de nós nos ensinamentos do Sermão da Montanha”.

[10] Walker v. City of Birminghan U.S. 307 (1967) em que se pode ler, sobre os a necessidade de manutenção de um espaço respiratório para os direitos fundamentais: “Para dar a estas liberdades o necessário ‘espaço respiratório de sobrevivência’ (…) para conformar a nossa sobreleitura para abrigar todos os indivíduos do ‘chilling effect’ acerca do exercício dos Direitos da 1ª Emenda garantidos pela imprecisão, amplitude excessiva e discrição desenfreada para limitar o seu exercício.

[11] Wieman v. Updegraff, 344 U.S. 183 (1952), em que se pode ler sobre a importância que deve ter a liberdade de expressão e sobre os chilling effects, pelos pronunciamentos dos Justices Black e Frankfurter.

[12] BRITTO, Carlos Ayres. Entrevista no Observatório da Imprensa: Imprensa dá a primeira palavra e o Judiciário, a última. Em 05 de julho de 2013. 

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