Investigar manifestações

Decreto do governo do RJ traz de volta o Estado Policial

Autor

  • Geraldo Prado

    é investigador do Instituto de Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e do Ratio Legis — Centro de Investigação de Desenvolvimento em Ciências Jurídicas da Universidade Autónoma de Lisboa professor visitante da Universidade Autónoma de Lisboa advogado criminal e autor de livros e artigos sobre processo penal.

24 de julho de 2013, 17h17

Por meio do Decreto nº 44.302, de 19 de julho de 2013, o governador do Rio de Janeiro instituiu Comissão integrada por membros do Ministério Público, da Secretaria de Segurança Pública, da chefia de Polícia Civil e da chefia de Polícia Militar, com o objetivo de investigar e prevenir a ocorrência de atos de vandalismo e práticas criminais nas manifestações públicas.

Compreende-se a iniciativa do governador, com boa vontade, como manifestação do propósito de criar sinergia entre as agências de segurança pública, em virtude da constatação da prática de atos de violência nas recentes manifestações populares.

A leitura do Decreto, todavia, revela o quanto o ato macula aquilo que em tese pretende defender: o Estado Democrático de Direito (segundo “considerando” do citado ato).

Logo no início do texto fica evidente o trato criminal das manifestações públicas, haja vista a ênfase dada a mais uma categoria jurídico-penal constituída no âmbito da comunicação social, por meio da qual requisita seu ingresso na linguagem jurídica: “atos de vandalismo”.

As manifestações públicas configuram território de expressão da irresignação de parcelas significativas da população brasileira – incluída aí a fluminense – acerca de temas múltiplos e heterogêneos. Não há como, seriamente, enquadrar em uma só categoria este fenômeno complexo.

Há algo, porém, inegável. Trata-se de manifestações políticas – e não criminosas -, com ou sem a mediação de conhecidos atores institucionais. Os atos de violência mais intensa, durante as manifestações, não são hegemônicos neste contexto e não conferem o tom predominante nas manifestações ou na atuação dos manifestantes.

Evidentemente, estes atos, ora protagonizados por pequenos grupos em universo muito mais amplo de populares, ora marcados pela reação desproporcional e violenta das forças de segurança pública, têm maior visibilidade. Além disso, a sua repercussão pela mídia tradicional coopera para deslocar a presença popular nas ruas para a crônica policial, em estratégia, consciente ou não, de anulação das energias políticas legítimas. Estas energias são minimizadas aos olhos da opinião pública quando intencionalmente confundidas com atos de violência, em um ambiente de confronto entre pequena parcela de manifestantes e a quase irrestrita e inaceitável, nestes termos, reação policial.

A estratégia de incriminação de movimentos sociais e populares não é desconhecida da sociedade brasileira, que a repudiou formalmente, em 1988, com a Constituição da República, que assegura a liberdade de associação e manifestação. E a sociedade a repudia cotidianamente ao deixar claro que é a repressão aos protestos que aglutina pessoas e as torna coesas em torno de demandas que são transversais às classes e grupos sociais. Basta rever as principais manifestações recentes sobre o preço das passagens de ônibus para nos darmos conta de que a violenta reação do poder público foi a principal responsável pela multiplicação das adesões.

O emprego da pseudo categoria “atos de vandalismo”, agora aparentemente incorporada ao vocabulário jurídico-penal (em breve, quem sabe, objeto de arguição em concurso público), produz este efeito.

Nas democracias os governantes sabem que são permanentemente questionados, algumas vezes de forma dura. A política é assim. Agora, (des)qualificar manifestações como territórios usuais de práticas delituosas tem o mesmo efeito de proibi-las… Apenas a proibição se faz de forma indireta, apelando para uma suposta “natureza pacífica” do povo brasileiro.

Somente isso seria suficiente para desencorajar a edição do Decreto. Respeito à democracia.

Há outros aspectos, todavia, que ressaltam e preocupam no campo jurídico.

Por quê não investigar os atos criminosos praticados no curso de algumas manifestações com o emprego dos instrumentos institucionais existentes?

A iniciativa governamental está fundada na falsa premissa de que eventuais crimes praticados por alguns manifestantes atentam contra o Estado de Direito. Os crimes – os que são ou foram praticados nas manifestações ou fora dela – são praticados no âmbito do Estado de Direito e é neste âmbito que devem ser coibidos.

Trabalha-se com a “ilusão” quando se pretende que danos ao patrimônio e lesões corporais sejam enquadrados na categoria dos “atentados ao Estado de Direito”. São crimes comuns e a tentativa de politizá-los contribuirá apenas, e em contrariedade à Constituição, para instituirmos novos “presos políticos”.

Os crimes devem ser evitados e prevenidos. Quando praticados, devem ser investigados e seus autores devem ser responsabilizados nos tribunais, com escrupulosa adoção dos procedimentos legais em vigor.

Não se deve aceitar a criação de “procedimentos” ad hoc. A cláusula constitucional do devido processo legal os desautoriza. Ainda mais quando parcela significativa das práticas delituosas é atribuída a agentes das forças públicas que em sua reação ultrapassam as margens legais e descumprem protocolos típicos da contenção de distúrbios.

Mais do que em outras ocasiões, impõe-se aqui o trato ordinário, conforme as “competências” previamente estabelecidas, da Polícia e do Ministério Público, que exerce o controle externo sobre aquela.

O trato da questão como algo extraordinário, violador do Estado de Direito, inevitavelmente haveria de resultar na tentação de esgarçar ainda mais as amarras que rigidamente deveriam pautar a ação dos agentes públicos. Seduz impor quebras de sigilo. E seduz mais ainda constranger, mesmo que involuntariamente, o Poder Judiciário ao responsabilizá-lo pelo clima de intranquilidade se, no exercício de suas altas funções constitucionais, o juiz entender caso a caso que não cabem as medidas de restrição de direitos fundamentais, muitas das quais reconhecidamente não incidentes em tese, como declarou a Chefe de Polícia Civil do Rio de Janeiro ao mencionar as infrações de menor potencial ofensivo.

A preservação do Estado de Direito impõe a revogação do Decreto e o apoio aos órgãos existentes, para que atuem com competência técnica nas suas respectivas esferas, mas obedientes ao Estado de Direito.

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