Embargos Culturais

Policarpo Quaresma é versão brasileira de Dom Quixote

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

28 de julho de 2013, 8h00

O Triste Fim de Policarpo Quaresma é provavelmente o livro mais conhecido de Lima Barreto. Trata-se de quase concepção de um Dom Quixote nacional. Policarpo remete-nos aos heróis picarescos, é Tartarin de Taráscon, outro exemplo deste tipo de herói.

O Policarpo Quaresma é personagem de Lima Barreto que substancializa o problema nacional brasileiro[1]. Trata-se de alternativa bem-humorada e sardônica para as propostas formalistas e europeizantes da época, centradas em autores como Gustavo Barroso, Alberto Torres e Coelho Neto, que imaginavam um Brasil asséptico, que não refletia a imagem que visitantes faziam de nós, a exemplo dos relatos colhidos nas expedições de William James e de Theodore Roosevelt, americanos — um filósofo, outro político — que se aventuraram pela Amazônia.

Nacionalista, ufanista, preocupado com as coisas do país, Policarpo pretende falar tupi, e deixar de lado o português, símbolo glotológico de interferências externas. Policarpo é referência da presidência Floriano Peixoto, o marechal de ferro, que o romance descreve como obtuso e atrabilhiário.

O enredo é muito bem engendrado. Por conta da insistência de Policarpo em utilizar o tupi como língua nacional, tem-se como consequência a forte suspeita da alienação mental do herói. Aposentado por invalidez, Policarpo viverá num sítio, onde se entusiasmou pela agricultura. Os fortes da política local — com quem não compactuou —, a saúva e a impossibilidade de vender a safra o levaram a bancarrota.

O major seguiu para o Rio de Janeiro, com o objetivo de combater ao lado do marechal Floriano Peixoto, ao longo da Revolta da Armada. Tornou-se carcereiro na ilha na qual os revoltosos eram mantidos presos. Indignou-se contra a aleatória escolha de doze presos que seriam executados. Enviou uma carta ao presidente Floriano Peixoto, o que resultou em seu indiciamento como traidor, e a condenação à pena de morte, o seu triste fim.

Policarpo é um major, patético, cômico, suburbano. Seu nacionalismo é ridículo, seu apego para com tudo o que é brasileiro indício de destempero mental. Atemorizado por insetos e saúvas, Policarpo Quaresma representa um progresso inexistente. Fisicamente, o major parecia ser bem tipicamente brasileiro.O patriotismo era sua marca mais recorrente. O Policarpo Quaresma era um estudioso do Brasil, de nossas coisas, de nossa história, de nossas riquezas. Estudava a língua dos índios, com dedicação, e a literatura indianista. Fazia de tudo que o circundava algo que se relacionasse com os nativos, reais e imaginários. A biblioteca do major bem poderia ser a própria biblioteca de Lima Barreto, descrição que aponto gostos e tendências do tempo retratado.

A origem do major era confusa, ainda que indubitavelmente brasileira. O major Policarpo Quaresma pretendia mudar o Brasil, colaborar com as alterações que se faziam necessárias, sugerir, agir; era chegado o momento de se reconhecer a força de nosso país. Um inusitado requerimento do major Policarpo fora dirigido à Câmara. O major pretendia — simplesmente — que se abandonasse o português e que se adotasse o tupi como língua nacional.

O inusitado requerimento do major chamou a atenção sobre a pessoa. O Policarpo Quaresma passou a ser ridicularizado, assunto dos jornais, e de todo tipo de comentário maledicente. A situação era constrangedora, abalando o major; a exposição ao público era transtorno. Na repartição onde trabalha o major tornou-se motivo também de pilhéria e de certa irritação, que revelava a falsidade e a pequenez da vida burocrática. Lima Barreto parece descrever a repartição na qual trabalhava, ambiente que talvez contenha um pouco de todas as repartições onde se deixam vidas e sonhos. Aposentado, o major seguiu para o campo; passa a viver no sítio Sossego. O local, imagina Lima Barreto, não era feio, mas não era belo. Policarpo Quaresma dedicou-se à agricultura, com toda intensidade, como intensamente fazia tudo na vida. Começava vida nova, com a paixão que imprimia a tudo que fazia. Tudo planejava. Inventariava. Classificava. Lia furiosamente. Estudava botânica, zoologia, mineralogia, geologia.

Desentendendo-se com os poderosos locais, enfrentando as saúvas e as dificuldades de produzir no Brasil, o major retornou para o Rio de Janeiro. Ajudaria ao presidente Floriano Peixoto, cujo governo era ameaçado pela insurgente Revolta da Armada. Setores da Marinha desafiavam o Marechal de Ferro. Floriano empolgava a classe média, os militares de médio escalão e a juventude positivista. No Rio de Janeiro, no entanto, vicejava ambiente de conflito interno, com as perseguições, facções, conchavos.

Floriano contava com apoio, e em seu nome se agia com espírito jacobino, ainda não visto no Brasil. Entre os militares era forte o sentimento de satisfação. O espírito de autoridade triunfava, e o país parecia a caminho da organização. O positivismo também triunfava, a matemática parecia ter todas as soluções, o Brasil entrava no rumo certo.

Finalmente, Policarpo foi recebido por Floriano Peixoto. Entusiasmo, respeito, desinteresse por qualquer condecoração ou prebenda, a admiração de Policarpo por Floriano era sincera. Lima Barreto, que não tinha razões para elogiar ou enaltecer Floriano, descreve o Presidente, com ironia e sarcasmo.

Envolvido nas forças que combatiam os rebeldes, já reconhecido como visionário, Policarpo Quaresma fora ferido em combate. Indicado para trabalhar como carcereiro, Policarpo vigiaria os marinheiros rebeldes. A nova função fora pelo herói recebida com muita insatisfação.

Policarpo revoltou-se com a escolha aleatória de 12 detentos que seriam executados. Sua insurgência foi recompensada com a acusação de que era traidor, circunstância reprimida com a pena capital. Os áulicos, os aduladores, permaneceram ao lado de Floriano. O herói encara um triste fim, com triste também fora o fim de Lima Barreto, morrendo logo depois do próprio pai, quando ambos se encontravam internados num hospício, vitimados pelo alcoolismo.


[1] Cf. Wilson Martins, História da Inteligência Brasileira, vol. VI, p. 7.

Autores

  • Brave

    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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